Objeto da prescrição e da decadência. Critérios distintivos. Terminologia. A teoria de amorim filho e seus reflexos na doutrina e na legislação posterior

AutorFrancisco Rossal de Araújo - Rodrigo Coimbra
Páginas24-43

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Em 1961, Amorim Filho escreveu o artigo intitulado “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis”.34 Os critérios distintivos propostos por ele logo se tornaram os mais aceitos no Brasil, sendo utilizados quase que unanimante na doutrina e na jurisprudência brasileiras, culminando com sua utilização no Código Civil brasileiro atual (publicado em 2002).

O ponto de partida do critério de Amorim Filho é a “moderna classificação dos direitos desenvolvida por Chiovenda e, particularmente, a categoria dos direitos potestativos”35, valendo-se da parte final do ensaio de Chiovenda (item 14), no qual o autor italiano refere a importância que essa matéria tem no campo da prescrição36, observação que é fundamental para o presente trabalho, pois revela a razão pela qual se optou por pesquisar as origens da divisão dessa classificação e, fundamentalmente, as relações entre direito e processo na época da formulação dessa teoria, com toda a ideologia liberal que a permeia.

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Para Savigny37, a prescrição ocorre quando perece o direito de ação, porque o titular descuida de exercitá-lo em certo prazo e gera a extinção do direito. Frise-se: para Savigny, a prescrição extingue o direito.

Note-se que esse entendimento de que a prescrição extingue o próprio direito foi suplantado pela compreensão de que a prescrição extinguiria a actio. Todavia, não havia consenso acerca do significado da expressão actio nas fontes romanas, que, até então, compreendia, em unidade, o direito material e o direito processual.

Muther e Windscheid travaram um histórico debate sobre o tema do significado da expressão actio no direito romano, nos anos 1856 e 1857, conhecido como “polêmica sobre a actio”. Em síntese: para Muther38, o termo romano actio significa ação, no sentido de “pretensão do titular do direito contra o Pretor à concessão de uma fórmula, na hipótese de que seu direito seja violado”; para Windscheid, significa pretensão jurídica, “o que se pode exigir de outrem”.39

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Consequentemente, de um lado, para Windscheid40, a prescrição extingue a pretensão de direito material:

La actio se extingue también por el transcurso del tempo. El titular que no se ha valido de ella dentro de cierto lapso, no podrá hacerlo luego. En el lenguaje jurídico moderno se dice: la actio está sujeta a prescripción, y, comoactio se traduce también aquí por acción, se habla de prescripción de las aciones.

Pero si actio es efectivamente, como resulta de lo antedicho, el término romano para designar la pretensión jurídica, cuando los romanos dicen que algo es judicialmente perseguirle, nosotros décimos que está jurídicamente fundado, y, por lontanto, no debemos relacionar la prescripción con las acciones, sino con las pretensiones. La expresión: prescripción de las acciones, por arraigada que este, debe abandonarse.

De outro lado, para Muther41, a prescrição extingue a ação (no plano processual), rebatendo, inclusive, Windscheid, expressamente, in verbis:

También cuando se trata de la extinción de las actiones por prescripción, el autor quiere reemplazar la palabra ‘acciones’ por el impreciso vocablo ‘pretensiones’. [...] Podríamos estimar aceptable si en vez de ‘prescripción de la acción’ el autor hubiese dicho ‘prescripción de la pretensión a la asistencia estatal por lesión de un derecho’, pero no podemos admitir la mera prescripción de las pretensiones. Nuestra terminología no permite dudar que la naturalis obligatio es una ‘pretensión’. (Grifos do autor)

O entendimento de Windscheid integra o Código Civil alemão — BGB — (art. 194). Esclarece Monache42 que tal dispositivo do BGB continua, como no passado, a conceituar o objeto da Verjährung (prescrição) por meio da particular posição subjetiva designada pelo nome de Anspruch (pretensão), que consiste no poder de exigir de outrem que faça ou deixe de fazer alguma coisa.

Essa polêmica europeia em torno do objeto da prescrição refletiu, de forma rápida, na doutrina brasileira, estabelecendo-se uma divisão entre as teses de que a prescrição extinguia os direitos43,

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as ações de direito material44 e as pretensões de direito material.45 Pontes de Miranda46 defendia que a prescrição atingia as pretensões ou as ações (de direito material), conforme a sua definição de prescrição que se tornou clássica no direito brasileiro: “prescrição é a exceção, que alguém tem contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação. Serve à segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das pretensões e das ações”.

