O novo mercado e as práticas diferenciadas de governança corporativa: exame de legalidade frente aos poderes das bolsas de valores

AutorEduardo Alfred Taleb Boulos e Fernando Szterling
Páginas96-113

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1. Introdução: o Novo Mercado e as Práticas Diferenciadas de Governança Corporativa

O mercado de capitais brasileiro vem passando por uma crise de grandes proporções, que pode ser constatada pelo confronto entre o desempenho recente da Bolsa de Valores de São Paulo - BOVESPA e o seu desempenho em anos anteriores. A título exemplificativo, pode-se mencionar que o número de companhias listadas na BOVESPA, que atingiu 550, em 1996, hoje oscila em torno de 440, tendo assim regredido ao nível dos anos 80; o volume negociado caiu de mais de US$ 191 bilhões em 1997, para, aproximadamente, US$ 101 bilhões em 2000 e US$ 65 bilhões em 2001; o indicador de giro de mercado, que sinaliza a liquidez na BOVESPA, ultrapassou 0,90 no final de 1997, ao passo que encerrou 2001 por volta de 0,301; enfim, o índice BOVESPA encerrou o ano de 2001 com uma queda de 11,02%.2

Vários fatores estruturais do nosso ordenamento jurídico contribuem para esses dados desalentadores. Primeiramente, deve-se ressaltar a fraca proteção legal dos acionistas minoritários, agravada pela reduzida eficácia das normas protetivas dos seus direitos, evidenciada pela recente sucessão de abusos que se seguiram à transferência do controle de várias companhias, não coartadas a tempo pelo Poder Judiciário e pela Comissão de Valores Mobiliá-

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rios - CVM.3 Acrescente-se, ainda, que a reforma sofrida em 1997 pela "Lei das Sociedades por Ações" (Lei 6,404, de 15.12.1976), fragilizou ainda mais os direitos dos acionistas minoritários, no intuito de maximizar os ganhos do Estado com a alienação do controle das sociedades de economia mista no programa de privatiza-ções do governo federal.

O fraco desempenho da BOVESPA também se explica por fatores conjunturais, como a diminuição da atividade económica em quase todo o globo; a crise argentina; a crise energética brasileira; a aceleração da transferência dos negócios sobre valores de companhias brasileiras para Bolsas estrangeiras (sobretudo a New York Stock Exchange, mediante o lançamento de American Depositary Receipts); a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras - CPMF nas operações do mercado de capitais;4 e, finalmente, a intensificação do processo de fechamento de capital das companhias, causada pela expectativa de que esse processo seria dificultado, como de fato foi, pela recente reforma da Lei das Sociedades por Ações, aprovada pela Lei 10.303, de 31.10.2001.

Os principais méritos da Lei 10.303/ 2001 foram restabelecer alguns dos direitos dos acionistas minoritários, que haviam sido tolhidos pela reforma de 1997, bem como lhes conferir alguns novos direitos.

É verdade, entretanto, que o conjunto de direitos conferidos aos minoritários pela Lei das Sociedades por Ações ainda está aquém do que seria adequado ao efetivo fortalecimento do nosso mercado de capitais.

Em meio a esses esforços para reanimar nosso mercado de capitais, a reação mais incisiva5 foi empreendida pela BOVESPA, ao expedir uma série de diplomas normativos que concedem novos direitos aos acionistas minoritários e adotam um nível de transparência na divulgação de informações que é qualitativa e quantitativamente mais apurado do que o da legislação atual. A normativa da BOVESPA, em conjunto com as modificações trazidas pela Lei 10.303/2001, promove um significativo avanço nos direitos dos minoritários e nas práticas de divulgação de informações aos investidores, que pode efetivamente elevar o valor de mercado das companhias abertas e reanimar o mercado de capitais brasileiros nos próximos anos.

Os diplomas expedidos pela BOVESPA são o Regulamento de Listagem do Novo Mercado e o Regulamento de Práticas Diferenciadas de Governança Corporativa, aprovados pelo Conselho de Administração da BOVESPA, através das Resoluções de ns. 264/2000 e 265/2000.

A primeira resolução cria um segmento especial de negociação de valores mobiliários na BOVESPA, o "Novo Mercado", submetendo as companhias que venham a ele aderir a regras bastante rigorosas. A título exemplificativo: é proibida a emissão de ações preferenciais; pelo menos 25%

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(vinte e cinco por cento) das ações não devem ser de propriedade do controlador; estendem-se a todos os acionistas os benefícios auferidos pelo acionista controlador ao alienar o controle, através da realização de oferta pública aos minoritários, o denominado tag along; as demonstrações financeiras devem obedecer às normas de contabilidade americanas (US GAAP) ou internacionais (IAS GAAP); o acionista controlador deve realizar uma oferta de compra de todas as ações em circulação pelo valor económico, em caso de fechamento do capital ou cancelamento do registro de negociação no Novo Mercado; os acionistas minoritários têm direito de eleger a maioria dos membros do conselho fiscal.

A última resolução, por sua vez, prevê dois níveis de adoção de práticas de governança corporativa. Essa resolução prevê procedimentos a serem adotados por aquelas companhias que, apesar de ainda não estarem dispostas a ingressar no Novo Mercado, desejam melhorar as relações com investidores e, conseqiientemente, valorizar suas ações. No denominado "Nível 1", as companhias comprometem-se com práticas voltadas à melhoria na prestação de informações e à manutenção da dispersão acionária. Nò "Nível 2", mais próximo do Novo Mercado, devem ser adicionalmente adotadas outras práticas, dentre as quais destacam-se a já explicada imposição de tag along, em caso de alienação do controle, e o dever do acionista controlador de realizar uma oferta de compra de todas as ações dos demais acionistas pelo valor económico, em caso de fechamento do capital ou de descontinuidade das práticas de governança corporativa.

Vale ainda ressaltar que os conflitos surgidos no âmbito das companhias listadas no Novo Mercado e das companhias que venham a aderir ao Nível 2 das Práticas Diferenciadas de Governança Corporativa-serão submetidos a uma câmara de arbitragem especializada, o que tende a conferir eficácia às normas propostas.

Os valores mobiliários emitidos por, companhias no Novo Mercado ou aderentes aos níveis de governança corporativa certamente serão mais atraentes aos investidores, de modo a trazer benefícios aos seus emissores, consistentes em um maior valor de mercado da companhia, associado a um menor custo de captação de recursos, além de maior liquidez aos papéis. Aliás, são essas expectativas que têm sido o maior estímulo à adesão aos regulamentos. Prova disso é que, contrastando com a queda do índice BOVESPA observada no último ano (-11,02%), o IGC - índice de Ações com Governança Corporativa Diferenciada, que reflete a cotação das empresas listadas nos; Níveis Diferenciados de Governança Corporativa e no Novo Mercado, elevou-se em 1,09%.

O governo, reconhecendo a importância desse projeto da BOVESPA, já estendeu apoio através de regulação expedida pelo Conselho Monetário Nacional - CMN, que ampliou os limites de investimento das entidades fechadas de previdência privada nas companhias abertas que tenham aderido às novas regras expedidas pela BOVESPA,6 além de conceder financiamentos por meio do Banco Nacionalde Desenvolvimento Económico e Social - BNDES, condicionados à adesão ao Novo Mercado.

A importância e os aspectos inovadores da iniciativa da BOVESPA tornam necessária uma detida análise jurídica. Nesse sentido, o presente artigo propõe-se a analisar a legalidade das normativas em apreço, tendo em vista os limites dos poderes da BOVESPA para expedir os regulamentos mencionados, alterá-los e, com base neles, impor sanções às companhias abertas, seus controladores, administradores e membros do conselho fiscal. O esclarecimento desses pontos exige que se compreenda a natureza jurídica da relação existente entre a BOVESPA, de um lado, e as pessoas

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sujeitas à imposição de sanções, de outro lado.

Nesse sentido, serão efetuadas no presente artigo breves considerações preliminares sobre a natureza jurídica, história e função das Bolsas de Valores no Brasil, o que permitirá compreender a finalidade dos poderes atribuídos a essas instituições pela legislação vigente. Depois, serão traçadas as principais linhas da regulação do mercado de capitais, em meio à qual se insere a normativa em exame. O próximo passo é analisar a competência da BOVESPA para expedir tal normativa. Serão então examinados o poder regulamentar e o poder disciplinar das Bolsas de Valores, esclarecendo-se a sua plena compatibilidade com o princípio constitucional da legalidade, o seu conteúdo e os seus limites. Logo após, será demonstrada a natureza também contratual das relações estabelecidas entre a BOVESPA e os destinatários dos regulamentos em exame, bem como as suas repercussões sobre a imposição de sanções e alterações aos regulamentos. Enfim, serão expostas, em resumo, as conclusões atingidas no decorrer deste estudo.

2. História e natureza jurídica das Bolsas de Valores

A normativa que será examinada no decorrer deste artigo insere-se no quadro mais amplo do Direito do Mercado de Capitais, que não pode ser bem compreendido sem que se tenha em vista a conjunção de forças privadas e estatais na regulação da matéria, em que desempenham papel central as Bolsas de Valores.

Em sua evolução histórica, as Bolsas de Valores sempre foram associações profissionais de corretores e comerciantes, regidas pelo Direito Privado, tendo por objeto a...

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