Nova perspectiva da competência criminal da justiça do trabalho pela técnica processual dos deveres jurídicos de não fazer
Autor | Bruno Gomes Borges da Fonseca |
Cargo | Procurador do Trabalho, lotado na Procuradoria Regional da 23ª Região |
Páginas | 13-25 |
Page 14
Especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional (EC) n. 45/2004, travou-se debate acerca da competência criminal da Justiça do Trabalho decorrente de crimes praticados em virtude da relação laboral. O posicionamento vitorioso concluiu pela incompetência. Esta tese foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao decidir a Medida Cautelar na Ação Diretade Inconstitucionalidade (ADI-MC) n. 3.684.
Pragmaticamente, entretanto, questões criminais são deslocadas para a Justiça do Trabalho com a judicialização de conflitos laborais como efeito da impossibilidade de separação de contextos fáticos. Esta constatação ensejou a problematização da pesquisa.
A técnica processual de dever jurídico de não fazer permite reconhecimento da competência criminal ou, minimamente, análise de questões criminais pela Justiça do Trabalho, sem violar o decidido na ADI-MC n. 3.684 pelo STF? Este é o problema enfrentado neste trabalho.
A pesquisa justificou-se por parecer existir outras situações, possibi-litadoras de interpretação distinta, sem afrontar os efeitos vinculantes do decidido na ADI-MC n. 3.684. No caso de ratificação desta hipótese, é mais uma maneira de forjar de eficácia as decisões proferidas no processo do trabalho.
Objetivou-se com este artigo: (i) analisar a competência criminal da Justiça do Trabalho após a EC n. 45/2004 em cotejo com decisão do STF na ADI-MC n. 3.684; (ii) analisar as técnicas de deveres jurídicos de fazer e não fazer como mecanismos processuais no sistema jurídico brasileiro; (iii) verificar a possibilidade de a técnica de dever jurídico de não fazer deslocar para a Justiça do Trabalho a apreciação de questões criminais.
A análise da dogmática jurídica nacional seguiu como referencial teórico, naturalmente, respaldada pelos juízos crítico e interpretativo. Como método, adotou-se o dialético e como técnica a documental indireta na modalidade pesquisa bibliográfica. A abordagem é jurídica e interdisciplinar, com passeios pelos direitos constitucional e processual.
A competência da Justiça do Trabalho cingia-se aos casos decorrentes da relação empregatícia, conforme antiga redação do art. 114 da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988
Page 15
(CF/1988). Com a promulgação da EC n. 45/2004, aquele ramo do Poder Judiciário aumentou seu rol competencial e abarcou, a princípio, todas as ações sucedidas do liame de trabalho.
A mudança semântica do dispositivo constitucional implicou modificação do sentido do texto e, conseguintemente, da competência da Justiça do Trabalho. A relação de trabalho é gênero e engloba toda atividade labo-rativa humana. Vínculos mantidos entre Estado e servidores públicos (estatutários, celetistas e contratados temporariamente)1, contratos de estágios, lavor doméstico, trabalho rural, avulso, eventual, autônomo e liame empregatício, integram-na, por exemplo.
Esses vínculos, portanto, são abrangidos pela relação de trabalho. A atual redação do art. 114 da CF/1988 aludiu ao gênero para fixação da competência. Logo, todas as espécies de lavor estão abrangidas, ao menos numa primeira leitura.
A relação de trabalho é oxigenada por conflitos potenciais, pluralistas e de impressionante complexidade. Contempla desde cotidianos (e relevantes) pleitos de horas extras e anotações de Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) até pretensões envolventes de movimentos paredistase assédio moral. Dela, inclusive, podem surgir questões criminais. Tanto isto é verdade que o Código Penal (CP) consignou título referente aos crimes praticados contra a organização do trabalho.
Em muitas situações, idêntica base fática implica corolários múltimos, com pretensões tradicionalmente trabalhistas, outras tipicamente civis e importes criminais. A prática de trabalho em condições análogas à de escravo ilustra bem esse contexto. Gera, concomitantemente, efeitos laborais e responsabilidades civil e penal.
À luz desse panorama, aflorou-se debate sobre a possibilidade de a Justiça do Trabalho julgar ações decorrentes de crimes advindos da relação de trabalho. Duas posições surgiram. A primeira concluiu pela competência daquele órgão do Poder Judiciário aplicar pena e outras medidas criminais. A segunda apostou na incompetência.
A posição favorável à competência criminal da Justiça do Trabalho sustenta, entre outros, os seguintes argumentos:
(i) o art. 114,I, da CF/1988 concede à Justiça do Trabalho competência para todas as ações decorrentes da relação de trabalho. Por efeito, a responsabilidade criminal integra seu rol competencial;
Page 16
(ii) antes da EC n. 45/2004, o texto do art. 114 da CF/1988 reportava--se a vínculo entre trabalhador e empregador, ou seja, fixava a competência da Justiça do Trabalho pela espécie (relação empregatícia). Após aludida emenda, o marco competencial foi estipulado pelo gênero (relação de trabalho). Portanto, interpretação retrospectiva do dispositivo constitucional possibilita concluir pela competência criminal da Justiça Laboral;
(iii) a modernidade importou descortinamento de outras frentes além do trabalho subordinado. Outrora, empregados (mantenedores de vínculos empregatícios) passaram a trabalhar como autônomos, eventuais, avulsos etc. A Justiça do Trabalho descabe permanecer intacta neste novo paradigma e deve avançar sobre essas novas relações, advindas das transformações do mundo laboral. Assim, justifica-se a competência para apreciar crimes decorrentes da relação de trabalho;
(iv) questões advindas do mesmo fato devem ser apreciadas pelo mesmo órgão judiciário, sob risco de decisões contraditárias e inefeti-vidade2. É a teorização utilizada pelo STF sobre unidade de convivcção, apresentada no Recurso Extraordinário (RE) n. 438.639, relatoria Ministro Carlos Britto. Assim, os efeitos criminal e laboral decorrentes de único fato (relação de trabalho) são de competência da mesma Justiça (Justiça do Trabalho); e
(v) o habeas corpus tem matriz constituconal. É inegável, porém, seu enfoque criminal. A CF/1988, ao inseri-lo, explicitamente, no rol competencial da Justiça do Trabalho (art. 114, IV), denota intenção de incluir questões penais no catálogo de matérias a serem apreciadas por aquele órgão judiciário.
Os opositores à competência criminal da Justiça do Trabalho, resumidamente, aduzem, entre outras, as seguintes alegações:
(i) os juízes do trabalho (e, também, os membros do Ministério Público do Trabalho - MPT) são despreparadados para aplicar o direito e processo penais3. O próprio concurso público de ingresso inexige do candidado conhecimento das referidas disciplinas;
Page 17
(ii) a Justiça do Trabalho está abarrotada de processos e estaria impossibilitada, por falta de estrutura física e de pessoal, de encampar pretensões criminais4. O aumento do rol competencial, em última análise, poderá comprometer a solução célere e efetiva dos conflitos laborais propriamente ditos, razão de ser daquele órgão judiciário;
(iii) os incisos do art. 114 da CF, em nenhum momento, evidenciaram a competência criminal da Justiça do Trabalho5. Menção às ações decorrentes da relação laboral englobariam demandas cíveis, mas, não, as penais;
(iv) na Proposta de Emenda Constitucional (PEC), resultante na EC n. 45/2004, excluiu-se o inciso estabelecedor de competência da Justiça do Trabalho para julgar crimes contra organização do trabalho6. Houve, portanto, desinteresse do poder constituinte derivado em aumentar o rol competencial da Justiça...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO