Nulidade processual e coisa julgada material

AutorEdmilson Villaron Franceschinelli
Ocupação do AutorAdvogado. Ex-Promotor de Justiça e Ex-Juiz de Direito. Mestre em Direito
Páginas81-102

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1 Introdução

Será a coisa julgada material o ato de sanação de todas as nulidades absolutas que a antecederam? A resposta a essa indagação não é pacífica na doutrina. Uns entendem que a coisa julgada material prevalece sobre todas as nulidades que a antecederam; outros, em sentido contrário, entendem que a sentença, quando viciada pela nulidade absoluta, não produz a coisa julgada material. Portanto, sobre este tema existem hoje duas correntes: uma, sustentando ser a coisa julgada material absoluta, prevalecendo sobre todas as nulidades; e outra, em sentido inverso, sustentando ser ela relativa.

Quanto às sentenças inexistentes não restam dúvidas, sendo a doutrina unânime em afirmar que não produzem a coisa julgada material.

Ainda, não se pode desvencilhar deste tema as nulidades provocadas por ofensa à Constituição Federal daquelas oriundas de inobservância da lei infraconstitucional, posto que produzem consequências jurídicas distintas. Aquelas ficam sujeitas à impugnação de que trata o § 1º do art. 475-L do CPC ou da querela nullitatis insanabilis, enquanto estas se sujeitam às regras da rescindibilidade que ora se analisam.

2 Corrente da coisa julgada material relativa

Entre os autores que sustentam ser a coisa julgada material relativa, podem-se citar: Manoel Antonio Teixeira Filho1, Pontes de Miranda2, José Alberto dos Reis3, Silva Pacheco4, Enrico Tullio Liebman5, Lopes

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da Costa6, Amilcar de Castro7, Anésio de Lara Campos Jr.8, Humberto Theodoro Júnior9.

No Capítulo anterior foram vistos os casos de nulidades no processo. Agora serão analisados, especificamente, os efeitos que tais vícios produzem sobre as sentenças.

Para Humberto Theodoro Júnior10, as sentenças rescindíveis são as enquadráveis nas situações previstas no art. 485 do CPC, enquanto que entre as absolutamente nulas e as inexistentes não é fácil delinear um quadro que contenha nítidos traços diferenciadores. Este autor aponta como sentenças nulas ipso jure as seguintes: 1) sentença sem relatório ou fundamentação (art. 92, IX, da CF); 2) a sentença em que o juiz, devendo, não julga o pedido, limitando-se a "desconversar"; 3) a sentença com julgamento extra ou ultrapetita, pois o juiz não pode decidir fora ou além do pedido, sob pena de ofender o art. 2º do CPC.

Para o mesmo jurista, a nulidade absoluta poderá atingir, também, algum ato do processo, contaminando os subsequentes, que dele dependam (art. 248 do CPC), inclusive a sentença. Entre estas nulidades podem ser citadas: 1) a nulidade da citação; 2) o caso de o juiz da causa, depois de já julgado o feito, conhecendo ou não do mérito, voltar a proferir uma nova decisão depois de esgotada a sua função jurisdicional (art. 463 do CPC); 3) quando não se formar o litisconsórcio necessário; 4) processo promovido contra incapaz sem estar devidamente representado (art. 8º do CPC); 5) a falta de curador especial nos casos exigidos por lei (art. 9º do CPC); 6) a incompetência absoluta quando se verificar em hierarquias diferentes. Quando se dá a invasão de competência, entre juízes da mesma hierarquia, será caso de ação rescisória; mas,

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se de hierarquias diferentes, haverá nulidade absoluta e até inconstitucionalidade, posto que não é possível, por exemplo, sob pena de nulidade absoluta, que um Tribunal de Justiça Estadual julgue um recurso extra-ordinário.

Para Humberto Theodoro Júnior, as sentenças inexistentes, como as nulas "ipso jure", por não terem aptidão para gerar a res judicata, não são passíveis de ação rescisória, e sustenta: "O que não existe não pode ser rescindido, de sorte que não se há que falar em ação rescisória sobre sentença inexistente. A sentença é nula ipso jure quando a relação processual em que se apóia acha-se contaminada de igual vício. Para reconhecê-lo não se reclama a ação rescisória, posto que dita ação pressupõe coisa julgada, que por sua vez reclama, para sua configuração, a formação e existência de uma relação jurídica válida... Para fazer cair a relação processual nula e com ela a sentença nula bastará ao prejudicado manejar os embargos à execução (se for o caso), ou então alguma ação ou medida semelhante à querela de nulidade... Prevê, outrossim, a lei, em numerus clausus, as hipóteses de admissibilidade da ação rescisória de sentença (art. 485 do CPC), marcando à parte prazo fatal para o seu exercício."

