Obstáculos, limites e soluções

AutorAlessandra Damian Cavalcanti
Páginas86-101

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A dificuldade de negociar com a Administração

As teorias unilateralistas e orgânicas da função pública construíram um entendimento para justificar a negativa do direito de negociação coletiva dos servidores públicos, fundado em argumentos que não são de fato impeditivos para a negociação, sobretudo após os elementos normativos tratados no capítulo anterior.

A própria concepção de Estado do século XXI é incompatível com o entendimento contrário à possibilidade de instituir um diálogo social. Medauar destaca, citando Jean-Pierre Gaudin, que o Estado do século XXI também detém a característica de Estado-mediador, Estado-negociador, que busca consenso, enfatizando o papel do Estado de coordenação entre elementos cada vez mais diferenciados da sociedade, inclusive com o uso da negociação.244

Nesse mesmo sentido Diogo de Figueiredo Moreira Neto destaca o Estado do século XXI como o Estado do diálogo, o Estado consensual, isto é, um Estado onde há interação formal e informal entre todos os órgãos públicos e privados, estendida a toda a cidadania, um Estado que utiliza a negociação, o acordo, a solução não jurisdicional de conlitos.245

Diante do ordenamento jurídico atual, com a ratificação e internalização da Convenção n. 151 da OIT; com a questão do direito de greve dos servidores resolvida temporariamente pelos Mandados de Injunção ns. 670, 708 e 712, determinando a aplicação da Lei n. 7.783/89, até a edição de lei especíica para os servidores; com o Novo Código de Processo Civil e outros normativos que permitem a autocomposição, a conciliação e a mediação envolvendo o Poder Público, quais são os obstáculos encontrados para a negociação coletiva entre os servidores públicos e o Estado?

Florivaldo Dutra de Araújo destaca que, mesmo com o pensamento jurídico tradicional negando a sustentação jurídico-positiva da solução negociada dos conlitos no âmbito da Administração Pública, negociações informais e procedimentos não previstos legalmente têm sido utilizados pela Administração para fazer acordos com as entidades representativas dos servidores públicos.246

Essas negociações levam à formalização de acordos escritos “como compromissos políticos” sem força de lei, que servem como base para a confecção de projetos de textos legais, a serem submetidos ao Poder Legislativo, mas se o Poder Executivo não cumpre o

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compromisso acordado ou se cumpre parcialmente, modificando os termos do que foi previamente acordado com os servidores, amplia-se o conlito existente, causando um descrédito ainda maior do Governo, comprometendo as relações entre os servidores e o Estado, o que gera um prejuízo para a sociedade que depende do bom funcionamento dos serviços públicos.247

O não reconhecimento do direito à negociação coletiva por parte do Poder Judiciário, que é relexo da decisão proferida na ADI n. 492/DF, compromete o processo negocial, estabelecido com o Poder Executivo, pois se em determinadas situações a Administração não estiver aberta ao diálogo ou nas situações em que aquilo que foi acordado não for cumprido, não existem meios de compelir a Administração para que ouça os pleitos dos servidores ou para que implemente as medidas previamente acordadas, restando então, como único meio de pressão, a greve.

Na verdade, a negociação coletiva no âmbito do serviço público ica dependendo da boa vontade da Administração, de circunstâncias políticas, econômicas e sociais do momento.

Florivaldo Dutra pondera que:

A realidade demonstra, então, a disfuncionalidade do modelo jurídico pensado a partir de um dever ser que não mais se coaduna com a sociedade e o estado dos tempos atuais. E ao insistir na informalidade e na negativa de institucionalizar procedimentos negociais, amplia-se a disfuncionalidade e criam-se diversos problemas para a conformação do Estado Democrático de Direito.248

A instituição de um canal de diálogo que funcione apenas para a Administração ou quando for de seu interesse, não resolve a questão dos conlitos e continua a impulsionar os servidores a utilizar a greve para dar início a um processo de negociação. A greve é um mecanismo de pressão que é constitucional, devidamente assegurado aos servidores públicos, mas constitui uma medida extrema, para ser utilizada somente quando frustrada a negociação.

Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos aponta para a redescoberta democrática do trabalho como condição sine qua non da reconstrução da economia, como forma de sociabilidade democrática, pois a dessocialização da economia deu-se pela redução do trabalho a um fator de produção, mas a cidadania deve redescobrir as potencialidades democráticas do trabalho na reinvenção do movimento sindical.249

Boaventura destaca:

[...] é necessário reconstruir as políticas de antagonismo social de modo a conferir ao sindicalismo um novo papel na sociedade, um sindicalismo mais político, menos setorial e mais solidário, um sindicalismo de mensagem integrada e alternativa civilizacional, onde tudo liga com tudo: trabalho e meio ambiente; trabalho e sistema educativo; trabalho e feminismo; trabalho e necessidades sociais e culturais de ordem coletiva; trabalho e Estado-providência; trabalho e terceira idade etc. Em suma, a ação reivindicatória não pode deixar de fora nada do que

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afete a vida dos trabalhadores e dos cidadãos em geral. O sindicalismo já foi mais movimento que instituição. Hoje é mais instituição que movimento. No período de reconstituição institucional que se avizinha, o sindicalismo corre o risco de se esvaziar, se, entretanto, não se reforçar como movimento.250

As entidades sindicais devem lutar pelo reconhecimento da negociação coletiva, pela sua regulamentação, por um canal de diálogo aberto e permanente, pela boa-fé nas tratativas e pelo cumprimento dos acordos celebrados. A conduta da Administração Pública em negociar somente quando lhe convém não é razoável, o prejuízo para a sociedade é lagrante quando a Administração abre o canal de negociação apenas depois de longos períodos de greve dos servidores, quando a greve deveria ser delagrada apenas se não for possível resolver os conlitos por meio da negociação coletiva.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) na consolidação do balanço das greves de 2013, realizado por meio do Sistema de Acompanhamento de Greves (SAG)251, demonstra que embora tenha ocorrido naquele ano mais greves na esfera privada do que na esfera pública, em termos de quantidades de horas paradas, as greves na esfera pública superam em muito a quantidade de horas paradas nas greves realizadas pelos trabalhadores da iniciativa privada. Essa diferença ocorre porque na iniciativa privada os empregadores deixam de ter lucro com as atividades paralisadas e têm um interesse imediato na retomada das atividades laborais dos trabalhadores para dar continuidade à produção. O interesse em negociar e resolver as demandas dos trabalhadores é mais premente pois há uma tensão entre capital e trabalho. No setor púbico, todavia, o interesse em pôr um im no conlito é mediato, indireto, quem sente os efeitos das paralisações no âmbito do setor público é a sociedade.

A Administração Pública acaba precisando, em dado momento, negociar com os servidores, por meio de seus representantes, para buscar a construção de algum tipo de consenso quanto às reivindicações, com o objetivo de encerrar os movimentos paredistas daquelas categorias. Isto é, de qualquer forma terá que haver um canal para o estabelecimento desse diálogo social, a Administração Pública precisará negociar com os servidores, ainda que somente após a delagração da greve, o que poderia certamente ser evitado por meio de um diálogo social prévio.

Sobre essa negociação coletiva com os servidores, realizada após o período de paralisação, não existem manifestações judiciais quanto à sua impossibilidade como ocorre com a negociação coletiva prévia, até mesmo porque não há outra forma de encerrar greve sem o estabelecimento de alguma espécie de canal de diálogo, portanto alguma negociação sempre ocorrerá, o que corrobora com o entendimento de que a negociação coletiva é corolário do direito de sindicalização e do direito de greve, não há como dissociá-los sem deturpar por completo os institutos da sindicalização e da greve.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar os mandados de injunção de greve, tratados no capítulo anterior, poderia ter tratado com mais profundidade da negociação coletiva no

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âmbito do serviço público, pois ela deve preceder a greve. Não faz sentido reconhecer o mecanismo de pressão mais grave e extremo, que é a paralisação das atividades e não reconhecer a importância e a necessidade do diálogo social promovido por meio da negociação coletiva.

O diálogo dos servidores públicos federais com o Poder Executivo
A Mesa Nacional de Negociação Permanente

O Poder Executivo Federal, na tentativa de promover um ambiente de democratização das relações de trabalho, instituiu, em 2003, um sistema desenhado para promover de forma permanente a negociação coletiva com os servidores públicos federais, visando à melhoria da qualidade dos serviços públicos para a sociedade.252

Destaca-se que um dos óbices apontados à possibilidade de negociação coletiva no âmbito do serviço público era a premissa de que a Administração Pública estaria adstrita ao interesse público e que este seria indisponível, não vislumbrando a questão sob esse outro ângulo, de que a negociação coletiva pode ser consentânea com o interesse público.

A premissa falaciosa de que interesse público e negociação coletiva no âmbito do serviço público são incompatíveis, não...

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