Notas sobre a sociedade em conta de participação no projeto de 'Novo Código Comercial

AutorJoão Pedro Scalzilli - Luís Felipe Spinelli
Páginas112-123

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Poucos institutos jurídicos são tão importantes para o tráfico negocial e, ao mesmo tempo, tão incompreendidos quanto a sociedade em conta de participação.

Não resta dúvida de que se trata de um dos tipos societários mais pujantes, podendo-se supor seja o tipo mais utilizado depois das sociedades limitadas - ou até em pé de igualdade com elas -, inclusive muito mais do que as sociedades anônimas e do que as cooperativas.

Tal afirmação, porém, não pode ser fundada em números precisos, já que a constituição deste tipo societário é livre de qualquer formalidade, inexistindo a previsão legal de um registro para ela - e, consequentemente, dados oficiais sobre o número de sociedades em conta de participação existentes. Como salienta o eminente jurista português Raul Ventura, o conhecimento das sociedades em conta de participação só pode advir da prática forense ou judiciária.1Virtuosa, como já se disse alhures,2suas características mais peculiares são aquelas que justamente a afastam dos olhares do público em geral. Isso porque a falta de matricula ocasiona não só a inexistência dos dados decorrentes do registro cartorário, mas também acarreta a falta de personalidade jurídica e, por conseguinte, de nome, de patrimônio próprio - enfim, de todos aqueles atributos essenciais para que pudesse atuar no mundo jurídico, contratando em seu próprio interesse. Por conseguinte, depende do sócio ostensivo para adquirir direitos e contrair obrigações - característica que isola esse tipo societário do mundo exterior, permanecendo as relações entre seus integrantes em circuito fechado.3Entretanto, se, por um lado, suas características impedem que se conheçam a exata dimensão e a importância exercida pela socie-dade em conta de participação, por outro lado, pistas de sua virtuosidade podem ser colhidas junto aos profissionais que atuam em áreas da Economia verdadeiramente tomadas por esse tipo societário, tais como a construção civil e os negócios hoteleiros, entre muitos outros.

E, não bastasse isso como prova da pujança da sociedade em conta de participa-

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ção, lembra Ripert, referindo-se à realidade francesa, que testemunho confiável pode ser colhido nos tribunais, onde o abundante número de precedentes envolvendo tal tipo societário tem demonstrado o quão em voga está esse arranjo societário4- situação que em nada difere da brasileira.

Se essa singela notícia acerca da importância econômica da sociedade em conta de participação já é suficiente para chamar a atenção para o fato de que qualquer alteração sensível nesse arranjo societário pode trazer repercussões graves no mercado - sobretudo para os agentes econômicos habituados a utilizá-la como importante fonte de financiamento da atividade produtiva -, imagine-se, agora, uma mudança radical na estrutura do instituto, com repercussões variadas, inclusive de ordem tributária, que parecem escapar ao olhar desatendo daqueles que projetam nova vida para o instituto.

Se mudar só por mudar já não é algo recomendável, que dirá mudar para pior tão importante instituto pela introdução de um texto legal que substitui, sem nenhum acréscimo, os bem-acabados dispositivos do Código Civil sobre a sociedade em conta de participação, cujo Anteprojeto coube ao eminente comercialista Mauro Brandão Lopes, um dos poucos a se debruçar sobre o tema com a seriedade e o rigor acadêmico que se esperam daqueles que criam as leis.

Com efeito, o Projeto de Lei do chamado "Novo Código Comercial", além de apresentar as inconsistências que abaixo serão apontadas, retira do ordenamento jurídico regras importantes sobre a sociedade em conta de participação, além de perder a oportunidade de bem regrar uma série de outras questões que poderiam ser aperfeiçoadas em relação à legislação em vigor.

É disso que trata este pequeno texto, elaborado a partir do parecer que nos coube apresentar no âmbito da Comissão de Direito Comercial da OAB/Seccional do Rio Grande do Sul, que analisou fragmentos do Projeto de "Novo Código Comercial" a fim de contribuir com o debate que se instalou no País.

Comissão de Direito Comercial da OAB/RS Exame dos arts. 434 a 444 do Projeto de Lei n. 1.572/2011

("Novo Código Comercial")

É com satisfação que fomos incumbidos de analisar, pela Comissão de Direito Comercial da OAB/Seccional Rio Grande do Sul, os dispositivos do Projeto de Lei 1.572/2011 ("Novo Código Comercial") que tratam da sociedade em conta de participação, o que passamos a fazer objetivamente, sugerindo as alterações que consideramos adequadas e oportunas:

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Redação do Projeto Alterações Sugeridas Redação Sugerida

Livro III - Das Obrigações dos Empresários

Título II - Dos Contratos Empresariais

Subtítulo II - Dos Contratos Empresariais em Espécie Capítulo V - Da conta de participação

Art. 434. A conta de participação é o contrato de investimento conjunto, em que os contratantes são designados: I - sócio ostensivo; e II - sócio ou sócios ocultos ou participantes.

