História da comunidade quilombola de Olaria (Irará/Bahia) e a luta pela terra na contemporaneidade

AutorJucélia Bispo dos Santos
CargoFaculdade Nobre de Feira de Santana
Páginas223-248

Jucélia Bispo dos Santos1

    The history of the quilombola community of Pottery in Irará, Bahia and the battle for earth today

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Introdução

A Bahia tem um índice populacional estimado de 13.950.146 habitantes. De acordo com os critérios cor/etnias têm-se os seguintes números: brancos, 20,9%, negros 14,4%, pardos 64,4%, amarelos ou indígenas 0, 3%. O número de negros e mestiços corresponde à maioria dos que habitam esse território. A população negra habita espaços vistos como segregados, como as regiões periféricas das cidades e do campo. Por meio das produções literárias, é possível pontuar que, na Bahia, assim como em outros Estados do Brasil, no período pós-abolição, os negros foram expulsos das regiões centrais da cidade (CARRIL, 2003; p. 33). Essa questão promoveu uma divisão territorial dos espaços urbanos e rurais que foi definindo uma territorialidade, em que os grupos "de cor" foram se estabelecendo em lugares segregados, como as comunidades quilombolas.

As temáticas de pesquisa que têm os remanescentes de quilombos como eixo de discussão receberam uma atenção especial nos últimos anos. Depois da Constituição de 1988, os quilombolas passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, sobretudo no que diz respeito ao direito à titulação e tomada de posse de suas terras. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, da seção dos Atos e Disposições Transitórias, fala sobre a concessão dos títulos de propriedade aos remanescentes de quilombos. Tal discussão tem sua origem na crescente organização dos trabalhadores do campo e na ascensão do movimento negro, enquanto movimento político que afirma a identidade étnica inserida no conjunto das lutas dos trabalhadores pela posse da terra. Nessa vigência, nascem novas pesquisas e novas esperanças de conquistas de direitos, para as pessoas que residem nesses espaços.

Para tanto, este artigo almeja trazer a discussão dos direitos dos quilombolas da comunidade da Olaria, em Irará-Bahia, porque, apesar de existirem comunidades que já foram recenseadas pela Fundação Palmares, nenhuma ainda foi reconhecida. O resultado desta pesquisa poderá contribuir para a afirmação de identidade étnica, que se vincula às perspectivas de organizar sua divulgação aos moradores dessas localidades, enquanto descendentes de escravos fugidos, mas na possibilidade de se atuar politicamente a partir de sua demarcação espacial e do reconhecimento social de sua memória e identidade. Além disso, este projeto busca gerar as bases de uma sistemática para acompanhamento das informações que identificam as comunidades negras rurais.

Vale ressaltar que as comunidades quilombolas não ganharam plenas condições de cidadania a partir da Lei Áurea. Na verdade, muitos negros tiveram sua cidadania obscurecida por vários anos. Esta lei de "suposta" liberdade para escravos não garantiu o direito às mínimas condições de que estes sujeitos necessitam para sobreviver, como: terras, moradia descente, água encanada, sistema de esgoto, educação, dentre outros.

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A realização desta pesquisa tornou-se relevante por diferentes motivos: atualmente fala-se de quilombos como uma designação jurídico-constitucional para delimitação do território quilombola; que o número real de quilombos na Bahia é muito maior do que é registrado; os nativos das comunidades quilombolas precisam conhecer o sentido jurídico e político da identidade quilombola para assegurarem os direitos às políticas sociais que são destinadas para os cidadãos que residem nestes grupos. O primeiro passo do reconhecimento de uma comunidade quilombola parte do processo de conscientização da população. Portanto, este projeto pretende criar estratégias que auxiliam aos remanescentes de quilombos a se conscientizarem e a conhecerem as leis que funcionam a seu favor. Vale destacar que, para uma comunidade ser reconhecida como sendo quilombola, qualquer integrante da mesma pode enviar um ofício para a Fundação Palmares solicitando a presença de uma equipe no local da comunidade, para registrar seus dados populacionais e territoriais. Depois fazse um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da comunidade para ser publicado em Diário Oficial. Após esse período, a comunidade é reconhecida como sendo quilombola, com direito à propriedade da terra que historicamente lhe pertence. Delimitado o território, o grupo terá direito a sua terra. Portanto, esta investigação ganha proeminência não só pelo fato de falar de remanescentes de quilombos e identidades, questões em evidência hoje no meio acadêmico, mas também pelo fato de tratar de um tema pouco pesquisado no referido espaço delimitado. Os temas sobre escravidão na Bahia possuem pouca investigação na região do Sertão baiano. Até então, estão silenciados nas investigações científicas que, em sua maioria, tratam da região do Recôncavo baiano.

