Novas Perspectivas do Direito do Consumidor

AutorFátima Nancy Andrighi
CargoMinistra do Superior Tribunal de Justiça
Páginas11-22

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Excertos

"Embora a reforma do CDC seja útil para confirmar e reforçar as regras e princípios gerais aplicáveis aos contratos de crédito, a verdade é que nosso ordenamento jurídico já contém regras gerais aptas a combater o superendividamento"

"Em relação ao superendividamento, mais importante do que uma legislação específica, deve haver consciência e sensibilidade do juiz na sua aplicação, ciente da nova realidade social que o cerca, inclusive para identificar situações corriqueiras de mera inadimplência contratual, não sujeitas ao regime jurídico aplicável aos superendividados"

"Deve-se avaliar o endividamento global do consumidor, tratando o processo como uma espécie de revisão concursal, na qual prevalecerá a dignidade do devedor, sem desconsiderar, no entanto, os direitos e interesses da totalidade de credores"

"Cumpre ao Poder Executivo desenvolver políticas de governo visando à educação financeira da população, de sorte a que tenham condição de planejar o seu orçamento, bem como identificar situações que possam vir a se tornar uma fonte futura de endividamento descontrolado"

"Há de se exigir a boa-fé do consumidor na assunção de dívidas, coibindo a tomada de empréstimos ou financiamentos em que fique claro o intuito deliberado de inadimplência"

"Deve-se reprimir a concessão de financiamentos de forma temerária, em que a instituição financeira - geralmente mediante utilização de contratos de adesão - tolhe o direito de informação do consumidor e conclui a celebração do contrato sem expor ao mutuário as reais condições e os riscos do negócio"

"Cabe ao Poder Judiciário coibir a contratação de empréstimos baseados em encargos abusivos, que, além de prejudicar o próprio mutuário contratante, induzem a elevação das taxas"

"Não há como imaginar um código moderno e atual para defesa do consumidor que não contemple em detalhes as relações comerciais via internet"

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Poucas iniciativas legislativas foram tão bem recebidas pela sociedade como o Código de Defesa do Consumidor. Em poucos momentos nacionais se conseguiu promover, de maneira tão eficiente, a conscientização da população de modo geral e definitivo a respeito da importância de sua participação no desenvolvimento social, da necessidade de resguardo de seus direitos e, principalmente, da sua força como agente de uma relação jurídica de consumo.

Desde o advento do CDC, as decisões judiciais tomadas com base nesse diploma legal trouxeram e ainda trazem sérias consequências sociais e econômicas para a vida dos jurisdicionados.

Todavia, desde a promulgação do CDC já se vão mais de 23 anos, sendo certo que neste período o mundo passou por enormes e significativas transformações, inclusive no âmbito das relações de consumo, que se tornaram muito mais complexas.

Daí a bem-vinda iniciativa de reforma do CDC, cujos trabalhos foram distribuídos em três grandes áreas de relevância: (i) disposições gerais e comércio eletrônico; (ii) ações coletivas; e (iii) superendividamento, objeto, respectivamente, dos Projetos de Lei do Senado 281/12, 282/12 e 283/12.

No que tange ao superendividamento, a reforma aborda fenômeno praticamente inexistente à época da concepção do CDC, mas que, desde então, tornou-se uma realidade, fruto da maior estabilidade econômica do país, da ascensão social de boa parte da população brasileira e do crescimento exponencial da oferta de bens de consumo.

Diante disso, o crédito - cuja oferta também experimentou enorme crescimento, não apenas em volume, mas também em modalidades - assumiu papel fundamental para a denominada "sociedade de consumo".

Ao longo do tempo, porém, a oferta desmedida - e irresponsável - de crédito foi acentuando o endividamento dos consumidores, tornando-se um fenômeno social crônico, hoje conhecido como superendividamento, ou seja, a impossibilidade geral do devedor, pessoa física, consumidor e de boa-fé, de honrar as suas dívidas atuais e futuras.

Não se trata, pois, de uma inadimplência pontual e passageira, mas da impossibilidade permanente do consumidor de quitar suas dívidas, que tendem a crescer de maneira desmedida, criando um ciclo vicioso que, no limite, resulta em verdadeira exclusão social, dada a impossibilidade de suprimento de necessidades básicas como alimentação, vestuário e moradia.

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Por isso a relevância não apenas jurídica, mas também social de se estudar e combater esse fenômeno que ameaça inclusive direitos constitucionalmente assegurados, de dignidade da pessoa humana e de acesso ao crédito. Na realidade, o superendividamento põe esses dois direitos fundamentais em rota de colisão, exigindo que se proceda a uma ponderação dos interesses envolvidos, de maneira a não esvaziar, mas equilibrar os valores em conflito.

Atualmente, constata-se no Brasil o desvirtuamento completo da função social do crédito. A lucratividade das instituições financeiras alcança patamares elevadíssimos. Mesmo após a intervenção estatal verificada no último ano, os juros continuam em percentuais exagerados para os padrões internacionais, tendo sido verificada, ainda, a elevação das taxas bancárias para fazer frente a essa queda do custo financeiro.

Houve, é bem verdade, grande avanço na facilitação de acesso ao crédito: hoje é possível contratar um empréstimo no caixa eletrônico ou pedir um cartão de crédito por telefone, muitas vezes sequer sem análise da situação financeira do mutuário, bastando apenas prévio cadastro. Essa facilitação também se deu nas formas de contratação: o crédito consignado, por exemplo.

Todavia, o cumprimento da função social do crédito não se resume em se lhe facilitar o acesso. Essa iniciativa deve ser acompanhada de políticas econômicofinanceiras concretas, que assegurem a oferta de crédito a custos razoáveis.

A situação realmente inspira cuidados, tanto que o legislador se movimentou para regular expressamente a matéria, caminhando, nos termos do Projeto de Lei 283/12, no sentido de inserir no CDC uma seção específica dispondo sobre a prevenção do superendividamento, cujo escopo principal é promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira do consumidor, de forma a evitar a sua exclusão social e o comprometimento do seu mínimo existencial (art. 54-A).

Para tanto, os arts. 54-B e seguintes enumeram diversas obrigações a serem cumpridas pelo fornecedor de crédito - em especial o dever de informar em detalhes ao consumidor as condições e os riscos do empréstimo - autorizando expressamente a desistência imotivada da contratação no prazo de sete dias.

Na realidade, essas obrigações impostas ao fornecedor de crédito em grande parte já existem. Embora a reforma do CDC seja útil para confirmar e...

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