Novos riscos

AutorSilvia Fernandes Chaves
Páginas19-51

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A sociedade pós-moderna criou novos riscos, a partir de um capitalismo desenfreado, capitalismo esse que leva para segundo plano a dignidade da pessoa humana, de modo que o trabalhador é exposto aos mais diversos riscos em prol do lucro do empregador. Os riscos passaram a fazer parte do nosso cotidiano.

Ulrich Beck sustenta a existência de uma sociedade de risco, ao estabelecer que a mercantilização dos riscos não rompe com a lógica capitalista:

Com os riscos - poderíamos dizer com Luhmann -, a economia torna-se "autorreferencial", independente do ambiente da satisfação das necessidades humanas. Isto significa, porém: com a canibalização económica dos riscos que são desencadeados através dela, a sociedade industrial produz as situações de ameaça e o potencial político da sociedade de risco.1

A partir desses riscos, derivados do capitalismo, os acontecimentos ocorridos na esfera empresarial, ou seja, na esfera privada, passaram a ter implicações políticas, e foram, então, matéria de discussão na esfera pública, de modo que o Estado passou a intervir na esfera empresarial, por meio da criação de políticas públicas que tinham como propósito diminuir a exposição dos cidadãos aos riscos. Nesse sentido,

Aquilo que até há pouco era tido por apolítico torna-se político - o combate às "causas" no próprio processo de industrialização. Subitamente, a esfera pública e a política passam a reger na intimidade do gerenciamento empresarial - no planejamento de produtos, na equipagem técnica etc. Torna-se exemplarmente claro, nesse caso, do que realmente se trata a disputa definitória em torno dos riscos: não apenas dos problemas de saúde resultantes para a natureza e o ser humano, mas dos efeitos colaterais sociais, económicos e políticos desses efeitos colaterais: perdas de mercado, depreciação do capital, controles burocráticos das decisões empresariais, abertura de novos mercados, custos astronómicos, procedimentos judiciais, perda de prestígio.2

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A definição de risco trazida por Beck nos parece a que melhor contempla a visibilidade do risco. Para o autor,

Riscos são, nesse sentido, imagens negativas objetivamente empregadas de utopias nas quais o elemento humano, ou aquilo que dele restou, é conservado e revivido no processo de modernização. Apesar de toda a desfiguração, não se pode afinal evitar que esse horizonte normativo, no qual o que há de arriscado no risco começa a se fazer visível, sendo tematizado e experimentado/3>

Os riscos existem e se tornam reais com o auxílio da racionalidade das Ciências e, sobretudo, de uma integração entre elas, passam por asserções de probabilidade. Baseados em possibilidades matemáticas e interesses sociais, passam a fazer parte de estatísticas de catástrofes revestidas de certeza técnica, a qual torna o risco previsível e matematicamente calculado.

Beck chama a atenção para a relação dos riscos com a sociedade de classes, lecionando que

A história da distribuição de riscos mostra que estes se atêm, assim como as riquezas, ao esquema de classe - mas de modo inverso: as riquezas acumu-lam-se em cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos parecem reforçar, e não revogar, a sociedade de classes. À insuficiência em termos de abastecimento soma-se a insuficiência em termos de segurança e uma profusão de riscos que precisam ser evitados. Em face disto, os ricos (em termos de renda, poder, educação> podem comprar segurança e liberdade em relação ao risco. Essa "lei" da distribuição de riscos determinada pela classe social e, em decorrência, do aprofundamento dos contrastes de classe através da concentração de riscos entre os pobres e débeis por muito tempo impôs-se, e ainda hoje se impõe, em relação a algumas dimensões centrais do risco: o risco de tornar-se desempregado é atualmente consideravelmente maior para quem não tem qualificações do que para os que são altamente qualificados.4>

No risco que abordamos nesta tese, especificamente acidente do trabalho, a questão da concentração em determinada classe social se mostra muito relevante, especialmente porque são justamente pobres e débeis em sua maioria, e dependem de benefício previdenciário para a sobrevivência por ocasião do infortúnio.

