Nulidades no Código de Processo Civil de 2015

AutorTeresa Arruda Alvim
CargoLivre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP
Páginas74-90

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Ver nota 1

1. Introdução

O tema é daqueles que nunca perdem atualidade. E, além de interessante, apresenta inegável relevância prática. Mantidas as bases da doutrina tradicional, o NCPC criou notáveis abrandamentos das consequências da existência de nulidades absolutas, com o intuito evidente de "salvar" o processo.

Nos itens subsequentes, este será o objeto de nossas considerações: o trato do panorama das nulidades "temperado" com as novidades trazidas pelo CPC de 2015.

2. Sobre os vícios dos atos jurídicos em geral

De um modo geral, no direito como um todo, os defeitos de que podem padecer os atos jurídicos são classificados a partir de sua gravidade.

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A terminologia habitualmente empregada é a tripartida: atos absolutamente nulos (que têm vícios mais graves), atos anuláveis ou relativamente nulos (que têm vícios menos graves) e atos juridicamente inexistentes (estes últimos padecem de defeitos que comprometem a sua identidade jurídica - são, portanto, mais do que nulos - perdem o direito de usar o nome iuris que os identificaria, não fosse o defeito).

Outros preferem usar a terminologia bipartida, considerando ser conveniente tratar em conjunto nulidades absolutas e inexistência jurídica, já que ambas as categorias têm mais pontos em comum do que diferenças. Nós preferimos adotar a terminologia tripartida, admitindo o tratamento separado da inexistência jurídica, da nulidade absoluta e da nulidade relativa.

Em nosso entender, como explicaremos ao longo deste texto, há mais vantagens do que desvantagens no tratamento em separado da inexistência e da nulidade absoluta, principalmente no campo do processo. todavia, o tratamento deve ser o mesmo, enquanto o processo estiver em curso, por razões que veremos no item 8.

Com algumas variações, pode-se dizer que no direito, em geral, assim se classificam os vícios dos atos jurídicos, respeitadas é claro as peculiaridades de cada ramo do direito, que costumam gerar a necessidade de algumas adaptações.

3. Características peculiares dos vícios dos atos processuais

Quando se estudam os defeitos de que um processo ou um ato processual pode padecer, não se pode perder de vista que o processo se insere num ambiente normativo de direito público. Esta circunstância gera consequências de toda ordem, não propriamente na identificação e no "diagnóstico" do vício (ou seja, saber de que tipo de nulidade se trata) mas no regime jurídico destes vícios.

Se é verdade, sim, que os vícios dos atos processuais também podem ser separados em dois ou três grupos, a partir do critério de sua gravidade, não se pode dizer que a insanabilidade dos defeitos do processo está ligada, como ocorre no direito privado, ao fato de o defeito ser mais sério.

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De fato, no direito civil, nulidades absolutas são nulidades ipso iure, são nulidades de pleno direito ou insanáveis, por definição. Isto não ocorre no processo: um dos princípios mais relevantes que norteiam a compreensão do sistema de nulidades no processo é o do aproveitamento, que leva a que nulidades, seja qual for a sua gravidade, sejam sanáveis.

Essa tendência aparece fortificada no CPC de 2015, embora já exista à luz do CPC de 73: basta que nos lembremos do art. 2142, que prevê a sanabilidade de um dos defeitos mais graves que o processo, num país democrático, pode padecer: a falta de citação.

As peculiaridades dos vícios do processo, contudo, não param por aqui. Diz-se, no âmbito do direito civil, que nulidades de pleno direito são declaradas enquanto tais; já as nulidades relativas devem ser objeto de ação desconstitutiva, com efeitos ex nunc. Por outro lado, ninguém nega que a ação rescisória tenha, no que diz respeito ao juízo rescindens, natureza desconstitutiva.

A pergunta oportuna seria: se a rescisória é meio para impugnar sentenças nulas3, por que a ação deve ter natureza desconstitutiva? Justamente porque processo e direito público, e os atos do agente público - daquele que, na relação processual, faz as vezes do Estado - ficam acobertados por um plus, um status jurídico diferente daquele que caracteriza os atos dos particulares.

Sentenças de mérito (atos jurisdicionais que são) adquirem um plus, em certo momento: a coisa julgada. Ainda que se possa discutir sobre o que é exatamente a coisa julgada - se efeito da sentença, se qualidade que se agrega aos efeitos da sentença ou coisa parecida -, com certeza a coisa julgada é um reforço, um plus, uma autoridade diferenciada de que estão privados os atos dos particulares. Esta barreira protetiva dos atos do juiz deve ser superada por instrumento mais contundente do que uma ação meramente declaratória. Esta é a função da carga de desconstitutividade da ação rescisória, que se volta contra a coisa julgada, para, depois, mediata e indiretamente, atingir a sentença e seu defeito, inclusive com

No direito civil, nulidades absolutas são nulidades ipso iure, são nulidades de pleno direito ou insanáveis, por definição

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eficácia ex tunc (tipicamente declaratória). Analogia útil à compreensão do fenômeno apenas descrito é o ato de funcionário da administração, revestido da presunção de legitimidade, com efeitos relevantes, v.g., a inversão do ônus da prova.