Revisão do conceito de quilombo

A historiografia clássica dos quilombos, que foi utilizada no Brasil por alguns intelectuais, foi responsável pela construção da idéia de quilombos como um local isolado, formado por escravos negros fugidos. Nesse exemplo, surge logo a reflexão do Quilombo de Palmares, com seu herói Zumbi. Essa noção de quilombos que foi construída pela história oficial, ainda permanece enraizada no senso comum (CARVALHO, 1996; pp. 7-10).

Uma nova perspectiva da historiográfica dos quilombos ganhou ênfase, no Brasil, em meados dos anos 70, especialmente através das contribuições de Artur Ramos (1953) e Edson Carneiro (1958). Esses autores atribuíam, excepcionalmente, a origem dos quilombos a um histórico passado, cristalizando sua essência, no período em que vigorou a escravidão, no Brasil. Dessa forma, os quilombos eram exclusivamente caracterizados como expressão da negação do sistema escravista. Ou seja, a formação de quilombos era vista como um fato estabelecido no passado, bem distante do tempo distante.

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O conceito clássico de quilombos foi fundamentado através de análises que se prendiam, exclusivamente no perfil das fugas dos negros escravos e na posterior organização desses sujeitos. O quilombo advinha da resistência à exploração, na qual o negro africano criava constantes atos de rebeldia, desde tentativas de assassinato de feitores e senhores até fugas e, mesmo, suicídio. O escravizado via no quilombo a perspectiva de ter uma vida em liberdade, longe das punições e das regras estipuladas pela escravidão:

Um quilombo é um esconderijo de escravos fugidos. É preciso distingui-lo dos verdadeiros movimentos insurrecionais organizados contra o poder branco. O quilombo quer paz, somente recorre à violência se atacado, se descoberto pela polícia ou pelo exército que tentam destruí-lo, ou se isto for indispensável à sua sobrevivência. Quilombos e mocambos são constantes na paisagem brasileira desde o século XVI. Reação contra o sistema escravista? Retorno à prática da vida africana ao largo da dominação dos senhores? Protesto contra as condições impostas aos escravos, mais do que contra o próprio sistema, espaço livre para a celebração religiosa? Os quilombos são tudo isso ao mesmo tempo (MATOSO, 1990; pp. 158-59).

Essa noção de quilombos traz uma significação presa ao passado remoto da história, ligado exclusivamente ao período no qual houve escravidão no Brasil. Nessa perspectiva teórica, o quilombo era exclusivamente formado através da rebelião contra esse sistema colonial escravista. Ou seja, após as fugas, os negros iam se esconder e se isolar do restante da população nos lugares mais remotos da colônia. Os ex-escravos formavam agrupamentos que recebiam nomes variados, conforme as específicas regiões do Novo Mundo: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes, na Venezuela; marrons no Haiti e nas demais ilhas do Caribe francês; grupos ou comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola; maroons, na Jamaica, no Suriname e no sul dos Estados Unidos (MIRADOR, 1980; p. 156).

No Brasil, a partir dos anos 70 do século XX, sobreveio uma preocupação acentuada em torno da discussão da identidade das comunidades negras rurais. Esses debates formam travados especialmente pelos antropólogos e militantes dos movimentos sociais, com ênfase maior do movimento negro. Esta luta proclamava a reivindicação por uma reparação da incomensurável dívida do Estado brasileiro para com a população negra,

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que sofre a dupla opressão enquanto camponesa e parte de um grupo racial inserido numa sociedade pluriétnica, mas desigual. Por conta desses debates, foram promovidas novas perceptivas em torno da conceituação de quilombos que associam à idéia de quilombos a formação dos grupos dos descendentes que escravos que vivem durante o Brasil Colonial e nos períodos posteriores. Com isso, aparece a argumentação que considera o quilombo como um processo de resistência permanente por parte dos sujeitos, que vivem nessas comunidades. O conceito de resistência se ampara no âmbito da resistência cultural. Dessa forma, a categoria quilombos se configura na esfera da segregação social dos povos que descenderam dos antigos escravos, que experimentaram a vida no cativeiro.

Contemporaneamente, foram elaboradas novas interpretações sobre a história dos quilombos no Brasil. Os estudos recentes se empenham em entender a complexa rede estabelecida entre os quilombolas e os diversos grupos da sociedade com quem os fugitivos mantinham relações (CARVALHO, 1996; pp. 7-10). Essas novas discussões apontam que os quilombos mantiveram relações com a sociedade ao seu redor, ou seja, a mesma sociedade que os dominou muitas vezes, manteve contatos com quilombolas em troca de benefício econômico. Os...

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