Os novos contornos do bacharelismo liberal: uma análise da trajetória de Candido Motta (1870-1942)
Autor | Marcos César Alvarez, Fernando Salla |
Cargo | Professor Livre Docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo/Sociólogo, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) |
Páginas | 86-120 |
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p86/
8686 – 120
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Os novos contornos do bacharelismo
liberal: uma análise da trajetória
de Candido Motta (1870–1942)
Marcos César Alvarez1
Fernando Salla2
Resumo
A proposta do artigo consiste em analisar alguns aspectos da atuação intelectual e política de
membros das elites jurídicas brasileiras na Primeira República (1889–1930), nos quadros do as-
sim chamado bacharelismo liberal. A Antropologia Criminal ou Nova Escola Penal pretendeu
inovar no campo tanto do Direito quanto da Medicina no período, o que permitiu a projeção
intelectual e política de alguns médicos e juristas defensores dessa “escola”. Apresentamos aqui
a trajetória de Candido Motta que, além de contar com relações de pertencimento às elites, con-
seguiu se projetar como intelectual, professor da Faculdade de Direito em São Paulo e, sobretudo,
como político, a partir da condição de um dos principais defensores e disseminadores da Nova
Escola Penal em São Paulo.
Palavras-chave: Juristas. Direito Penal. Criminologia. Cultura Jurídica.
Se vogliamo che tutto rimanga come
è, bisogna che tutto cambi
Giuseppe Tomasi di Lampedusa
1 Professor Livre Docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo; pesquisador do
Núcleo de Estudos da Violência da USP; bolsista de produtividade em pesquisa pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Sociólogo, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 39 - Mai./Ago. de 2018
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Introdução: os juristas como intelectuais no Brasil3
Os prossionais da lei podem ser chamados de intelectuais?4 Se, na
atualidade, os diversos operadores do Direito atuam, tanto no âmbito da
política e do Estado quanto no campo da sociedade e da cultura, tendo por
base um saber especializado – desempenhando, desse modo, junto com
outros prossionais das ciências, o papel de “intelectuais especícos”, tal
como uma vez denido por Michel Foucault (1979) –, no passado da
América Latina, os juristas já ambicionaram um espaço muito mais amplo
de atuação. Efetivamente, advogados e juristas tiveram participação deci-
siva nos processos de independência e de formação dos Estados nacionais
latino-americanos, mas igualmente sua inuência no campo da cultura
não foi menor, uma vez que os graduados em Direito, em meados do sé-
culo XIX, eram os letrados por excelência, vistos como portadores de um
saber superior, que os habilitava tanto aos assuntos do Estado, quanto à
reexão sobre a sociedade e à atuação cultural (PERDOMO, 2008).
Em relação à formação dos bacharéis e ao desenvolvimento das carrei-
ras jurídicas, a situação brasileira apresenta algumas particularidades, ten-
do em vista os demais países latino-americanos. Ao passo que, na América
espanhola, os estudos jurídicos foram estabelecidos já no século XVI, no
Brasil colonial o ensino jurídico permaneceu subordinado à metrópole,
tanto no que diz respeito à legislação vigente, quanto à formação das bu-
rocracias locais e à produção e difusão das ideias jurídicas. A formação
universitária dos estudantes brasileiros ocorria, sobretudo, na Universi-
dade de Coimbra, sendo essa dependência da formação das elites locais
um importante instrumento de subordinação política frente à metrópole
(VENÂNCIO FILHO, 1982). Desse modo, a partir da Independência,
a criação dos cursos jurídicos no País – em Olinda-Recife e em São Pau-
lo – buscou criar condições para a formação de uma nova elite política
3 O presente trabalho foi elaborado a partir de fontes em parte levantadas no âmbito da pesquisa Construção
das Políticas de Segurança e o Sentido da Punição, São Paulo (1822–2000), realizada pelo Núcleo de Estudos
da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa
no Estado de São Paulo (FAPESP), dentro do Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID).
Agradecemos a participação nesse projeto dos pesquisadores Eder Marques Loiola e Kelly Ludkiewicz Alves
que foram responsáveis pela coleta de algumas informações sobre Cândido Motta.
4 Retrabalhamos, nesta introdução, a discussão apresentada em Alvarez (2003, 2014).
Os novos contornos do bacharelismo liberal: uma análise da trajetória de Candido Motta (1870–1942) |Marcos César Alvarez;
Fernando Salla
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local, embora paradoxalmente Coimbra continuasse servindo de modelo
institucional para as faculdades brasileiras e a cultura jurídica portuguesa
tenha permanecido como inuência dominante no País, principalmente
durante a primeira metade do século XIX (MACHADO NETO, 1969;
SIMÕES NETO, 1983). Outra particularidade brasileira consistiu no fato
de que a dominância dos intelectuais do Direito prolongou-se ainda com
a República, sendo que o ensino jurídico passou por importante renovação
nas últimas décadas do século XIX, sobretudo com a reforma de Benjamim
Constant, em 1891, que pôs m ao monopólio de Recife e São Paulo e
viabilizou a criação de faculdades livres em diversos estados.
Antonio Cândido (1956) já havia apontado para o papel dominante
dos juristas no século XIX como intérpretes por excelência da sociedade
brasileira. Sem dúvida, a renovação do ensino jurídico e as mudanças na
política e no Estado, com a República, levaram, por um lado, a que bacha-
réis e juristas diversicassem seus horizontes intelectuais e seus espaços de
atuação nas décadas seguintes. No âmbito do Direito Penal, por exemplo,
a recepção das discussões que ocorriam na Europa em torno dos trabalhos
de Cesare Lombroso e de seus seguidores, incorporadas pelos juristas bra-
sileiros como sendo a “Nova Escola Penal” (CASTRO, 1890) ou “a Escola
Positiva” – entre outras denominações, em oposição à assim chamada “Es-
cola Clássica” de Direito Penal – abriram espaço para novos debates dou-
trinários e igualmente para iniciativas legais e institucionais (ALVAREZ,
2003). Por outro lado, com a República, tanto as faculdades de Direito
foram perdendo gradativamente a hegemonia em termos de formação po-
lítica e cultural das elites locais, em proveito de maior especialização do
ensino jurídico e de uma formação mais prossional dos bacharéis, quanto
passaram a sofrer a concorrência de médicos, de educadores, de engenhei-
ros e de outros prossionais na busca de um novo paradigma de interpre-
tação e de modernização do País. A competição crescente dos “homens de
ciência” no período recongurou a atuação tradicional do bacharel liberal,
legado do século anterior (HERSCHMAN, 1994; SCHWARCZ, 1993;
SÁ, 2006), mas essa própria disputa acabou disseminando, nas décadas se-
guintes, certo desinteresse pelo estudo desses setores das elites ao longo do
século XX. O “bacharelismo” tornou-se sinônimo de saber retórico e vazio
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