A suscetibilidade aos riscos enfrentada pelos empregados, em sua maioria pobres e débeis, em contraposição ao poderio econômico das empresas, bem

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distingue a sociedade de classes e a sociedade de mercado, que, juntas, compõem a sociedade de risco, como bem coloca Beck,

Na sobreposição e concorrência entre as situações problemáticas da sociedade de classes, da sociedade industrial e da sociedade de mercado, de um lado, e aquelas da sociedade de risco, de outro, a lógica da produção de riqueza, dadas as relações de poder e os critérios de relevância vigentes, acaba por prevalecer - e justamente por conta disto prevalece no fim das contas a sociedade de risco.5>

Por ser uma questão de classes sociais, o risco social aqui estudado se torna um problema de política pública, uma vez que a grande massa de trabalhadores, assim considerada como pobres e débeis, está exposta a riscos de acidente do trabalho, e, certamente, nenhum dado estatístico poderia ser considerado verdade absoluta, já que o trabalho informal aliado à ignorância daquele pobre débil afasta muitos dos acidentes do trabalho dos dados estatísticos. Assim, estamos diante do

[...] fracasso da racionalidade científico-tecnológica diante de riscos e ameaças civilizacionais crescentes. Esse fracasso não é mero passado, e sim um presente urgente e um futuro ameaçador. Tampouco é o fracasso de disciplinas ou cientistas isolados, mas se encontra fundado sistematicamente na abordagem institucional-metodológica das ciências em relação aos riscos.6>

Com efeito, valemo-nos, mais uma vez, das palavras de Beck, o qual diz que "a sociedade de risco não é, portanto, uma sociedade revolucionária, mas mais do que isto: uma sociedade catastrofal. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade".7>

A ação regressiva acidentaria: natureza jurídica e conceito

Aquele que se vale dos préstimos alheios para o proveito em suas ativida-des deve suportar as consequências oriundas desses referidos préstimos; aliás, aquele que se valeu dos serviços é que colherá os frutos da atividade econômica.

Nesse sentido, dispõe o artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho: "Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço".

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Sob essa ótica, a partir da necessidade de o Estado tutelar a dignidade humana dos indivíduos que se expunham aos riscos criados pelos empregadores, bem como buscando restabelecer os cofres públicos, surgiram as ações regressivas.

E, assim, encontramos um elo entre as ações regressivas, que atuam na tutela da dignidade humana, e os direitos humanos, considerando [as] três dimensões dos direitos humanos: a liberdade inata; a igualdade inata; e o valor consubstancial do homem e de todos os homens, que implica a fraternidade inata. Esta tríade conforma os elementos estruturantes de um só núcleo - o feixe essencial, indissociável e interdependente que constitui a humanidade imanente ao homem e a todos os homens, e que atribui objetivamente à pessoa humana valor por si, ou seja, dignidade. É possível que o futuro revele outras dimensões, já que o universo é ilimitado, sendo também ilimitada a expressão do homem e de todos os homens no meio difuso de todas as coisas. Por isso, violar a dignidade humana é colocar o homem em situação desumana, ou seja, naquilo que avilta a sua condição humana existência biocultural.8

Para que seja mais bem compreendida toda a nossa pesquisa, transcrevemos, abaixo, o artigo 120 da Lei n. 8.213/91, que dispõe sobre as ações regressivas:

Art. 120. Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.

Notamos que o ajuizamento da ação regressiva não se trata de uma faculdade da Previdência Social. O verbo "proporá" se apresenta como um poder--dever, ou seja, uma obrigação imposta pelo legislador, ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de buscar o ressarcimento das despesas suportadas em razão da conduta culposa ou dolosa do empregador ou terceiros. "Com efeito, a primeira conclusão que se deve extrair do art. 120 da Lei n. 8.213/91 é no sentido de que esse preceito não criou qualquer direito em prol do INSS, mas sim um dever de agir."9

A possibilidade de ajuizamento da ação regressiva de natureza civil já tinha previsão legal no Código Civil de 1916, já que os artigos 159 e 1.524 do referido diploma traziam essa possibilidade. Vejamos:

Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.521 a 1.532 e 1.542 a 1.553.

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Art. 1.524. O que ressarcir o dano causado por outros, se este não for descendente seu, pode reaver, daquele por quem pagou, o que houver pago.

No entanto, a possibilidade de ajuizamento de ação regressiva acidentária (ARA) só foi possível com o advento do artigo 120 da Lei n. 8.213/91, conforme passaremos a explanar.

Para o autor do Código Civil de 1916, o jurista Clóvis Beviláqua,

O direito regressivo, de quem teve de ressarcir o damno causado por outrem...

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