Novos institutos relacionados ao tráfico de pessoas no setor têxtil: o princípio do non-efoulemente a teoria da cegueira deliberada

AutorLuiz Fabre
CargoProcurador do Trabalho, Mestrando em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas44-61

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I A atração de migrantes estrangeiros pelo setor têxtil: um ciclo vicioso

No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o governo da Coreia do Sul estabeleceu programas de emigração com diversos países da América

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do Sul, entre os quais Brasil, Argentina e Bolívia, principiando a chegada de sul-coreanos — então um dos povos mais pobres do mundo — em São Paulo, onde se instalaram nos bairros da Liberdade, Brás e Bom Retiro, zona central da cidade, sendo sorvidos principalmente pelo setor têxtil, segmento econômico cuja mão de obra prescinde de maiores qualificações1, além de caracterizar-se pelo baixo vulto do investimento necessário para se estabelecer uma oficina própria (FAVARETTO, 2011).

De início, estes sul-coreanos ativaram-se perante empresários de origem predominantemente judaica, mas progressivamente adquiriram teares, máquinas de costura e overloques, passando a constituir oficinas onde todos os membros da família trabalhavam dia e noite. Já na década de 1970, dominavam o comércio têxtil em São Paulo e a expansão levou--os a contratar outros coreanos como empregados, posteriormente substituídos por bolivianos que se sujeitavam a trabalhar, comer e dormir no mesmo local de trabalho. Era a continuidade do sweating system (sistema de suor), expressão cunhada na primeira metade do século XIX e ainda em voga para descrever o modelo iníquo de produção caracterizado pela confusão entre o local de trabalho e de habitação, fator que, aliado a um sistema de pagamento de salários por produção redunda em jornadas exaustivas e superexploração2 de mão de obra, tratando-se de um fenômeno tão atávico ao segmento têxtil quanto o façonismo3.

Após os bolivianos, vieram outros povos latino-americanos, sobretudo paraguaios e peruanos. O ciclo de superexploração se realimenta e se expande: migrantes estrangeiros passam a constituir oficinas e a explorar a força de trabalho de seus conterrâneos; estes, por sua vez, sonham com a oportunidade de se tornarem os próximos superexploradores do setor têxtil.

Sem levar em consideração a peculiar situação dos trabalhadores fronteiriços, estimamos, em agosto de 2012, um universo de pelo menos trezentos mil bolivianos, paraguaios e peruanos laborando no Brasil, dos quais somente um terço encontra-se em situação migratória regular, com massiva concentração na região metropolitana de São Paulo e expansão pelo interior do estado. Não são números oficiais, haja vista a preponderância de migrantes em situação clandestina e a inexistência de pesquisas censi-

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tárias ou de bancos de dados com metodologia científica4, mas estimativas que tomam por base informações consulares oficiosas e o crescimento dos atendimentos realizados por organizações não governamentais de tutela de estrangeiros.

Nesta população, muitos têm noções meramente rudimentares do idioma português; nem todos dominam plenamente, sequer, o espanhol, comunicando-se em aimará, quíchua ou guarani.

Este tipo de migrante sempre teve a Argentina e a Espanha como principais destinos, sendo um truísmo afirmar que as sucessivas crises econômicas no país portenho aliada à hodierna crise que assola o mercado de trabalho ibérico se traduzirão na incrementação do fluxo de povos andinos e paraguaios para o Brasil, com diversas rotas de ingresso no território nacional: Brasileia (AC), Guajará-Mirim (RO), Cáceres (MT), Corumbá (MS), Ponta Porã (MS) e Foz do Iguaçu (PR) são alguns pontos de entrada em meio à extensa área brasileira de fronteira seca (TIMÓTEO, 2011).

II Oiter do trabalho de estrangeiros no setor têxtil
II i. A etapa pré-contratual

O recrutamento de trabalhadores andinos e paraguaios pode partir da iniciativa de parentes estabelecidos no Brasil, da intermediação promovida por agências de emprego informalmente vinculadas a donos de oficinas no País ou da atividade direta de oficineiros (BIGNAMI, 2012). Mais comumente, inicia-se com anúncios de emprego no Brasil prometendo salários de US$ 150 a US$ 200 mensais. Tais anúncios são veiculados nas localidades de recrutamento por emissoras de rádio em idiomas de origem indígena, informando telefones para contato. Paralelamente, inúmeros anúncios com ofertas de vagas para costureiros com ou sem experiência são visíveis nas localidades de origem dos migrantes, bem como na feira que ocorre aos domingos na praça Cantuta, em São Paulo, no bairro do Pari (GAUTÉRIO, 2007).

