As novas regras da compra e venda internacional de mercadorias a convenção de Viena de 1980: uma visão de conjunto

AutorFrancisco Augusto Pignatta
CargoDoutor em Direito (Universidade de Estrasburgo e UFRGS) Advogado/consultor em Curitiba, Lisboa e Paris Membro da Câmara de Comércio do Brasil na França (Paris)
Páginas6-16

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Em março de 2013 o Brasil formalizou o depósito do instrumento de adesão à Convenção de Viena sobre contratos inter-nacionais de compra e venda de mercadorias (CISG)1 perante o Secretário-Geral da ONU. Assim, a partir de 1º de abril de 2014 o Brasil contará com novas regras referentes aos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, pois a CISG passará a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro.

À primeira vista, o direito brasileiro não necessitaria desta ratificação, pois as regras que regem os contratos de compra e venda são indicadas pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (antiga LICC)2 e a proteção jurídica das partes é assegurada.

Porém, esta primeira impressão logo se desfaz diante de uma análise mais aprofundada do nosso direito dos contratos. No direito brasileiro, o contrato de compra e venda é regulado à mínima. Tentando suprir esta deficiência, a jurisprudência criou e fez multiplicar os deveres das partes, sobretudo do vendedor, mesmo diante de contratos entre dois comerciantes. Fruto deste fenômeno, o juiz brasileiro tende a conceder uma proteção um tanto excessiva à parte mais frágil economicamente, a aplicar o princípio da boa-fé com caracteres típicos de uma relação de consumo, a ampliar o dever de informação e as garantias contra a evicção, dentre outros.

Neste contexto, a jurisprudência brasileira não se inibiu em aplicar regras do contrato de consumo a todos os tipos de contratos, descaracterizando por vezes a própria separação existente entre sistemas jurídicos distintos: contratos regidos pelo Código Civil, contratos regidos pelo Código de Defesa do Consumidor3. Mesmo que a intenção do juiz tenha sido louvável, vemos hoje que o resultado é, por vezes, discutível.

Diante deste panorama, a Convenção de Viena (CISG) surge como um conjunto de regras mais adaptado às relações comerciais internacionais. Apesar de conter certas lacunas e imperfeições, mais de 80 países já a ratificaram, incluindo todos os países do Mercosul, a grande maioria dos países europeus (exceto Portugal e Ingla-terra), Japão, Rússia, China, EUA, Canadá, México, Austrália, Coreia do Sul, Turquia etc4.

A CISG tem uma abordagem econômica do contrato. Mesmo que ela consagre o princípio da boa-fé para interpretar suas regras e tem como princípios inspiradores a lealdade e a cooperação entre as

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partes, o objetivo da Convenção é o de favorecer a execução do contrato.

Com a adoção da CISG pelo Brasil, nosso direito passará a contar com um regime jurídico específico aplicável ao contrato internacional de compra e venda de mercadorias. Quando determinado contrato internacional fizer parte do domínio de aplicação da Convenção de Viena, o juiz brasileiro deverá aplicar suas regras como sendo um conjunto de normas completo e autossuficiente5, buscando sempre a uniformização na interpretação do texto convencional, a ser realizada de modo autônomo, sem interferência do direito interno do foro.

A estrutura da Convenção é organizada em forma de certas regras de conteúdo geral e outras regras especiais. Apesar das regras de conteúdo geral não serem cláusulas gerais do modo como conhecemos no nosso Código Civil, elas têm uma função semelhante6. A CISG constitui um conjunto de normas, no sentido civilista do termo, isto é, uma exposição metódica e dedutiva de um ramo do direito7 como conhecem os países que adotam o sistema de códigos.

Seu campo de aplicação, contido na primeira parte do texto convencional, compreende a compra e venda de mercadorias exceto navios, barcos e aeronaves. São excluídos, também, a compra e venda de eletricidade e os contratos de consumo. Nas disposições gerais encontram-se regras de interpretação da Convenção as quais devem promover a uniformidade de sua aplicação. Ela consagra o princípio da boa-fé e se apoia nos usos e costumes comerciais.

Na segunda parte da Convenção encontram-se as regras referentes à formação do contrato. A terceira parte refere-se à compra e venda de mercadorias propriamente dita, às obrigações do vendedor, às obrigações do comprador, às transferências de riscos e às disposições comuns sobre as obrigações do vendedor e do comprador. No final, uma quarta parte refere-se às disposições finais.

Durante a elaboração da Convenção, seus redatores encontraram certa dificuldade para se chegar a um consenso em diversas matérias. Em muitos casos, houve a necessidade de recorrer a certos compromissos entre posições divergentes8 – divergência ideológica entre os países ocidentais e aqueles do então sistema comunista, divergências econômicas entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento e divergências jurídicas entre os países do sistema da Common Law e os do sistema da Civil Law. Por esta razão encontramos termos vagos, deixando ao juiz certa liberdade de apreciação, o qual sempre deverá buscar uma interpretação uniforme.

É importante notar que a Convenção de Viena contém termos pouco familiares ao jurista brasileiro, mas em nada contrário ao nosso ordenamento jurídico. Termos como incumbência, falta de conformidade, contravenção essencial, mitigação do prejuízo pelo credor etc., são oriundos de práticas do comércio internacional e que encontraram na Convenção uma roupagem legislativa. Entretanto, a interpretação destes termos, bem como de toda a Convenção, deve ter como base o que prevê o artigo 7 (1): “ter-se-á em conta o seu caráter internacional bem como a necessidade de promover a uniformidade da sua aplicação”.

Para uma visão geral do texto convencional (101 artigos), será aqui seguida a divisão feita pela própria Convenção: parte I (Campo de Aplicação e Disposições Ge-rais), parte II (Formação do Contrato), parte III (Compra e Venda de Mercadorias) e Parte IV (Disposições Finais).

Parte I: Campo de aplicação e disposições gerais (artigos 1 a 13)

A primeira das quatro partes em que é dividida a Convenção contém normas introdutórias e de conteúdo geral. Sua importância refere-se a certas precisões concernentes ao contrato e sua formação, mas também sobre o campo de aplicação convencional. A primeira parte, por sua vez, está divida em dois capítulos. O primeiro deles trata do campo de aplicação da Convenção (artigos 1 a 6). O segundo trata de disposições gerais (artigos 7 a 13).

Capítulo I – Campo de aplicação

Para se aplicar o texto da Convenção é necessário que o contrato seja considerado internacional e, também, que o gênero do contrato faça parte do campo de aplicação convencional. Estes são os dois « volets » tradicionais de aplicabilidade de uma norma, ou seja, o primeiro que trata do campo de aplicação no espaço, o segundo do campo de aplicação material.

No primeiro dos casos, a Convenção será aplicada caso o vendedor e o comprador tenham seus estabelecimentos em Estados diferentes9 e que estes Estados sejam parte da Convenção (artigos 1 e
10), exceto os casos previstos nos artigos 90, 92 a 94 da CISG. Outra hipótese de aplicabilidade da Convenção ocorre “quando as regras de direito internacional privado conduzam à aplicação da lei de um Estado contratante” (art. 1.1.b).

O contrato, objeto da Convenção, é o da compra e venda inter-nacional de mercadorias. Todavia, a Convenção exclui de sua aplicabilidade certos tipos de contrato de

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compra e venda. Assim, os contratos de consumo, as vendas feitas em leilão, as vendas feitas em processo executivo, a venda de valores mobiliários, títulos de crédito e moeda, de navios, de barcos e de aeronaves e os contratos de venda de eletricidade são excluídos do campo de aplicação da Convenção (art. 2). A razão destas exclusões tem-se às especificidades de cada um destes contratos. A Convenção não se aplica, também, aos contratos em que a parte preponderante da obrigação consiste na prestação de serviços (art. 3).

Outra matéria excluída do campo de aplicação da Convenção refere-se à validade do contrato, de suas cláusulas ou dos efeitos que o contrato pode ter sobre a proprie-dade das mercadorias vendidas. Nestes casos, é o direito nacional aplicável que solucionará a questão (art.
4)10. Enfim, a Convenção de Viena exclui, também, do seu campo de aplicação litígios envolvendo a responsabilidade do vendedor pela morte ou lesão corporal causadas pelas mercadorias (art. 5).

Por outro lado, a
Convenção é aplicada aos contratos
futuros (art. 3.2), exceto nos casos em que o contraente que fez a encomenda forneça uma parte essen-cial dos elementos materiais necessários para a fabricação ou produção da mercadoria (art. 3.1)11.

O último dos artigos deste capítulo I concerne um dos princípios consagrados pelo texto convencional: o da autonomia da vontade. O alcance deste princípio no texto convencional consiste na liberdade das partes em indicar a lei aplicá-vel ao contrato ou excluir a própria Convenção ou derrogar qualquer de suas disposições (art. 6). Decorre desta previsão que as partes podem indicar que o contrato ou determinadas cláusulas contratuais serão regidas por alguma lei nacional ou pela própria Convenção. Pode ocorrer, portanto, que certas cláusulas contratuais poderão ser regidas pela CISG e outras por um direito nacional.

Capítulo II – Disposições gerais

É no capítulo II da parte I da Convenção de Viena que se encontram as regras referentes à sua interpretação como também outras...

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