A EC 45 e a Nova Competência da Justiça do Trabalho - "Relação de Trabalho"

AutorAugusto Cesar Ramos
CargoAdvogado especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo CESUSC - Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina
Páginas10-17

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Considerações preliminares

Inicialmente, tenho o dever de adverti-los que não há hermenêutica asséptica, porquanto todo processo de intelecção de uma norma jurídica sofre influências dos mais variados matizes, seja político ou ideológico. Registrada essa advertência, sinto-me à vontade para enfrentar o tema proposto, pois a conclusão a que chegarei será fruto de interpretação pessoal, com influências de toda ordem.

A razão desse estudo mostra-se relevante na medida em que, assim penso, possamos responder às seguintes indagações: A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar relações de emprego, de trabalho e de consumo? Em outros termos, tem competência para apreciar ações em que um médico, advogado, arquiteto ou contador demande em face de um cliente, ou ainda, em que um cliente demande em face de uma oficina de automóveis, porque defeituoso o serviço prestado?

Antes de adentrar na análise específica do tema em epígrafe, faz-se oportuno lembrar que a Emenda Constitucional 45, cuja Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi apresentada em 26.03.1992, pelo então deputado Hélio Bicudo, promulgada em 8 de dezembro de 2004 e publicada no dia 31 do mesmo mês, é fruto de um longo debate no Congresso Nacional, que consumiu quase 13 anos. É importante ressaltar que na proposta original da mencionada Emenda Constitucional, de autoria do deputado Aloysio Nunes Ferreira, constava como medida mais extrema a extinção da Justiça do Trabalho por intermédio de sua incorporação pela Justiça Federal. Posteriormente, no relatório da deputada Zulaê Cobra afastou-se essa ameaça, mantida, não obstante, a competência da Justiça do Trabalho para julgar as "ações oriundas da relação de emprego", o que pode justificar o lapso na manutenção do inciso IX do atual artigo 114 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), quando depois se ampliou a competência para abranger relações de trabalho. Partindo-se da premissa de que norma jurídica não resulta de um processo intelectual, técnico ou científico, mas do entrechoque de interesses entre classes sociais ou mesmo corporativos, a atuação da Anamatra foi decisiva para persuadir os congressistas a alterarem a redação do inciso I, substituindo a expressão "relação de emprego" por "relação de trabalho". Daí o porquê da alardeada incompatibilidade entre os incisos I e IX, que será mais adiante analisada. O fato é que a Justiça do Trabalho, cuja extinção outrora fora cogitada, com o advento da Emenda Constitucional 45 ficou sobremaneira fortalecida com a ampliação de sua competência.

Ainda à guisa de introdução convém consignar que a Emenda Constitucional 45, denominada de Reforma do Poder Judiciário, tem entre seus fundamentos o de viabilizar mais concretamente o acesso à justiça, que tem um significado mais amplo que a simples facilitação de acesso do cidadão ao Poder Judiciário, senão o direito a um resultado célere e justo da demanda levada a Juízo. Nessa esteira, visando à ampliação do acesso à Justiça, verifica-se, essencialmente, três ondas renovatórias no direito processual, quais sejam:

  1. a concessão do benefício da assistência judiciária (porque o processo é demasiadamente oneroso para os necessitados - Lei 1.060/50); b) a criação de ações visando à tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos por meio de ações civis públicas e coletivas - ACP, ACC - (direitos metaindividuais ou transindividuais - Lei 7.347/85 e Lei 8.078/90); c) preocupação com a qualidade da prestação jurisdicional (observância do devido processo legal substancial e não só formal, a exemplo da possibilidade, já pacificada na doutrina e jurisprudência, do controle judicial dos atos administrativos discricionários, sob o ângulo da legalidade em sentido amplo, com suporte nos princípios da Page 11 proporcionalidade e razoabilidade, que representam limites à conveniência e oportunidade do administrador). Também se pode lembrar dos novos critérios objetivos para promoção de juízes, que serão avaliados conforme sua "produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento" (art. 93, II, c da Constituição da República Federativa do Brasil).

Sob esse último enfoque - qualidade da prestação jurisdicional - sobressaem alguns desdobramentos importantes, a saber: a) o objetivo de evitar o formalismo exacerbado no trâmite processual; b) criação de meios alternativos de resolução de conflitos (mediação e arbitragem, esta prevista na Lei 9.307/96) e, por fim; c) a propalada Reforma do Poder Judiciário.

Nesse particular, a Emenda Constitucional é apenas o começo da almejada, verdadeira e necessária reforma judiciária, uma vez que exigirá uma substancial revisão da legislação infraconstitucional, mormente no âmbito processual, uma vez que a Reforma não foi suficiente para resolver o problema crônico da morosidade da Justiça. A Emenda Constitucional 45 apresenta-se como a ponta de um grande iceberg, cujo marco inicial é visualizado no novo inciso LXXVIII do artigo da Constituição da República Federativa do Brasil, que consagra o princípio da tempestividade da tutela jurisdicional. Esse novo princípio constitucional, que explicita não haver devido processo legal se este for moroso, não é estranho aos atores jurídicos brasileiros, na medida em que previsto no artigo 8º, I do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Com efeito, o inciso LXXVIII do artigo da Constituição da República Federativa do Brasil quer enfatizar a necessidade de o processo ter uma duração razoável, ou seja, o processo não deve demorar mais que o tempo necessário para produzir um resultado útil e justo (ou, ainda, o processo não deve ter dilações indevidas). Para atingir tal desiderato, deve o juiz utilizar com maior intensidade o instituto da tutela antecipada, que exige requerimento da parte, nas hipóteses do inciso II do art. 273 do CPC, pois a sanção mais contundente àquele que pretende procrastinar o processo é acelerá-lo. Deve o juiz, também, adaptar as penalidades decorrentes da litigância de má-fé ou de ato atentatório à dignidade da justiça (artigos 18 e 602 do CPC), que permitem aplicação ex-officio. E mais relevante ainda é o fato de o juiz não estar adstrito à previsão legal autorizandoo a acelerar o processo, pois no seu mister há de observar o novel princípio constitucional que vela pela sua celeridade.

Mas é verdade também que a Reforma visou a contemplar fundamentos de ordem técnica e social. O fundamento técnico da Emenda Constitucional 45, na seara da Justiça do Trabalho, justifica-se na correção da inexplicável competência da Justiça Comum para julgar ações envolvendo direito de greve (ações possessórias: manutenção de posse - turbação -, reintegração de posse - esbulho -, interdito proibitório - em caso de justo receio de violência iminente que possa molestar ou esbulhar a posse; ou ações indenizatórias no caso de greve abusiva) no inciso II, ou entre sindicatos, leia-se, entidades sindicais (representação sindical; arrecadação ou rateio das receitas sindicais: contribuição confederativa, sindical, assistencial e mensalidade do associado) no inciso III, ambos do artigo 114 da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse particular, o TST cancelou, em 05-07-2005, a OJ 290 da SDC, que declarava a incompetência da Justiça do Trabalho para examinar conflito entre sindicato patronal e a respectiva categoria econômica em relação à cobrança da contribuição assistencial. Deve, a meu ver, em breve ser cancelada a OJ 4 da SDC, segundo a qual "a disputa intersindical pela representatividade de certa categoria refoge ao âmbito da competência material da Justiça do Trabalho". O fundamento social deve-se ao fato de a vetusta relação de emprego estar perdendo sua identidade em decorrência da multifária dinâmica do sistema capitalista de produção, exigindo uma adequação da Justiça do Trabalho a fim de contemplar aqueles que outrora se encontravam fora de sua competência, que se limitava às pessoas do trabalhador-empregado e empregador.

Superada essa breve, mas necessária digressão, cujo intuito foi tão-somente contextualizar o advento da Emenda Constitucional 45, passarei à análise mais detida do reflexo dessa Reforma na competência da Justiça do Trabalho, notadamente no âmbito do direito material, mais especificamente do caput do artigo 114 e seu inciso I.

Estão fora desse estudo, portanto, questões de índole processual, decorrentes da ampliação da competência da Justiça do Trabalho, a exemplo do cabimento ou não de honorários advocatícios, jus postulandi, intervenção de terceiros, princípio da perpetuatio jurisdictionis (art. 87 do CPC), competência funcional - relativamente à execução das sentenças proferidas no Juízo Cível etc.

A nova competência da Justiça do Trabalho

Faz-se necessário, desde já, deixar assente que competência não se confunde com jurisdição, embora ambas estejam intimamente ligadas. A sociedade, na evolução do convívio social, optou pela vedação a autotutela, salvo hipóteses legais (direito de retenção, desforço imediato, penhor legal, direito de cortar raízes e ramos limítrofes que ultrapassem a extrema do prédio etc.), atribuindo ao Estado o monopólio de solucionar, de forma impositiva e em definitivo, um conflito, aplicando norma de direito material. Esse o conceito de jurisdição, qual seja, o poder de o Estado pacificar conflitos sociais por meio de uma atividade substitutiva da vontade das partes, fazendo atuar a vontade da lei ao caso concreto. A jurisdição é, portanto, o conceito nuclear de toda...

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