Por isso, observa ainda Pontes de Miranda que: ..."a ação rescisória é remédio jurídico processual extraordinário, razão por que, se a sentença não existe, ou é nula, cabe ao juiz declarar-lhe a inexistência, ou decretar-lhe a nulidade em vez de rescindi-la... Se por outro remédio jurídico processual se pode obter o mesmo resultado, não se há de exercer a pretensão rescisória, que é contra julgado."

O Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de decidir que a tese da querela nullitatis persiste no Direito Positivo brasileiro, o que implica dizer que a nulidade da sentença pode ser declarada em ação declaratória de nulidade; eis que, sem a citação, o processo, vale falar, a relação jurídica processual não se constitui nem validamente se desenvolve. Nem, por outro lado, a sentença transita em julgado, podendo, a qualquer tempo, ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução, se for o caso.11

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Se as sentenças inexistentes e também as absolutamente nulas não produzem a coisa julgada material, e sem esta não tem cabimento a rescisória, a conclusão a que se chega é que as hipóteses de seu cabimento são de anulabilidade. E, juridicamente, o pensamento pode se inclinar nessa direção; afinal, existem algumas semelhanças entre a anulabilidade do Direito Material e o cabimento da ação rescisória, tais como: a)- a existência de prazo para ser pleiteada a anulação do ato, sob pena de sanação do vício. O prazo prescricional na ação anulatória é de dez anos (art. 205 do CC), enquanto que na ação rescisória o prazo, que é decadencial, verifica-se em dois anos (art. 495 do CPC);

b)- entre as hipóteses de cabimento da ação rescisória estão os vícios do consentimento: erro, dolo, coação (II, do art. 352 do CPC), e estes estão ligados à anulabilidade do ato jurídico (inciso II, do art. 171 do CC); c) por fim, todo ato anulável possui eficácia jurídica até ser declarado nulo por decisão judicial. O mesmo ocorre com as sentenças rescindíveis que possuem eficácia jurídica, até serem desconstituídas por meio da tutela jurisdicional específica; afinal, elas emanam do poder jurisdicional.

Ocorre, todavia, que a nulidade processual não se adapta perfeitamente às regras que regulam o mesmo instituto das nulidades no Direito Civil. No Direito Processual Civil, a anulabilidade é sanada se não alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, salvo se comprovado legítimo impedimento (art. 245 e parágrafo único). Assim, somente em se verificando a hipótese desta ressalva haveria legitimação para a propositura da ação rescisória, o que seria um absurdo. Ademais, entre as hipóteses que comportam a ação rescisória, existem algumas que identificam a nulidade absoluta, como é o caso da sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, prevista no inciso II do art. 485, do CPC. Se esta nulidade absoluta não for provocada por meio da ação rescisória no prazo legal, estará preclusa ou, em outras palavras, tal vício estará sanado.

Será que, após a coisa julgada material, as nulidades absolutas sofrem uma mutação jurídica, transformando-se em meras anulabilidades?

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Será que a coisa julgada material torna sem nenhum efeito o brocardo quod nullum est, nullum producit effectum? Não chegaram, doutrina e jurisprudência, a um ponto pacífico sobre tais indagações, mas não faltam juristas para lhes dar respostas afirmativas.

José Carlos Barbosa Moreira12, v.g., sustenta: "Em regra, após o trânsito em julgado a nulidade converte-se em simples rescindibilidade. O defeito, arguível em recurso como motivo de nulidade, caso subsista, não impede que a decisão, uma vez preclusas as vias recursais, surta efeitos até que seja desconstituída, mediante rescisão." E logo na página seguinte, complementa o mesmo autor: "A condição jurídica da sentença rescindível assimila-se, destarte, à do ato anulável. Os autores que têm construído a rescisória como ação tendente à declaração da nulidade da sentença empregam o termo ‘nulidade’ em sentido impróprio; uma invalidade que só opera depois de judicialmente decretada classificar-se-á, com melhor técnica, como ‘anulabilidade’. Rescindir, como anular, é desconstituir."

Parece que realmente a coisa julgada arroga-se o poder de transformar as nulidades processuais absolutas em relativas. Este último autor citado sustenta: "Decorrido in albis o prazo do art. 495, ela se torna imune a qualquer ataque e prevalece em caráter definitivo."

No Direito Civil, Silvio Rodrigues13 ensina: "De modo que, comparando as duas espécies, vê-se que a nulidade é automática, pois ela emana da vontade do legislador, enquanto a anulabilidade depende de sentença e emana da vontade do juiz, a pedido do prejudicado. De uma certa maneira poder-se-ia dizer que a sentença que proclama a nulidade absoluta é declaratória, enquanto que o julgado que afirma a nulidade relativa é constitutivo. Enquanto a nulidade relativa pode convalescer, se as partes assim o quiserem, a nulidade absoluta jamais se cura, vedado que fica ao juiz supri-la, ainda a requerimento das partes (Cód. Civ., art. 146, parágrafo único, in fine)14. A razão é sempre a mesma, ou seja, enquanto aquela interessa apenas às partes concordantes, esta diz respeito ao interesse da sociedade, com o qual é vedado...

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