Notas àssúmulas vinculantes administrativas

AutorNagib Slaibi Filho
CargoDesembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) e da
Páginas5-11

Page 5

1. Introdução

Entre as mais importantes fontes normativas, temos hoje a denominada súmula vinculante, objeto de tantos estudos e críticas, e que merece exame sobre a perspectiva do Direito Administrativo.

Este trabalho1 dedica-se a tema que ganha galas de relevante interesse para o Direito brasileiro neste início do século XXI, pois as súmulas vinculantes, editadas pelo Supremo Tribunal Federal, aparentam estar em confronto com a visão já arraigada na comunidade forense sobre o princípio da legalidade, considerado como fundamento primeiro e essencial para a atuação da Administração Pública no Estado Democrático de Direito2.

A Administração Pública de todos os Poderes e em todos os níveis federativos, como está no caputdo art. 37 da Constituição de 1988, submete-se ao princípio da legalidade, mas a fonte normativa, de onde decorrem as normas que regem a sua atuação, não mais se reserva exclusivamente aos atos do Poder Legislativo com forma de lei.

As súmulas vinculantes de conteúdo administrativo, como expressão da competência funcional do Supremo Tribunal Federal de elaborar os atos genéricos e abstratos que regem a Administração Pública3, constituem atos normativos que vão haurir da imparcialidade da Corte Constitucional no seu papel não só de interpretar a Lei Maior como, principalmente, e porque é função própria de todos os tribunais constitucionais, o de dizer o que é a Constituição e a incidência de suas normas nos diversos setores da vida nacional.

Utilizou-se a pesquisa na doutrina e na jurisprudência, principalmente os precedentes da Alta Corte de Direito Constitucional.

Pretende-se demonstrar que o caráter normativo da súmula vinculante constitui legítima fonte constitucional, e assim obrigatória, para todos os agentes administrativos e para aqueles que, na condição de administrados, estão sujeitos aos efeitos dos atos do Poder Público.

2. A legalidade como expressão do liberalismopolítico

Está ultrapassado o paradigma pretensamente liberal da legalidade estrita, ou da simples e mesmo impossível obediência ao texto frio da lei, da simples interpretação literal ou filológica, mesmo porque tal seria de inviável realização pelos percalços do legislador em prever, com antecipação e absoluta precisão, todas as situações futuras em que atuará a complexa e diferenciada máquina administrativa do Estado.

Em decorrência, o princípio da legalidade vai muito além do que está meramente escrito nos termos legais, pois compreende também os demais princípios constitucionais4e depende a sua incidência da corajosa constatação do fato que interessa à norma ou da adequada cognição da situação concreta para a sua aplicação.

A turbilhonante complexidade deste início de século XXI exige suficiente efetividade do Poder Público no cumprimento das tarefas ou dos objetivos fundamentais que lhe são atribuídos pela sociedade, como se vê, por exemplo, na Constituição de 1988, em seu art. 3e, referindo-se às tarefas de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem discriminações de qualquer espécie.

A função administrativa do Estado moderno menos se dedica à garantia do núcleo essencial da atividade do Estado no século XIX (defesa nacional, segurança, justiça, fisco) e muito mais à transformação da sociedade, atribuindo-se ao aparelhamento estatal funções essenciais ao indivíduo que não tenha como suprir para consigo e sua família direitos fundamentais como saúde, educação, segurança.

Até mesmo nas atividades de planejamento da ordem econômica e repressão do abuso do exercício de direitos sociais, econômicos e políticos, o Estado volta a sua atividade visando suprir as necessidades dos indivíduos e grupos sociais carentes de sua atuação como garantia para o exercício de seus direitos.

Enfim, da função administrativa, que constitui a linha de frente da atuação do Estado porque realiza materialmente a sua atividade política, esperam os cidadãos muito mais do que a estática obediência ao texto frio da lei cujo conteúdo é interditar a atividade do poder para permitir a plena atividade daqueles que não necessitam das atividades estatais5.

O princípio da legalidade está insculpido na Constituição de 1988, no caputdo art. 37, como princípio geral da Administração Pública, ao lado dos princípios da impessoalidade, moralidade administrativa, publicidade e eficiência6.

