A nova lei de falências e o instituto da recuperação extrajudicial

AutorHumberto Lucena Pereira da Fonseca e Marcos António Kohler
Páginas84-101

Page 84

1. Introdução

No dia 9 de fevereiro de 2005 foi publicada a Lei n. 11.101, que estabeleceu a nova disciplina da falência e da reorganização de empresas em dificuldades no Brasil, em substituição ao sexagenário Decre-to-lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945.

A nova Lei de Falências, em vigor a partir de 9 de junho de 2005, trouxe importantes inovações aos processos falimentares e de recuperação de empresas, tornando-os mais céleres e eficientes. A redação dos dispositivos, como descrito no parecer da Comissão de Assuntos Económicos do Senado Federal, fundamentou-se nos seguintes princípios: preservação da empresa, separação dos conceitos de empresa e de empresário, recuperação das sociedades e empresários recuperáveis, retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis, proteção aos trabalhadores, redução do custo do crédito no Brasil, celeridade e eficiência dos processos judiciais, segurança jurídica, participação ativa dos cre-dores, maximização do valor dos ativos do falido, desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte e rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação de empresas.

Atributo relevante dos novos mecanismos é conferir agilidade ao processo, permitindo que sejam efetuadas tempestivamente as transferências de titularidade dos ativos, parciais ou totais, que eventualmente sejam essenciais à solução dos problemas financeiros ou operacionais vividos pela empresa em dificuldade. Como resultado, a economia em geral não sofrerá perda de produto decorrente da não-utilização temporária, depreciação e obsolescência tecnológica de ativos produtivos - tangíveis ou intangíveis - disponíveis para a produção de riquezas.

Ademais, a nova Lei enfatiza o soer-guimento de empresas viáveis que estejam passando por dificuldades temporárias, a fim de evitar que a situação de crise culmine com a falência. Nesse sentido, é extinta a ineficiente concordata e criado o instituto

Page 85

da recuperação judicial, que tem como principal característica o oferecimento aos credores de um plano de recuperação, que, na prática, envolverá negociações e concessões mútuas, além de providências e compromissos do devedor visando a persuadir os credores da viabilidade do plano. Esse plano deverá ser aprovado pela maioria dos credores em assembleia, e a decisão vinculará não só os que expressamente anuírem, mas também os que votarem contrariamente.

Tal mecanismo, além da dar aos credores poder de decisão para defesa de seus legítimos interesses, tem a virtude adicional de entregar a decisão sobre a viabilidade da empresa àqueles agentes que têm melhores condições de fazer essa avaliação. Os credores, em geral, conhecem os mercados em que atuam e têm maior capacidade de avaliar se as dificuldades vividas por empresas têm causa conjuntural ou estrutural.

A submissão da minoria à decisão da maioria é medida de inquestionável gravidade jurídica, já que implica possibilidade, com amparo na lei, de descumprimento de cláusulas contratuais válidas ou sua modificação sem a anuência da parte contrária, o que pode abalar a segurança jurídica e a estabilidade dos contratos no Brasil. Entretanto, tendo em vista que a alternativa para a empresa em crise é a falência, que a ninguém beneficia, é razoável que a lei facilite a recuperação da empresa em dificuldades, sem descuidar-se do necessário equilíbrio entre os princípios do respeito aos contratos e da preservação da empresa. Por isso, a Lei apresenta uma série de mecanismos para garantir que a recuperação judicial seja utilizada como último recurso da empresa em crise, e não como expediente para prejudicar terceiros.

No entanto, uma alteração aprovada nos momentos finais da votação do projeto no Senado Federal pode comprometer o funcionamento das normas sobre recuperação de empresas na nova Lei. O Capítulo VI da Lei trata da recuperação extrajudicial, instituto inicialmente desenhado para empresas que, embora em dificuldades, pudessem solucionar seus problemas sem submeter-se aos rigores da recuperação judicial. Na Comissão de Assuntos Económicos (CAE), foi aprovada redação que primava pela simplicidade e pela celeridade do procedimento. Isso foi possível porque o substitutivo da CAE previa que o plano de recuperação extrajudicial somente seria aplicável aos credores que voluntária e expressamente anuíssem a ele. Dessa forma, afastava-se a necessidade do complexo sistema de controles que caracteriza a recuperação judicial, já que não haveria submissão involuntária da minoria à decisão da maioria dos credores. Tal modelo foi parcialmente mantido com o art. 162 da nova Lei.