Essas observações e os exemplos antes mencionados já tornam evidente a necessidade de se interpretarem as regras de processo num ambiente normativo mais amplo, tendo como pano de fundo princípios de direito público. À luz desses princípios é que se compreenderão os atuais contornos do sistema de identificação e decretação dos vícios no processo, e suas consequências.

4. Princípios norteadores do regime das nulidades dos atos do processo

As nulidades e as anulabilidades processuais são disciplinadas pelo direito positivo e por uma série de princípios de que aqui trataremos. A partir desse conjunto é que se pode pensar num sistema das nulidades processuais, abrangendo: a verificação da existência do vício, a sua classificação e sua decretação.

Entre esses princípios, há aqueles que nada mais são do que diversas formas de se dizer exatamente o mesmo, sob uma ótica sutilissimamente diversa. É o caso dos princípios da instrumentalidade das formas e do princípio segundo o qual não haverá nulidade sem prejuízo, em seguida analisados. Por outro lado, alguns princípios traduzem quase que exatamente o contrário do que outros princípios significam: nestes casos, um serve de "limite" ao outro. É como se alguns princípios tivessem de ser lidos juntos, ligados por uma conjunção adversativa: um mas, por exemplo.

Os mais importantes são os seguintes:

1. O processo é forma. O processo, sob determinado enfoque, pode ser visto como um conjunto de formas, e o afastamento destas formas é o que dá causa às nulidades.

Nesta linha de raciocínio, tem-se que as formas processuais não são nada mais que o preço que se paga pela previsibilidade: constituem, na verdade, uma garantia para a defesa dos seus direitos.

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2. As formas têm caráter instrumental: são meios para se atingirem fins. Estes, se atingidos, fazem cessar a relevância do não respeito à forma.

As formas são relevantes e isso é tão crucial quanto se dizer que têm caráter instrumental. Costuma-se dizer que a segunda parte da afirmativa tem mais importância porque isso não é óbvio, e, às vezes, não é percebido. Então passa a ter sentido se dizer que o princípio da instrumentali-dade das formas é um dos mais expressivos a orquestrar a aplicação das regras sobre nulidades no processo civil.

3. O princípio da boa-fé. O princípio da boa-fé vem muitas vezes conjugado com o da instrumentalidade. A aplicação desse princípio aos casos concretos implica o exercício de certa dose de liberdade do juiz com o objetivo de avaliar até que ponto a especificidade do caso analisado justifica a suavização da consequência prevista em lei.

O princípio da boa-fé, "engrenado" com a ideia da instrumentalidade, desempenha o papel de "amortecedor" da aplicação das regras mais rígidas. Cria-se um equilíbrio entre a rigidez das regras e a possibilidade de flexibilização.

A boa-fé é conceito que não comporta propriamente interpretação. A interpretação tradicional desse conceito a nada conduz. Seu conteúdo não deriva da lei, mas da sua aplicação pelo juiz. Isso significa que ao conceito se dá vida por condutas a que o juiz qualifica como de boa-fé ou de má-fé.

4. Não há nulidade sem prejuízo. Não se deve anular um ato ou decretar a sua nulidade, não tendo havido prejuízo à parte.

É um princípio de acentuada importância para o legislador, ao elaborar o direito positivo, e, para o juiz, deve sê-lo, ao aplicar a lei.

A nulidade existe, mas, se não há prejuízo, não deve ser decretada. Por isso se diz "não há nulidades". Mas, rigorosamente, há. O que não há são seus efeitos.

E por que é relevante fazer-se esta distinção? Porque antes de se saber se terá ou não havido prejuízo, a nulidade se submete a um regime jurídico que se liga à preclusão, à necessidade de que haja provocação para que o juiz possa decretá-la etc. Só se pode saber que regime é este se se diagnostica e classifica o vício.

Outro momento, posterior, é o da decretação: aí, sim, "não há" invali-dade sem prejuízo. Ou seja, há mas não deve ser decretada.

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5. Nulidades instituídas precipuamente no interesse da parte são sanáveis.

6. Nulidades instituídas precipuamente no interesse público são sempre insanáveis.

7. Deve obter-se o máximo de...

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