No sistema tríplice idealizado por Charles de Secondat, o Barão de Montesquieu, no seu O Espírito das Leis, de 1748, imaginava-se possível atribuir somente a órgãos específicos, agrupados no conjunto de órgãos públicos denominados Parlamento, o poder exclusivo de elaborar as leis como comandos genéricos e abstratos dirigidos à sociedade e ao próprio Estado.

A elaboração das leis genéricas e abstratas deslocou-se gradualmente dos órgãos do Parlamento para os demais ramos do PoderPage 6 Público, que passaram a exercer com habitualidade e, relativamente sem grandes controvérsias, funções que nos séculos XIX e XX foram consideradas, para eles, atípicas ou anômalas7.

Maior o interesse quando se trata da radical extirpação de um velho postulado do liberalismo clássico, que exigia que somente a vontade geral, expressa pelo legislador, pudesse trazer limitações à liberdade individual, como consta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 17898, proclamando que os limites da liberdade são aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o exercício desses direitos e que tais limites não podem ser determinados senão pela lei, que é expressão da vontade geral da sociedade e para a qual todos devem concorrer na sua formação, pessoalmente ou através de representantes9.

3. O interesse público não exclui, antes exige o atendimento ao princípio da legalidade

Aqui e alhures, a Administração Pública objetiva atender ao interesse geral, o interesse público10.

A finalidade do interesse público da Administração Pública não lhe confere, por si só, o poder de atuar com supremacia sobre o indivíduo.

Assim é, porque qualquer atuação do Poder Público, inclusive e principalmente a atividade administrativa, por si só é suficiente para limitar a liberdade individual. Daí por que Pontes de Miranda lembrou que o princípio da legalidade para os órgãos estatais constitui a face do Poder, e o princípio da legalitariedade para o indivíduo expressa o campo que se lhe assegura para a sua ação transformadora da realidade.

Assim, a liberdade mostra-se bifronte: quanto ao Estado, o princípio da legalidade; quanto ao indivíduo, o princípio da legalitariedade.

Desde a Constituição de 1824, outorgada pelo jovem Imperador Dom Pedro I11, encontra-se escrito nas nossas Leis Maiores a regra de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, a expressar comando decorrente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

O tratamento diferenciado da Administração Pública a distingue do cidadão comum, o que denominamos no sistemado CivilLaw, pelatradiçãofrancesa, deprerrogativas ou supremacia do interesse público sobre o interesse privado12.

Neste atuar, principalmente no sistema francês, necessariamente se coloca em confronto a liberdade individual em face do interesse público, pelo que o regime liberal exige que a função administrativa esteja jungida à lei genérica e abstrata, assim enquadrada dentro de critérios de calculabilidade ou previsibilidade acessível a todos através da lei genérica e abstrata.

4. Common Law e Civil Law: racionalismo e empirismo

A limitação da liberdade individual para a satisfação do interesse público é o conteúdo do princípio da legalidade que a Constituição de 1988 coloca como norma reitora da Administração Pública de todos os Poderes da República e em qualquer nível federativo13.

No sistema jurídico do Common Law, que a Inglaterra disseminou através dos países por ela colonizados, o costume é a principal fonte normativa14, com os textos votados pelo Parlamento (statute laws) dispondo de caráter subsidiário15.

Já o sistema jurídico do Civil Law, que herdamos da Europa continental através de Portugal e da Espanha, coloca como principal fonte normativa o texto legal, como se vê no art. A- da Lei de Introdução ao Código Civil, e nos arts. 126 e 127 do Código de Processo Civil16, seguindo-se a analogia (a aplicação ao caso semelhante da situação descrita em norma que não aquela que regula o fato), o costume (que é a norma empírica, a conduta decorrente da experiência social em situações como a objeto de análise) e os princípios gerais do Direito (como os conhecidos princípios que proíbem o dano ou o enriquecimento sem causa).

Somente se autorizado pela lei, poderá o juiz aplicar a equidade, como descrito no art. 1.109 do Código de Processo Civil, aotratardadenominadajurisdição voluntária: "O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é, porém, obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna.17

A aplicação das normas legais como primeiro momento para a concretização do Direito - o chamado critério da legalidade estrita - constitui vinculação do juiz e do administrador à diretiva de conduta imposta pela norma legal ao Estado e à sociedade.

Somente se falhar...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT