Os “novos” direitos socioambientais

AutorJuliana Santilli
CargoPromotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal, sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA), mestre em Direito pela Universidade de Brasília e doutoranda pela PUCPR.
Páginas173-200

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Considerações iniciais

Este artigo analisa o surgimento e a consolidação dos “novos” direitos socioambientais, fortalecidos a partir da Constituição de 1988 e da democratização do país. O processo constituinte brasileiro deu lugar a grandes inovações em relação à tradição constitucional, possibilitando a inserção, na Carta Magna, de capítulos e de artigos que plantaram as sementes dos chamados “novos direitos”, constituindo as bases para a evolução do que denominamos “direitos socioambientais”. Ao analisarmos os dispositivos constitucionais dedicados ao meio ambiente, cultura, povos indígenas e quilombolas e a função socioambiental da propriedade, destacamos a sua interpenetração recíproca e propomos uma leitura sistêmica e integrada do texto constitucional.

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1 Contexto histórico da Assembléia Nacional Constituinte e os “novos” direitos socioambientais

Os anos 80 foram de grande significado para o processo de redemocratização da América Latina. O recrudescimento das ditaduras militares nas décadas anteriores, que deu espaço para inúmeros golpes militares no Brasil, Argentina, Chile, Bolívia e em outros países do subcontinente, cedeu lugar a processos mais ou menos concomitantes de democratização.

O modelo autoritário não havia sido capaz de dar respostas às expectativas de melhoria nas condições de vida dos povos da região, além de engendrar sistemas repressivos e corruptos de governo. Evidentemente, a democratização guardou características próprias em cada país. Na Argentina, foi fruto de grande clamor social, e de mobilizações da sociedade argentina, na esteira da malsucedida tentativa de recuperação das Ilhas Malvinas por meio de uma aventura militar. O Brasil, coerente com a sua tradição histórica, seguiu o rumo dado pela expressão do ex-presidente Ernesto Geisel, de forma “lenta, segura e gradual”.

Em 1982, houve as primeiras eleições diretas para os governos estaduais, com uma acachapante vitória das forças de oposição. Em 1984, ocorreu a mais impressionante mobilização popular da história brasileira, por intermédio da campanha pelas eleições diretas para a presidência da República, que, no entanto, frustrouse diante da não-aprovação da emenda constitucional proposta pela oposição. Mesmo assim, essa mobilização provocou significativa rachadura no partido governista, abrindo espaço para a vitória da chapa formada por Tancredo Neves e José Sarney no colégio eleitoral pelo qual se escolhia o presidente. Tancredo caiu doente na véspera de sua posse e morreu poucos dias após a posse de Sarney no cargo. Este, por sua vez, que havia presidido o partido de sustentação à ditadura, teve de levar adiante o programa da chamada Aliança Democrática, sob a forte pressão da expectativa popular. E o ponto central desse programa consistia na convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

A fase final do regime militar havia sido marcada pela emergência de inúmeros movimentos sociais e populares, que trouxeram à cena política não apenas a questão das liberdades democráticas, mas também um conjunto de bandeiras e reivindicações setoriais, que iam desde o restabelecimento do direito de greve,Page 175passando pela reforma agrária, até a demarcação das terras indígenas, ou seja: à pauta propriamente institucional – recuperação das prerrogativas dos poderes legislativo e judiciário, eleições diretas em todos os níveis, fim da censura à mídia e às atividades artísticas, anistia irrestrita às vítimas da ditadura – associou-se uma ampla agenda social – liberdade de organização sindical, reforma agrária, reconhecimento dos direitos das minorias étnicas e melhoria das condições de vida dos segmentos sociais mais sofridos da população.

A notável sucessão de campanhas mobilizadoras que levaram à derrocada do regime, passando pelas eleições regionais de 1982, diretas-já, eleição de Tancredo e convocação da Constituinte, possibilitou a articulação entre temas gerais e específicos, levados pelos diversos movimentos para dentro do processo constituinte. Os vinte e um anos de ditadura haviam represado os anseios da sociedade brasileira, que o caráter gradual da democratização não havia sido capaz de diluir. Nesse contexto, um conjunto de temas que emergiram no cenário mundial das décadas imediatamente anteriores acabou legitimado e inserido na pauta dos trabalhos constituintes: direitos das minorias, especialmente mulheres e negros, combate à discriminação de gênero e ao racismo, proteção aos portadores de deficiências físicas, e aos direitos de crianças, adolescentes, idosos e índios, reconhecimento da diversidade étnica e cultural, proteção ao patrimônio público e social, ao patrimônio cultural e ao meio ambiente.

