O Novo CPC, a Teoria da Causa Madura e a sua Aplicação ao Processo do Trabalho ? Questões Polêmicas
Autor | Ben-Hur Silveira Claus |
Páginas | 23-73 |
O Novo CPC, a Teoria da Causa Madura e a Sua
Aplicação ao Processo do Trabalho – Questões
Polêmicas
Ben-Hur Silveira Claus*
Só a concepção pragmática da ciência permite
romper com a circularidade da teoria.
Boaventura de Sousa Santos
* Mestre em Direito. Juiz do Trabalho na 4ª Região (RS).
(1) CLT: “Art. 765. Os juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento
rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas.”
(2) A proposta de se compreender o art. 765 da CLT como norma de sobredireito foi defendida por nós no artigo “O incidente
de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC de 2015 e o Direito Processual do Trabalho”, publicado na Revista
LTr, São Paulo, vol. 80, n. 01, jan de 2016, p. 81.
1. Introdução: Os Males da Demora do Tem-
po do Processo e a Teoria da Causa Madura
Na mitologia, a esnge tem o poder de devorar
quem não seja capaz de decifrar-lhe o enigma. A
tempestiva realização do direito opera como enigma
da esnge no âmbito da Jurisdição. A jurisdição tar-
dia é incapaz de responder ao desao da realização
tempestiva do direito. O tema da causa madura evo-
ca esse desao histórico que acompanha a Jurisdição
desde sempre.
Numa época em que a noção de tempo acelera-
-se sob o inuxo do desenvolvimento da tecnologia
cada vez mais veloz, enfrentar os males da demo-
ra do tempo do processo constitui um dos maiores
desaos contemporâneos da Jurisdição. A teoria da
causa madura emerge nesse contexto enquanto con-
cepção voltada ao enfrentamento do compromisso
do Estado com a tempestividade da Jurisdição. A
razoável duração do processo somente viria a se
tornar garantia constitucional do cidadão com o ad-
vento da Emenda Constitucional 45, de dezembro
de 2004. Entretanto, a lei ordinária há muito já as-
similara a necessidade de garantir a celeridade do
processo judicial.
No âmbito do Direito Processual do Trabalho,
a natureza alimentar do crédito trabalhista fez
o legislador celetista positivar, no art. 765 da
CLT, o dever funcional do juiz de velar pela rá-
pida solução da causa.(1) Esse preceito estrutural
da CLT, porém, nem sempre é compreendido na
sua completa signicação. Isso porque, regra geral,
dido como se o seu comando normativo estivesse
limitado a conferir ao magistrado apenas poderes
instrutórios necessários à condução do processo na
fase de conhecimento, quando a locução “os juízes
do trabalho velarão pelo andamento rápido das
causas” e a faculdade de “determinar qualquer dili-
gência necessária” devem ser compreendidas como
destinadas também à fase de execução, aí incluída a
própria satisfação do direito reconhecido.
irradia ecácia para todo o subsistema jurídico labo-
ral, incumbindo o magistrado – a par das providências
necessárias à adequada instrução da causa – das ini-
ciativas necessárias à satisfação do julgado.(2) O alento
hermenêutico que essa interpretação recebeu quando
da ordem de classicação dos créditos no sistema jurí-
dico nacional, ganhou novo impulso quando a Cons-
tituição Federal de 1988 elevou os direitos trabalhistas
à hierarquia de garantias fundamentais (CF, art. 7º),
capitulando-os no título II da Constituição, que trata
dos direitos e garantias fundamentais.
Expressa ou implicitamente, a maioria dos sub-
sistemas processuais adotam a concepção dida-
norma fundamental do processo comum segundo
a qual “as partes têm o direito de obter em prazo
24 – A Teroria da Causa Madura no Processo do Trabalho
razoável a solução integral do mérito, incluída a
atividade satisfativa”.
Comecemos pelo exame do contexto histórico
em que a técnica processual do salto de um grau
de jurisdição é introduzida no sistema recursal do
processo civil brasileiro.
2. O Contexto Histórico em que Surge O § 3º
A teoria da causa madura ingressa no âmbito re-
cursal do direito processual comum brasileiro no
contexto das minirreformas do CPC de 1973. São
sucessivas alterações legislativas que viriam a car
conhecidas como as minirreformas do CPC. As mi-
nirreformas têm início com a Lei n. 8.952/1994, que
introduz no sistema a possibilidade da antecipação
possibilidade de provimento liminar nas ações de
obrigação de fazer e de não fazer previsto no art.
