Os novos manicomios a ceu aberto: cidade, racismo e loucura/The new open sky asylums: city, racism, and madness.

AutorMenegat, Elizete Maria

Para uma introdução: cidade capitalista e subjetividade

Friederich Engels, Georg Simmel, Robert Park, Lewis Munford, Jane Jacobs, Mike Davis. Cada um ao seu modo, e ao seu tempo, observou que a configuração urbana moderna é um moinho tendencialmente destrutivo das formas de coesão social. Em 1845, o jovem Engels (1985) afirmava que a conduta individualista das massas, fortemente visível nas áreas centrais de grandes cidades, como Londres, era sintoma de uma sociedade doentia que tinha como fundamento das relações sociais a "guerra de todos contra todos".

A cidade e a urbanização modernas foram criadas a partir da divisão social e territorial do trabalho exigidas pela lógica competitiva de produção do valor, intrínseca ao moderno sistema capitalista de produção de mercadorias. No texto A metrópole e a vida mental, escrito em 1903, Simmel (1973) denominou de ar blasé uma dada característica comportamental a que tendem os indivíduos que vivem nas grandes cidades. A atitude blasé é uma atitude apática, insensível ou indiferente, que os sujeitos acabam incorporando a partir do universo impessoal das relações de troca dominadas pela relação-dinheiro: "Esse estado de ânimo [blasé] é o fiel estado subjetivo da economia do dinheiro interiorizada", afirmava Simmel (1973, p. 6).

Como equivalente geral, o dinheiro brutalmente reduz as diferenças qualitativas, de tudo e de todos, a um quantum de valor. As qualidades particulares dos sujeitos tendem a ser totalmente desvalorizadas em nome de uma cultura externa, objetivada a partir das trocas mediadas pelo dinheiro. "O dinheiro com toda sua ausência de cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores; arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade e sua incomparabilidade" (SIMMEL, 1973, p. 6).

As grandes cidades são a principal sede da produção, da troca e da acumulação de valor monetário. Por isso constituem, também, "a localização genuína da atitude blasé". Conforme Simmel (1973, p. 8), o processo violento de imposição de um modo de vida urbano, impessoal, vai consumir o sujeito internamente, "estirando os [seus] nervos brutalmente em uma e outra direção". A adoção desse comportamento competitivo e individualista por extensos segmentos das massas urbanas pode ser interpretado como o ponto de culminância de um dado patamar de acomodação do sofrimento psíquico, que se impõe ao indivíduo para que ele possa seguir disputando sua sobrevivência na moderna cidade capitalista.

A sobrevivência na cidade capitalista exige a formatação de uma subjetividade individualista, competitiva, inteiramente subordinada aos objetivos autômatos do trabalho abstrato mediado por tecnologias cada vez mais agressivas. Uma tal subjetividade somente é alcançada depois de um contínuo e doloroso processo interno de rupturas e perdas, em grandes doses, daquela face da sensibilidade humana capaz de reconhecer, generosamente, o outro como semelhante.

Não se trata de discursar em favor de um retorno à aldeia e às formas comunitárias de reprodução da vida que existiram no passado--como, até certo ponto, fizeram os culturalistas da Escola de Chicago. Até porque essas formas socioespaciais foram constituídas pelas necessidades materiais e espirituais da humanidade em um tempo histórico singular e irreversível. Mas é forçoso reconhecer que a cidade capitalista, mais do que as suas ancestrais da Antiguidade greco-romana, produziu rupturas definitivas com um certo espírito de coletividade essencial à coesão humana. É certo que a forma violenta de reprodução da vida urbana moderna, com seu rol de exigências materiais e socioespaciais permanentemente modificadas, tem produzido quantidades de doentes mentais como em nenhuma época anterior.

Sobre urbanização moderna e loucura em massa

A estrutura socioespacial moderna é imanente ao moderno sistema mundial de produção de mercadorias. A moderna divisão territorial, entre centro e periferia, cidade e campo, foi "forjada a ferro, fogo e sangue" nos séculos XV, XVI e seguintes. Sua constituição é, portanto, indissociável da constituição do nascente sistema mundial de produção de mercadorias e da estrutura de um mundo centrado no trabalho abstrato que, então, emergia (MARX, 1982). Dada a sua compulsão interna para a expansão, esse sistema gradativa e violentamente precisa destruir, por onde passa, a forma e o conteúdo socioespacial diversificado das coletividades autônomas, tais como aldeias e comunidades.