Apesar do caráter limitado da convocação da Assembléia Constituinte, com a atribuição de poderes constituintes ao Congresso ordinário e bicameral (um terço do Senado Federal, por exemplo, não havia sido eleito com os demais constituintes, em 1986, mas participou igualmente da elaboração e votação da nova Constituição), e apesar de fortes pressões em contrário (por exemplo: dos chamados ruralistas, contra a reforma agrária, e das empresas mineradoras e segmentos militares, contra os direitos indígenas), o Congresso Constituinte não pôde recusar o tratamento de todos esses temas, embalados pela expressiva mobilização popular e participação social.

Assim, o processo constituinte brasileiro deu lugar a grandes inovações em relação à tradição constitucional, possibilitando a inserção na Carta Magna de capítulos e de artigos que plantaram as sementes dos chamados “novos direitos”,Page 176constituindo, também, as bases para a evolução do que aqui denominamos “direitos socioambientais”. Nos anos seguintes à promulgação da nova Constituição, a novidade e generosidade conceituais dos “novos direitos” passou a permear a legislação infraconstitucional, além de influenciar fortemente a elaboração de novas constituições e de emendas constitucionais em vários países do subcontinente, como Colômbia, Paraguai, Equador, Bolívia, Nicarágua e Guatemala, consolidando internacionalmente esses novos paradigmas.

Os “novos” direitos rompem com os paradigmas da dogmática jurídica tradicional, contaminada pelo apego ao excessivo formalismo, pela falsa neutralidade política e científica e pela excessiva ênfase nos direitos individuais, de conteúdo patrimonial e contratualista, de inspiração liberal. Os “novos” direitos, conquistados por meio de lutas sociopolíticas democráticas, têm natureza emancipatória, pluralista, coletiva e indivisível, e impõem novos desafios à ciência jurídica, tanto do ponto de vista conceitual e doutrinário, quanto do ponto de vista de sua concretização. São direitos “históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes”2 , e não se enquadram nos estreitos limites do dualismo público-privado, inserindo-se dentro de um espaço público não-estatal. Doutrinariamente, são classificados como direitos de “terceira dimensão” por serem de titularidade coletiva, e não individual3 .

Os novos “direitos socioambientais” se inserem no contexto desses novos paradigmas jurídicos, com base nos quais procuraremos discorrer sobre os dispositivos constitucionais dedicados ao meio ambiente, à cultura, aos povos indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade, interpretandoos de forma sistêmica e integrada.

2 Meio ambiente: novo capítulo e a transversalidade na Constituição

O capítulo sobre o meio ambiente (artigo 225 e seus diversos incisos e parágrafos) da Constituição assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao poder público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. É a primeira vez, na históriaPage 177brasileira, que uma Constituição dedica um capítulo inteiro ao meio ambiente, fundamentado no princípio do desenvolvimento sustentável – conceito desenvolvido com base no relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, intitulado “Nosso Futuro Comum”, coordenado pela então primeiraministra da Noruega, Gro Brundtland. Segundo tal conceito, o desenvolvimento sustentável é “aquele que satisfaz as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”. Tal conceito passou a permear todo o texto constitucional e leis ordinárias brasileiras.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é um direito humano fundamental. Embora não esteja arrolado no artigo 5 da Constituição, entre os direitos e garantias fundamentais “explícitos”, a doutrina já reconhece o seu caráter fundamental, baseada em uma compreensão material do direito fundamental, cujo conteúdo invoca a construção da liberdade do ser humano.

O direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado já é reconhecido em convenções e documentos internacionais4 e é considerado como um direito humano de “terceira geração”, em virtude de sua natureza coletiva, de forma que seja diferenciado dos direitos humanos de “primeira geração”, que são os direitos civis e políticos, de natureza individual e vinculados à liberdade, à igualdade e à propriedade, e dos direitos humanos de “segunda geração”, que são os direitos sociais, econômicos e culturais, associados ao trabalho, saúde, educação, etc. Mais recentemente, a teoria das “gerações de direitos” passou a ser criticada pela doutrina, por induzir ao equívoco de...

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