461 do CPC de 1973. A efetividade e a tempesti-
vidade sintetizam a perspectiva das minirreformas
do CPC Buzaid.
A minirreforma que introduz a teoria da causa ma-
dura no sistema recursal do processo comum brasi-
leiro ocorre mediante a edição da Lei n. 10.352/2001,
diploma legal que acrescenta o § 3º ao art. 515 do
CPC de 1973, com a seguinte redação: “§ 3º. Nos ca-
sos de extinção do processo sem julgamento do méri-
to (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide,
se a causa versar questões exclusivamente de direito
e estiver em condições de imediato julgamento.”
Nada obstante a prevalência que a hermenêutica
confere à interpretação sistemática e à interpretação
teleológica, o elemento histórico opera como fator
subsidiário ao processo de compreensão da lei, na
medida em que a legislação surge em determinado
contexto histórico e “o legislador é um lho do seu
tempo; fala a linguagem do seu século, e assim deve
ser encarado e compreendido”, na lição clássica de
Carlos Maximiliano.(3)
As Exposições de Motivos integram, enquanto espé-
cie, o elemento histórico que a hermenêutica jurídi-
ca identica pelo gênero de Materiais Legislativos. Na
(3) Hermenêutica e aplicação do direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 113.
(4) Direito, Trabalho e Processo em transformação. São Paulo: LTr, 2005. p. 194-197.
(5) Comentários ao Código de Processo Civil. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 431.
(6) Lezioni di dirio processuale civile. 4 ed. Napoli: Jovene, 2002. p. 492.
Exposição de Motivos do anteprojeto que deu origem
à Lei n. 10.352/2001, a proposta de introdução da
técnica do salto de um grau de jurisdição no âm-
bito do recurso de apelação está assim justicada:
“Cuida-se de sugestão que valoriza os princípios
da instrumentalidade e da efetividade do processo,
permitindo-se ao tribunal o julgamento imediato do
mérito, naqueles casos em que o juiz não o tenha
apreciado, mas sendo questão exclusivamente de
direito, a causa já esteja em condições de ser imedia-
tamente solucionada.”
A pesquisa realizada por Estêvão Mallet no Di-
reito Comparado revela que a técnica do recurso
per saltum – salto de um grau de jurisdição – já es-
teve e está presente no sistema jurídico de diversos
países: Ordenações Filipinas; Ordenações Manue-
linas; CPC da Bahia; França; Alemanha; Cantão da
Genebra; Bélgica; Portugal; Espanha; Argentina;
México; Colômbia; República Dominicana; Chile;
Califórnia – EUA.(4)
Nas Ordenações Filipinas, provido o recurso con-
tra sentença terminativa, ao tribunal competia, em
vez de mandar “tornar o feito ao juiz, de que foi
apelado”, ir “por ele em diante e julgá-lo nalmen-
te” (Ordenações Filipinas, Livro III, Título LXVIII).
A previsão das Ordenações Filipinas é, por isso,
identicada por José Carlos Barbosa Moreira como
antecedente remoto da Lei n. 10.352/2001, que intro-
duziu a técnica do salto de um grau de jurisdição no
sistema recursal cível brasileiro pela dicção do § 3º
No direito processual italiano, há hipóteses em
que, a exemplo da previsão do art. 515, § 3º, do
CPC brasileiro de 1973, o tribunal julga matéria não
examinada pelo juiz de primeiro grau. Andrea Pro-
to Pisani observa, por isso, que o sistema recursal
italiano não tem por princípio o duplo grau de ju-
risdição, mas a recorribilidade da sentença de pri-
meiro grau.(6) Cleber Lúcio de Almeida sustenta que
o sistema recursal brasileiro, com o advento do §
do sistema italiano, pois em ambos os sistemas o
tribunal pode conhecer de matéria não examinada
pelo juízo originário, o que signica que o tribunal
O Novo CPC, a Teoria da Causa Madura e a sua Aplicação ao Processo do Trabalho – 25
poderá atuar como instância única para determina-
das matérias da causa.(7)
Embora presente em diversos países, a introdu-
ção do recurso per saltum promove uma ruptura na
tradição da sistemática recursal do direito proces-
sual civil brasileiro, na medida em que a adoção
dessa técnica processual, ao autorizar a supressão
de instância e eliminar a nulidade decorrente dessa
supressão instância agora autorizada, vai recongurar
a compreensão do princípio do duplo grau de jurisdi-
ção, redesenhando o sistema recursal nesse particular.