Na sequência, o trabalhador é orientado quanto ao itinerário a percorrer, arcando com as despesas de transporte ou assumindo dívidas com recru-tadores na casa dos US$ 1.000 (BIGNAMI, 2012). Inexiste, até o momento, qualquer definição clara das futuras condições de trabalho, e os únicos

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dados de que o migrante dispõe se referem ao nome do contato no Brasil e à forma como se encontrará com este.

Chegando ao terminal de ônibus da Barra Funda (zona oeste de São Paulo), seguindo orientações prévias, o trabalhador encontra o contato no Brasil, que lhe pede os documentos, que não serão devolvidos tão cedo, e o conduz ao bairro do Brás. Informações sobre o migrante são checadas e o trabalhador é encaminhado para a oficina onde irá trabalhar e habitar em beliches, espremido com outras famílias, com o maquinário da oficina e com pilhas de tecidos. Como regra, a oficina é de propriedade de algum conterrâneo.

II ii. A etapa contratual

Ao chegar a seu destino, o trabalhador migrante firma contrato verbal, comumente com a definição de um prazo de ao menos três meses durante o qual trabalhará sem receber salários, o que se prestará a ressarcir despesas de alojamento, alimentação e, eventualmente, do transporte desde a localidade de origem. Ademais, tratar-se-á de um período de "experiência" e de "aprendizagem", durante o qual o migrante aprenderá a costurar. Ao final do prazo, realiza-se um novo acerto.

Às 7h inicia-se o trabalho, que dura até a meia-noite, de segunda a sábado, com intervalos às 8h para o desjejum, ao meio-dia para almoço, às 18h para o chá e às 22h para o jantar, refeições estas sempre realizadas no local de trabalho e às expensas dos trabalhadores. O ofício consiste em atender a encomendas de confecções de outros conterrâneos ou de comerciantes de origem preponderantemente coreana. As peças serão remuneradas à oficina a um valor médio de R$ 1,50 a R$ 2,00 cada. Na oficina, os trabalhadores ignoram a identidade do responsável pela encomenda, como ele é ou onde está estabelecido; porém, todos sabem que, no caso de uma peça se perder, esta será cobrada da oficina pelo preço de venda, isto é, será descontado o trabalho de 20 peças para pagar uma (GAUTÉRIO, 2007).

Além da jornada exaustiva e da parca remuneração, a rotina de trabalho é caracterizada pela informalidade contábil: valores de receitas e despesas são lançados em caderninhos, nos quais também são anotados os nomes dos trabalhadores e valores a lhes serem creditados ou debitados, considerando-se os gastos com alimentação, hospedagem e transporte. Quanto ao ambiente de trabalho, a degradação é manifesta: nos fundos das oficinas, são erguidos cortiços que abrigam dezenas de trabalhadores em espaços apertados; a higiene deixa bastante a desejar, a fiação elétrica é improvisada, não há que se falar em conforto térmico ou em medidas de prevenção a

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incêndios, botijões de gás são instalados em espaços confinados e há poucos banheiros para o uso dos trabalhadores alojados; o maquinário não conta com proteções contra acidentes e as bancadas, assim como as cadeiras, não possuem regulagem ergonômica. Muitos estabelecimentos contam com passagens secretas e alçapões, a possibilitar a ocultação de pessoas em uma eventual emergência, como no caso de uma inesperada visita da Fiscalização. É frequente, em tal ambiente, a presença de crianças, algumas auxiliando no trabalho e outras, bebês, sentadas no colo da mãe durante a realização dos serviços. No tocante à documentação, os trabalhadores já tiveram seus passaportes retidos assim que travados os primeiros contatos com o responsável pela oficina.

Rádios como a estação pirata Meteoro FM trazem notícias e divulgam informes de interesse dos trabalhadores: "Meteoro FM, cien por ciento usted. Você, que trabalha de sol a sol nas oficinas de costura, sabia que na década de 1980 o governo boliviano fez acordo com o governo chinês para que os chineses desenvolvessem a agricultura do nosso país?", fala o locutor, que trata indiferentemente chineses e sul-coreanos. "Em vez de trabalhar a terra, os chineses foram para a cidade explorar a tecelagem e a costura. Acabaram expulsos e foram para a Argentina e para o Brasil, levando junto os costureiros bolivianos, que depois trouxeram outros, que trouxeram outros, que trouxeram outros e até hoje continuam trazendo. Essa forma de trabalhar que nossos patrícios conhecem é dos chineses. Os chineses fazem os bolivianos trabalharem como eles, mas não precisa ser sempre assim. Nós temos o direito de sonhar com dias melhores. Você que passa anos e anos costurando e nunca comprou seu carro, sua casa, nós não podemos passar a vida sendo tratados como estrangeiros. Todos somos seres humanos. Você que está ilegal, vamos nos encontrar todos no Dia do Imigrante e fazer uma marcha por anistia e direitos humanos." (GAUTÉRIO, 2007)

II...

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