As aldeias guardavam formas coletivas e orgânicas da reprodução material e espiritual da vida, como a produção de alimentos e outros bens, as redes de trocas diretas, os laços afetivos, as culturas subjetivas. Esses ingredientes garantiam o humus necessário para nutrir a coesão e o sentimento coletivo de pertencimento e de reconhecimento mútuo entre os indivíduos que compartilham os recursos de uma dada base territorial.

Não por acaso, entre meados do século XVII e do século XVIII, na Europa, a urbanização forçada de enormes contingentes de expropriados das terras de uso comunal coincidiu com os processos de enlouquecimento massivo examinados por Foucault (1978). Uma vez que foram violentamente separadas da propriedade dos meios de subsistência, essas massas, física e subjetivamente massacradas, mais cedo ou mais tarde, iniciaram sua marcha rumo à cidade. Aqui, viram-se diante das dificuldades de sobrevivência no universo urbano ultracompetitivo onde precisavam individualmente disputar a venda da sua força de trabalho para adquirir, através de dinheiro, os meios de viver, incluindo a moradia (MARX, 1982).

Uma vez que o sistema capitalista não pode garantir a todos nem sequer o acesso ao mundo do trabalho explorado, numerosos excedentes foram transformados em hordas de miseráveis e de loucos. As práticas violentas de exclusão dos seus corpos, inutilizados pela sociedade do trabalho abstrato, através da tortura e do encarceramento em prisões, hospícios e asilos, estão descritas nos documentos de época analisados por Foucault (1978).

Na mesma época, no século XVIII, ainda dentro do período denominado de "acumulação primitiva" do moderno sistema mundial, o "banzo" era reconhecido, na África e na América, como a doença mental crônica que acometia, especialmente, grandes quantidades de africanos que, subjetivamente, não resistiam ao insuportável fardo de violências que começava com a destruição da aldeia, a desterritorialização e o translado intercontinental, culminando com os horrores da escravização (KANANOJA, 2018). Eram muitos os negros e negras que, acometidos pelo banzo, se suicidavam ou entravam em profundo e irreversível estado de depressão psicológica depois de espoliados, vendidos, estuprados, estropiados, escravizados e submetidos às durezas do trabalho, à fome e ao sistema de vigilância permanente em mocambos e senzalas. Os que recorriam ao suicídio utilizavam práticas de afogamento, autossufocação, envenenamento e armas brancas, ou deixavamse morrer pela inanição e tristeza (ODA, 2008). A crueldade dessa máquina de destruição física e subjetiva dos indígenas e dos negros escravizados instalou-se nas Américas com um único objetivo: produzir lucros para o sistemamundo capitalista que, então, surgia governado pelos exclusivos interesses de enriquecimento de uma elite branca, masculina e eurocêntrica.

A loucura, afirmou Foucault (1978, p. 163) em conhecida passagem, "não pode ser encontrada no estado selvagem. A loucura só existe em uma sociedade". Como fenômeno socialmente produzido, a loucura apresenta características próprias da civilização ou sociedade em cujo caldo fermentou. Muito embora a doença mental e seus sintomas tenha sido descrita na Antiguidade, é unicamente com a emergência da sociedade capitalista que ela se dissemina e se estrutura como epidemia entre as massas empobrecidas. A elevada frequência de distúrbios mentais, especialmente entre as massas urbanizadas, é, portanto, um fenômeno que emergiu na modernidade e se estruturou de modo crônico e permanente na sociedade capitalista.

Nesse sentido, há um fio condutor que liga tragédias de confinamento em massa e eliminação física dos portadores de transtornos mentais, tais como: 1) as "naus dos loucos", que eram embarcações lotadas de portadores de distúrbios mentais e abandonadas à deriva dos grandes rios que cortavam as principais cidades europeias, nos séculos XV e XVI; 2) a internação em massa dos loucos em prisões e asilos das grandes cidades europeias que se industrializavam e se modernizavam no século XVIII; 3) a elevada incidência do banzo entre a força de trabalho negra escravizada nas periferias colonizadas pelo eurocentrismo, como o Brasil; 4) o encarceramento...

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