Essa alteração paradigmática ocorre no pressuposto
de que o direito processual contemporâneo – a erudita
reexão é de João Humberto Cesário – deve se abrir
para certas faixas de tolerância, nas quais, por exemplo,
um pedido possa ser excepcionalmente analisado pela
primeira vez no juízo ad quem, sem que isso necessaria-
mente importe em nulidade processual.(8)
Uma vez que antes do advento do § 3º do art. 515
do CPC de 1973 havia violação ao princípio do du-
plo grau de jurisdição quando o tribunal adentrava
no mérito da causa sem que o juízo originário já
tivesse feito tal exame de mérito, a praxe judiciária
consagrou a locução supressão de instância como uma
elipse da locução nulidade processual por supressão de
instância. A locução supressão de instância é frequen-
temente encontrada na estrutura das ementas de
julgados em que se examina essa espécie de alega-
ção de nulidade processual.
Nada obstante tenha sido comum a armação de
que a utilização da técnica processual do recurso per
saltum não mais congurava supressão de instância
depois do advento do § 3º do art. 515 do CPC de
1973, essa forma de expressão do fenômeno jurídico
congurado nesses casos somente pode ser admiti-
da como metáfora; na verdade, trata-se de uma elip-
se, para expressar o fenômeno de forma resumida.
Isso porque há supressão de instância quando se
aplica a técnica do recurso per saltum. O que não há
mais é nulidade processual nessa hipótese. O pre-
ceito legal em questão legitimou suprimir um grau
de jurisdição, eliminando assim a nulidade proces-
sual que essa supressão de instância caracterizava
no sistema anterior à Lei n. 10.352/2001.
(7) Direito Processual do Trabalho. 6 ed. São Paulo: LTr, 2016. p. 658.
(8) Provas e recursos no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2010. p. 200.
(9) Lições de direito processual civil. 13 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 93.
(10) Essa parte da ementa poderia ser então assim redigida: “(...) NULIDADE PROCESSUAL POR SUPRESSÃO DE INSTÂN-
CIA. INEXISTÊNCIA. INCIDÊNCIA DO ART. 1.013, § 3º, DO CPC. (...).”
Vale reproduzir a didática lição de Alexandre Frei-
tas Câmara, porquanto o jurista identicou precisa-
mente o fenômeno processual que ocorre quando se
aplica a técnica do recurso per saltum. Ao comentar
que o § 3º do art. 515 do CPC de 1973 visa permitir
ao tribunal julgar o mérito na hipótese de sentença
terminativa, o autor arma: ter-se-á, aqui, uma supres-
são de instância, excepcionando-se a incidência do princí-
pio do duplo grau de jurisdição.(9)
Noutras palavras, é possível dizer: há supressão
de instância nessa hipótese; mas não há mais nuli-
dade processual nessa hipótese. Assim, o enunciado
que descreve o fenômeno de forma completa é de-
clarar que não há nulidade processual por supressão de
instância quando o tribunal aplica o preceito do § 3º
na vigência do CPC de 2015, quando o tribunal apli-
ca o preceito do § 3º do art. 1.013 desse Código.(10)
Bem se vê que a inovação legislativa em questão
modica a teoria dos recursos, alterando as ideias
até então existentes acerca do princípio do duplo
grau de jurisdição, de modo a provocar a revisão da
noção de supressão de instância e suas consequên-
cias no processo. Daí a necessidade de estudar como
a teoria jurídica processual brasileira recebe essa
mudança de paradigma no âmbito do processo civil.
Antes, porém, é de bom aviso caracterizar o regime
legal anterior e o funcionamento do sistema recursal
no período que antecedeu a Lei n. 10.352/2001.
3. O Regime Legal Anterior à Introdução
Para bem compreender o alcance da introdução do
denominado salto de um grau de jurisdição na teo-
ria geral dos recursos cíveis, é útil recuperar a ideia
de que a aplicação da técnica processual do recurso
per saltum caracterizava nulidade processual no sis-
tema recursal anterior. A compreensão que se tinha
acerca do princípio do duplo grau de jurisdição era
tida como incompatível com a possibilidade de o
tribunal examinar o mérito quando o órgão a quo
não o tivesse feito anteriormente. Assim, tratando-
-se de sentença terminativa do feito, o tribunal não
poderia examinar o mérito, após afastar o decreto
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