Ocorre que a redação da CAE para o Capítulo VI foi profundamente modificada na versão aprovada no Congresso e sancionada pelo Presidente da República. Passou-se a dispor que, também na recuperação extrajudicial, a vontade da maioria dos credores poderia ser imposta à minoria discordante. Entretanto, as salvaguardas criadas para evitar abusos por parte dos devedores não foram repetidas para o novo instituto. Além de tecnicamente deficiente, a redação do mencionado Capítulo está em desarmonia com as demais normas da Lei e pode trazer consequências indesejáveis para sua eficiência e para o equilíbrio das relações privadas no Brasil.

Este estudo não tem por objetivo analisar a lei de forma ampla, nem apresentar suas muitas inovações benéficas ao regime falimentar e de recuperação de empresas. Concentrar-nos-emos no exame das normas relacionadas à recuperação extrajudicial, por reputarmos graves suas implicações jurídicas e económicas. Assim, primeiramente, será feita uma análise crítica do Capítulo VI da nova Lei de Falências, procurando relacionar seus preceitos, de forma conceituai e prática, aos demais artigos da Lei e apontar suas deficiências e inconsistências internas. Concomitantemente, serão

Page 86

expostos e defendidos os argumentos favoráveis à não-submissão da minoria recalcitrante na recuperação extrajudicial. Finalmente, serão apresentadas perspectivas acerca das consequências que podem advir das fragilidades do instituto e das múltiplas possibilidades de interpretação que certamente surgirão no momento de sua aplicação aos casos concretos das empresas brasileiras.

2. Breve descrição dos debates

A iniciativa de se propor um procedimento extrajudicial para a recuperação de empresas, mais simples e célere, tomou corpo no âmbito do grupo de trabalho formado no Banco Central para analisar o proje-to da nova Lei de Falências no ano 2000. Naquele momento, entendeu-se conveniente que, mesmo tratando-se de um processo menos formal, a minoria fosse submetida à decisão da maioria dos credores na recuperação extrajudicial, a fim de evitar que um credor, ou um pequeno número deles, usando de comportamentos oportunistas para melhorar seu poder de barganha, ameaçasse inviabilizar os planos de recuperação propostos. Tal atitude, se tornada padrão, poderia comprometer a própria eficácia do instituto. A ideia foi aceita, com modificações, pelo relator do projeto na Câmara e terminou aprovada no plenário daquela Casa Legislativa.

Mais tarde, porém, após o envio da matéria ao Senado Federal, o tema foi discutido por outro grupo, formado por profissionais do Senado Federal, do Ministério da Fazenda, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, do Ministério da Justiça, da Casa Civil e do Banco Central. Embora se pudesse argumentar a favor de um procedimento extrajudicial que submetesse a minoria para evitar problemas de coordenação e de oportunismo entre credores, concluiu-se que os embaraços jurídicos que sobreviriam, especialmente os de ordem processual, tornariam a recuperação extrajudicial um emaranhado de controvér-sias judiciais que obstariam a agilidade e a segurança jurídica tão necessárias em um processo tendencialmente conflituoso, ainda que extrajudicial.

No entanto, alguns dos setores envolvidos na discussão do projeto de lei não ficaram plenamente convencidos de que a não-submissão da minoria em processos extrajudiciais fosse a solução adequada. Esses setores alegavam que a estrutura de incentivos seria tal que todos os potenciais credores dispostos a colaborar não o fariam por um problema de coordenação. Cada credor individual optaria por não cooperar, de modo a não arcar com os custos e se beneficiar de um plano de recuperação que eventualmente fosse suportado pelos demais credores. A lógica económica desse raciocínio tem raízes no problema conhecido como "dilema do prisioneiro"1 (Mas-Colell e Whinston, 1995), um dos mais conhecidos modelos de análise da Teoria dos Jogos.

Na ocasião, avaliamos que o dilema do prisioneiro não caracterizava bem a situação. Em primeiro lugar, haveria coordenação e troca de informações entre os diversos credores. Em segundo, diferentemente do "dilema do prisioneiro", as recompensas esperadas não seriam simétricas. Para alguns credores, a dívida a receber como proporção de seus ativos totais poderia ser muito alta, bem como a relação

Page 87

de sua dívida com a dívida total do credor. Para outros, essas relações poderiam ser mais baixas. Em terceiro lugar, e mais importante, os comportamentos oportunistas poderiam sofrer uma penalidade importan-, te caso não houvesse cooperação: os demais credores poderiam abandonar a recuperação extrajudicial e levar o caso para a recuperação judicial. Dessa forma, o incentivo à não-cooperação seria muito menor que o inferido pela tentativa algo ingénua de enquadrar...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT