Objeto Jurídico dos Tipos Legais Delitivos

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas23-48

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1.1. Parte geral e parte especial do direito penal

Na doutrina, como nos códigos, o Direito Penal divide-se em duas partes. São elas: a Parte Geral e a Parte Especial. Ambas são substancialmente relevantes e essen-ciais para a dogmática e para a estrutura da ciência jurídica do direito penal. A primeira condensa, por meio de normas explicativas ou permissivas, os princípios e institutos aplicáveis à generalidade dos crimes. A última, obedecendo ao princípio basilar da reserva legal (nullum crimem, nulla poena sine praevia lege), mediante normas incriminadoras concentradas no próprio Código Penal ou em leis penais extravagantes, ocupa-se - em princípio (pois também apresenta, excepcionalmente, normas permissivas ou explicativas) - de consagrar e contemplar em lei os fatos criminosos com a sanção penal correspondente.

Historicamente, a Parte Especial precedeu, com sua preocupação de definir as condutas criminosas e cominar as penas que a elas coubessem, à Parte Geral do Direito Penal. Essa somente despontou como fruto de ulterior desenvolvimento, em face de princípios e institutos que então foram elaborados e extraídos para dirimir problemas que surgiam e se interpunham entre o binômio crime-sanção (conteúdo da Parte Especial), como, à mão de ilustrar, questões a respeito da causalidade, tentativa, legítima defesa, concurso de pessoas, dolo e culpa, insanidade mental do agente etc. e que igualmente estavam a requerer solução jurídica adequada.

É bizantina, inútil e vazia de sentido qualquer discussão que procure destacar e pôr em evidência, como a merecer a primazia, supremacia e um pedestal em relação ao outro, qual destes segmentos do Direito Penal - Parte Geral ou Parte Especial - o mais importante. Debate estéril e superficial o que se pretenda travar nesse sentido. Os referidos segmentos penais não são compartimentos estanques, mas seções que se completam e interagem e, na realidade, um Direito Penal desprovido de Parte Geral ou uma Parte Geral destituída da Parte Especial significaria um direito penal caótico,

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deficiente e claudicante. Um Direito Penal sem Parte Especial faria os cidadãos viverem aos sobressaltos, inseguros, sem parâmetros para dirigir e ordenar o comportamento, sujeitos que estariam ao talante, alvedrio, arbítrio e jugo da autoridade, para não dizer às suas perseguições, onipotência e atos de tirania que, segundo seu exclusivo ponto de vista, ditariam, a seu bel-prazer, quais, como, quando e se determinadas condutas seriam erigidas à categoria de criminosas e como tais punidas, tudo de acordo com um poder ilimitado e opressor. Um Direito Penal carente de Parte Geral representaria um Direito Penal a mover-se às cegas, qual nau sem rumo ou bússola desprovida de norte, sem diretrizes que lhe viessem a conferir um sustentáculo e a consolidar a exata e precisa aplicação da disciplina nos assuntos correlacionados com o crime e sua sanção.

Ingressamos, assim, no estudo da Parte Especial do Direito Penal. Ela centraliza a análise da forma como são aplicáveis aos seus preceitos incriminadores os institutos e princípios consagrados nas normas explicativas ou permissivas da Parte Geral, em face das peculiaridades e particularidades apresentadas por cada crime.

Cumpre então, inicialmente, constatar como os tipos legais delitivos são dispostos na parte do Código que deles se ocupa.

Se não há crime sem lei anterior que o defina, é de meridiana clareza que cada fato delituoso deve ter sua contemplação legal. Sendo o tipo o preceito legal que se incumbe da definição dos delitos, e se para cada crime corresponde uma previsão em lei, patente é a existência - como consectário - de farto material de tipos. É de mister, então, que todo esse material de tipos seja distribuído pelo sistema penal cientificamente, consoante critério racional e lógico, seguindo uma linha de coerência. Uma distribuição harmônica e coesa tem o propósito de colocar os tipos penais em grupos para conferir certa uniformidade ao conjunto e facilitar a consulta atinente à consagração em lei de deter-minado episódio. A respeito, pondera Magalhães Noronha, a classificação sistemática dos delitos é uma necessidade real e constitui um dos mais sólidos elementos com que pode contar a hermenêutica, eis que, sem ela, o intérprete mover-se-ia com indecisão e incerteza1.

Não faltaram ensaios de classificação ao longo do tempo para cumprir a almejada finalidade. Por diversas formas, na busca de critérios que atendessem a esse escopo, tentou-se fazer a estruturação e discriminação dos tipos, com variações de um país ao outro.