Livro III - Das Obrigações dos Empresários

Título II - Dos Contratos Empresariais

Subtítulo II - Dos Contratos Empresariais em Espécie Capítulo V - Da Conta de Participação

Art. 434. A conta de participação é o contrato de investimento conjunto, em que os contratantes são designados: I - sócio ostensivo; e II - sócio ou sócios ocultos ou participantes.

Livro II - Das Sociedades Empresárias

Título I - Das Disposições Gerais Capítulo IV - Da Sociedade Não

Personificada

Art. 434. Na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais, sócios ocultos ou participantes, dos resultados correspondentes.

Parágrafo único. Obriga-se perante terceiro tão somente o sócio ostensivo, com todo o seu patrimônio; o sócio oculto ou participante responde exclusivamente perante o ostensivo e, salvo estipulação contratual em contrário, sua responsabilidade é limitada ao seu aporte na sociedade em conta de participação.

Justificativa

O problema aqui é a caracterização da "conta de participação" como contrato em manifesto desacordo com a natureza jurídica que, historicamente, lhe é atribuída no Direito Brasileiro (a saber, natureza societária) - como ocorre em diversos outros Países,5pese embora a que se reconheça que alguns ordenamentos jurídicos regulem a conta de participação como contrato.6É importante ressaltar que a discussão em torno da natureza jurídica da conta de participação não é estéril, fetichismo acadêmico desprovido de consequências práticas. Muito pelo contrário:

(i) em primeiro lugar, a mudança da natureza da SCP pode acarretar importantes efeitos relativos à tributação dos resultados distribuídos pelo ostensivo; (ii) em segundo lugar, a forma de interpretar os direitos e deveres dos sócios pode ser afetada, pois a intensidade destes varia conforme se atribui natureza contratual ou societária à SCP (exemplificativamente, a boa-fé objetiva - e os deveres decorrentes de tal princípio - incide em nível máximo nas sociedades7); (iii) finalmente, para encerrar um rol de exemplos que poderia se estender muito mais, admitindo a natureza societária da conta de participação, pode-se aceitar a ideia de um sistema de formação de vontade social por meio de deliberações tomadas pela maioria, em que os sócios participantes tenham direito de opinar sobre os rumos do negócio comum;8no caso da natureza contratual fica difícil conceber tal possibilidade.

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Ademais, ao chamar de "sócios" as partes da conta de participação, cai o projetista em verdadeira contradição, a qual revela a sua falta de convicção acerca daquilo que tenta afirmar. Isso sem contar que o art. 444 do Projeto de Lei determina a aplicação supletiva das normas da sociedade limitada nas relações entre os contratantes - e não haveria como ser diferente, pois a SCP é uma autêntica sociedade.9E não se diga que a conta de participação não é sociedade porque lhe falta personalidade jurídica, uma vez que este atributo não é nem nunca foi elemento essencial do conceito de sociedade.10

Com efeito, o conceito de personalidade jurídica é bastante recente (não existiu como o conhecemos em Roma, nem no Medievo11), sendo fruto da Pandectística alemã do século XIX,12decorrente da necessidade de teorizar sobre a vacuidade subjetiva verificada nas sociedades anônimas em decorrência da alienação completa das entradas de capital por todos os sócios.13E tanto isso é verdade que o próprio Projeto de Lei reconhece a sociedade irregular (arts. 132-137), a qual é desprovida de personalidade jurídica - isso sem contar que em diversos Países as sociedades de pessoas são despersonificadas.14Por esses argumentos, em primeiro lugar, necessária é uma reforma na estrutura do Projeto de Lei, criando-se o Capítulo IV dentro do Título I do Livro II, a fim de que seja tratada a SCP dentro do livro das sociedades, logo após a sociedade irregular, uma vez que ambas são sociedades sem personalidade jurídica. De qualquer forma, entendemos que esta é a alteração possível diante do estágio em que se encontra o Projeto de Lei; o ideal, todavia, seria reproduzir a estrutura existente no Código Civil em vigor, na qual a conta de participação, juntamente com a sociedade em comum, é tratada no "Livro II - Do Direito de Empresa", "Título II - Da Sociedade", "Subtítulo I - Da Sociedade Não Personificada".

Ainda, sugere-se a alteração do dispositivo, adotando-se redação semelhante ao art. 991 do atual CC, que bem delimita o que seja a conta de participação.

Redação do Projeto Alterações Sugeridas Redação Sugerida

Art. 435. A conta de participação não pode ter nome empresarial, mas o investimento conjunto pode ser identificado por marca.

Art. 435. A conta de participação não pode ter nome empresarial, mas o investimento conjunto pode ser identificado por marca.

Art. 435. A sociedade em conta de participação não pode ter firma ou...

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