Novos meios de memória: livros e leitura na época dos weblogs

AutorVera Dodebei
CargoDoutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora Associada I no PPGMS/UNIRIO. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq ?Memória Social, Tecnologia e Informação?. Pesquisadora em Produtividade e Pesquisa do CNPq
Páginas129-143

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Vera Dodebei Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ)

Professora Associada I no PPGMS/UNIRIO Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Memória Social, Tecnologia e Informação”

Pesquisadora em Produtividade e Pesquisa do CNPq

dodebei@terra.om.br

O bicho alfabeto

O bicho alfabeto tem vinte e três patas ou quase por onde ele passa nascem palavras e frases como frases se fazem asas palavras o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve

Paulo Leminski

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1 A construção da memória: o livro, a leitura, a escrita digital

O poema de Leminski nos convida a pensar a relação entre meios de memória, particularmente o que diz respeito à informação escrita, e a condição de permanência daquilo que se acumula ao longo do tempo, como a História nos sinaliza. Ao contrário do ditado popular “vale o escrito”, o bicho alfabeto passa, fica o que não se escreve. O medo da perda de informações visuais com as quais nos habituamos a conviver, sejam livros, fotografias, manuscritos, nos colocou a partir da década de 90 do século XX no mundo “memorioso”, em que a obsessão pela memória, como afirma Andréas Huyssen (2000), poderá levar a uma possível paralisação do processo de criação. O convite a voltar ao passado poderia ir mais longe à linha do tempo e nos conduzir à época anterior ao surgimento da era da tecnologia da escrita, quando a transmissão dos saberes era feita de forma oral, sem a preocupação com registros em suportes materiais, a não ser nossa memória individual. Esses dois meios de memória (a oralidade e a escrita) coexistem nos dias atuais e entram em disputa com uma nova mídia virtual do mundo digitalizado. À memória individual que ao invés de acumular processa para produzir novas informações, e à memória auxiliar criada pela sociedade da escrita representada por arquivos, bibliotecas e museus, juntamse a memória informática que transforma o visual e o oral em números.

O livro nos parece, neste cenário de conflitos que envolvem a produção de subjetividades e a constituição de memórias, o objeto adequado para investigar como a sociedade pensa o processo de transmissão de conhecimentos para o futuro. Os meios de memória do futuro serão cumulativos ou seletivos? Ao reunir autores que pudessem contribuir para um artigo sobre a aventura do livro como pensou Chartier (1998), desde sua criação até sua transformação como parece ocorrer nestes dias de virtualidade e digitalização, organizamos uma pequena biblioteca circunstancial para esse fim, e nela incluímos além dos autores já citados, Regina Zilberman com a obra Fim do livro, fim dos leitores? (ZILBERMAN, 2001); o número 142 da revista Tempo Brasileiro, intitulada O lugar do livro hoje (O lugar, 2000) que representa a coletânea de textos apresentados no colóquio internacional O lugar do livro: entre a nação e o mundo, realizado na Academia Brasileira de Letras entre 28 e 31 de agosto de 2000; a obra ficcional de Ray Bradbury (2003) – Fahrenheit 451, filmada em 1966 por François Truffaut; a obra clássica de Wilson Martins, A palavra escrita (MARTINS, 1957) e a obra de Alberto Manguel neste momento representada por três ensaios: A biblioteca à noite

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(MANGUEL, 2006), No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo (MANGUEL, 2000), e Uma história da leitura (MANGUEL, 1997).

A conversa que se seguirá possivelmente não esgotará esse tema complexo sobre a memória do mundo e muitos autores certamente poderão ser adicionados pelos próprios leitores, que assim, darão continuidade à discussão. A memória se constitui, quer seja ela individual ou coletiva, a partir do presente, por uma tensão entre duas ações: lembrar e esquecer, e estará sempre dialogando com os objetos que recortamos para analisar a condição do conhecimento na contemporaneidade. O texto deste artigo está organizado em três partes. Na primeira parte, enfrentaremos o objeto “livro”, seu surgimento na sociedade, sua importância para a transmissão dos saberes, o poder de controle de atitudes, como os homens–memórias criados por Bradbury em Fahrenheit 451 e seu possível ocaso face às tecnologias de suporte da informação. A segunda parte desatrelará a ação de ler de seu suporte mais tradicional e tratará a “leitura” como objeto independente, sugerindose, a partir das reflexões de Regina Zilberman, Alberto Manguel, Paulo Freire que somos constituídos para ler o mundo, não importa os mecanismos que nos valemos para alcançar esse objetivo. Na terceira e última parte, nos esforçamos para apresentar alguns indicadores de modos possíveis de existência de meios de memória no ambiente virtual, com comentários sobre o papel dos blogs e websites em relação à escrita firmada em papel.

2 O livro

“A valorização do leitor e da leitura parece chegar tarde demais: anunciase o final da era do livro, sua substituição por multimídias interativas, a metamorfose do consumidor de obras escritas no nerd internauta, aventureiro que percorre até agora desconhecidos universos virtuais” (ZILBERMAN, 2001, p. 105). Estas palavras de Zilberman serviriam também para questionar a existência das bibliotecas sem livros, a leitura dissociada do livro e a influência da tecnologia nos processos de ler, de transmitir e de acumular saberes.

Ao enfrentarmos a difícil história do livro, compreendemos que conceituar esse objeto apenas por sua forma ou por seu conteúdo não nos ajudaria a estabelecer as importantes relações que ele trava com a sociedade, a influência que exerce para o regime de liberdade de idéias e para a formação política e econômica do ocidente. Mas, certamente, não podemos nos furtar ao

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diálogo necessário entre a linguagem, a escrita e os meios de comunicação do pensamento. Segundo Spirkin (1972), a escrita constituiu a forma visual de fixar a linguagem, surgindo quando a sociedade já havia alcançado um nível elevado de desenvolvimento. Portanto, um produto normal da ampliação dos meios de intercomunicação das pessoas, que são estimuladas pelas necessidades práticas da vida social. A escrita é o resultado da atividade criadora e consciente dos seres humanos. Como linguagem articulada, adquire um caráter até certo ponto independente e constitui uma forma de atividade extremamente abstrata.

A escritura pictográfica evoluiu gradativamente no sentido da significação. Da representação completa do objeto, o homem passou à representação esquemática. Por sua vez, a escrita ideográfica ou hieroglífica constituiu um sistema de signos e regras acerca de seu emprego que serviu para comunicar um pensamento qualquer. Do ponto de vista do desenvolvimento do pensamento, o aparecimento do alfabeto significou que o homem chegou a ter a idéia de que a palavra consta de elementos particulares. O sistema alfabético, portanto, surgiu no estágio em que a linguagem fonética e o pensamento abstrato haviam alcançado seu pleno desenvolvimento. A escrita fonética, através da linguagem, se converteu em realidade material do pensamento. Então...

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