Entre as legislações mais antigas, registra Anibal Bruno, há a seriação dos "Dez Mandamentos", iniciada pela ofensa à divindade2.

Houve quem propusesse distribuir e classificar os tipos - lembra João Mestieri -segundo a ordem alfabética, a exemplo de Julius Clarus, cuja legislação proposta iniciava sua enumeração com o crime de adultério e a ultimava com a usura3. O método, porém,

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como é iniludível, não logrou vingar. Ingênuo e deficiente, com a seriação dos crimes à maneira de dicionário, colocou-se distante de distribuição coerente, pois não facilitava a pesquisa, uma vez que, para a localização de tipo penal que eventualmente correspondesse a um episódio que estivesse sendo examinado, haveria a necessidade de ser compulsada toda a legislação, detendo-se na análise da primeira até a última figura delituosa.

O critério da motivação procurou ordenar os fatos puníveis de acordo com os motivos que os tivessem determinado. Critério falho - apontou Anibal Bruno - pois, neste método, o problema da fundamentação das classes de fatos criminosos deslocava-se de um elemento do tipo para um elemento da culpabilidade: substituía-se o objetivismo do bem jurídico pelo subjetivismo do impulso em que se decide a vontade do agente. Além disso, perlustrou ainda o autor citado, nem sempre será possível identificar o motivo do qual se origina o crime e, em muitos casos, não será a incerteza, mas a concorrência de vários deles no mesmo fato que determinará a perplexidade, o que elucida ser o critério epigrafado duvidoso e ineficaz4.

Critérios outros, igualmente insatisfatórios, também foram expostos, como o que ordenava os tipos pela titularidade do direito de ação e aquele que os classificava ao dividir os delitos em naturais e sociais.

Ora, uma vez que se constrói a figura penal delitiva no tocante ao dano que o comportamento do sujeito ativo representa para determinado bem, a consideração dessa lesão há de ser, necessariamente, o motivo central do preceito contido no tipo. O que este faz é descrever a ação que ameaça ou ofende o bem a que se concede proteção penal, de sorte a constituir o bem jurídico penalmente tutelado o centro de gravidade do preceito contido no tipo e a referência ao critério necessário à ordenação dos fatos puníveis5.

Daí emergir o critério da objetividade jurídica, hodiernamente prevalecente nas legislações, para a distribuição racional e lógica da massa de tipos penais.

Nesse aspecto, na sequência hierárquica em que os códigos dispõem os tipos, uns partem do indivíduo para o Estado, outros do Estado para o indivíduo. O relevo conce-dido por várias legislações aos crimes contra o Estado resulta geralmente de ideias políticas ou inspiradas em doutrinas como a da supremacia estatal. A posição oposta parte da consideração de que o homem é a realidade última e o destinatário final de toda a estrutura social e jurídica, o que impõe naturalmente no primeiro plano os crimes contra a pessoa. Esta última posição foi adotada pelo nosso Código, que a apoia para a sua hierarquia dos valores penalmente tutelados6, eis que a existência humana, na expressão de Arturo Rocco, é o centro de irradiação de todos os bens ou interesses juridicamente protegidos7.

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Forçoso é realçar, no entanto, que a ordenação e estruturação dos tipos não são feitas discricionariamente pela objetividade jurídica. Cada pessoa possui sua própria estruturação de valores, variável de homem para homem. No dizer de Del Vecchio, o legislador é o intérprete da consciência comum. Logo, procede a uma estruturação de valores que procura refletir o sentimento comum8.

1.2. Objeto jurídico: considerações preliminares

Bem representa tudo quanto satisfaça uma necessidade humana ou do agrupamento, a despertar um interesse pessoal (bens individuais) ou coletivo (bens supraindividuais ou difusos) a seu respeito. Se esse bem igualmente interessar ao mundo do Direito, que o regulamenta por meio de suas prescrições legais, recebe a denominação de bem jurídico. Se esta disciplina legal, num sentido de proteção e garantia, é procedida no ordenamento jurídico pelo Direito Penal, surge a figura do bem jurídico penalmente tutelado.

Ao elevar determinados comportamentos antissociais à categoria de crime, a lei penal tem a finalidade de preservar algum direito ou interesse no contexto da vida comunitária. O objeto de proteção do tipo legal delitivo constitui o chamado objeto jurídico ou objetividade jurídica, em suma, o bem jurídico penalmente tutelado, o objeto de proteção do tipo.

Na criação da norma jurídica incriminadora o Direito Penal não procede, como é evidente, de forma aleatória, como se definisse crimes por mero passatempo ou entretenimento. Sempre norteia o Direito Penal, na construção dos tipos penais, um fim que busca alcançar, id est, o escopo de proteção e garantia. Não por...

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