Essa definição enfrenta a discussão do que a prescrição efetivamente atinge. Atendendo à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a pretensão de direito material, os prazos prescricionais limitam a exigibilidade de direitos no tempo, servindo à paz social e à segurança jurídica. De acordo com Pontes de Miranda47, os prazos prescricionais não fulminam o direito (que persiste), apenas “encobrem a eficácia da pretensão”, e critica a comum utilização da expressão “prescreveu o direito”:

Quando se diz ‘prescreveu o direito’ emprega-se elipse reprovável, porque em verdade se quis dizer que ‘o direito teve prescrita a pretensão (ou a ação), que dêle irradiava, ou teve prescritas tôdas as pretensões (ou ações) que dêle irradiavam’. [...] O direito não se encobre por exceção de prescrição; o que se encobre é a pretensão, ou a ação, ou são as pretensões, ou ações que dêle se irradiam.48

A tese de Windscheid de que a prescrição atinge tão somente a pretensão de direito material exerceu grande influência na família de direito romano-germâmica, todavia, há de se registrar que ainda não há um entendimento uníssono sobre essa matéria nos países dessa família de direito. O direito alemão e o suíço evoluíram para a extinção da pretensão, como sendo o efeito do transcurso do prazo prescricional. O direito italiano, todavia, fez declarar, literalmente, em seu Código de 1942, que a prescrição era causa de extinção do próprio direito, conforme Theodoro Junior.49

Note-se que, no direito romano, a prescrição sempre foi um fenômeno processual50, que afetava a actio, exercida por meio de exceção, embora, nessa época, não houvesse ainda a distinção entre o direito processal e o direito material.51

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O entendimento de que a prescrição atinge a pretensão — “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação positiva ou negativa”52 —, a partir do acolhimento da tese de Windscheid53, no sentido de que a expressão actio significa pretensão aliado à consagração das teorias abstratas do direito de ação, remete a matéria para o plano de direito material.

Essa teoria foi consagrada no dispositivo do art. 189 do Código Civil de 200254, utilizando-se de linguagem mais técnica e atualizada em torno do objeto da prescrição, em comparação com a do Código de 1916, segundo a qual a prescrição provocaria a perda da ação¸ em face dos percalços em torno do significado da expressão actio.

Nesse novo quadrante, o titular do direito cuja pretensão prescreveu não perde o direito processual de ação, nem o direito (subjetivo), quando a ação é julgada improcedente por acolhimento da prescrição, importando uma sentença de mérito (CPC, art. 269, IV), extinguindo tão somente o direito de exigir em juízo uma determinada prestação inadimplida (pretensão de direito material).55

Acolhida a exceção de prescrição, o direito subjetivo a uma prestação permanece, embora de maneira débil, uma vez que agora desguarnecido do direito de forçar o seu cumprimento (pretensão de direito material), todavia tanto resta incólume o direito subjetivo material do credor que, se o devedor resolver pagar a pretensão declarada prescrita, espontaneamente, a qualquer tempo, o pagamento será válido e eficaz, não autorizando repetição de indébito ao devedor (restituição do valor pago), por força do art. 882 do Código Civil de 2002.56

Pode haver direito subjetivo — outorgado pelo Direito objetivo — sem que haja ainda, ou não mais exista, pretensão ou ação, assim como pode haver ação sem que haja direito subjetivo. Na lição de Ovídio Baptista57:

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Se sou titular de um direito de crédito ainda não vencido, tenho já direito subjetivo, estou na posição de credor. Há status que corresponde a tal categoria de Direito das Obrigações, porém, não disponho ainda da faculdade de exigir que meu devedor cumpra o dever correlato, satisfazendo meu crédito. Nesse momento, diz-se que o direito subjetivo, que se mantinha em estado de latência, adquire dinamismo, ganhando uma nova potência a que se dá o nome de pretensão. A partir do momento em que posso exigir o cumprimento do dever que incumbe ao sujeito passivo da relação jurídica, diz-se que o direito subjetivo está dotado de pretensão. Contudo, a partir daí, se meu direito de crédito não é efetivamente exigido do obrigado, no sentido de compeli-lo ao pagamento, terei, pelo decurso do tempo e por minha inércia, prescrita essa faculdade de exigir o pagamento. Haverá, a partir de então, direito subjetivo, porém, não mais pretensão e, consequentemente, não mais ação, que como logo veremos, é um momento posterior na vida do direito subjetivo. (Grifos do autor)

Direito subjetivo e pretensão são categorias do direito material.58 “Enquanto pretendo, exijo, mas ainda não ajo”, esclarece Pontes de Miranda.59 A pretensão é meio para um fim, mas esse fim, na medida em que apenas se exige o cumprimento da obrigação extrajudicialmente, é obtido mediante conduta voluntária.60

Outros temas relacionados são a renúncia da prescrição (art. 191, CC) e a exceção (art. 190, CC). Se a prescrição atinge apenas a pretensão, o réu pode renunciar a alegá-la preferir enfrentar a discussão se é devida, ou não, a pretensão do autor. Até mesmo porque, dependendo da natureza do direito alegado pelo autor, o réu pode formular contrapedido. Ou simplesmente desejar que a questão de fundo seja...

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