Notas sobre a influência do direito material sobre a técnica processual no contencioso judicial administrativo
Autor | Fernando Gama de Miranda Netto |
Cargo | Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ), com período de pesquisa de um ano junto à Deutsche Hochschule für Verwaltungswissenschaften de Speyer (Alemanha) e junto ao Max-Planck-Institut (Heidelberg) com bolsa CAPES/DAAD. Professor Adjunto de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Advogado. |
Páginas | 121-153 |
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A técnica processual, enquanto objeto da Ciência do Direito Processual, pode ser entendida como um conjunto de meios adequados destinados a produzir resultados úteis no processo.1 Como a aplicação do Direito não é neutra ou indiferente, pode-se perceber a influência direta da ideologia jurídica dominante sobre a utilização da técnica processual.2
Ao lado desse elemento subjetivo, existe ao menos um elemento objetivo importantíssimo que (inter)age com a técnica processual: o direito material.3 Assim, cumpre reconhecer que fatores extraprocessuais atuam sobre a técnica processual e, nesta linha, questiona-se, primeiramente, a possibilidade de se extraírem conseqüências processuais a partir da natureza do direito material deduzido em juízo.
A doutrina pátria do Direito Administrativo é praticamente uníssona ao estabelecer uma presunção de legitimidade e veracidade dos atos praticados pela Administração, que tem como reflexo processual a isenção da Administração de provar os fatos afirmados, dificultando sobremaneira as chances de vitória dos cidadãos no contencioso judicial administrativo.
Sabe-se que o Direito Administrativo, hoje, passa por mudanças profundas em suas formulações teóricas. Isto se deve ao fato de que, nos países democráticos se espera uma Administração que permita a participação dos cidadãos e que estes sejam ouvidos, e não uma Administração autoritária.4
Em feliz metáfora, MAURO CAPPELLETTI5 afirmou que o direito processual pode ser comparado a um espelho no qual são refletidos os movimentos do pensamento, da filosofia e da economia de um determinado período histórico. E como o momento atual reclama formas de promoção e proteção dos direitos fundamentais, não pode ser outra a preocupação do direito processual.
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O presente estudo pretende investigar, se a busca da verdade é finalidade do processo e se é relevante a distinção entre verdade formal e verdade material. Isto nos leva a indagar se vige no contencioso judicial administrativo o princípio dispositivo ou o princípio inquisitório. Por derradeiro, examinar-se-á as concepções objetiva e subjetiva de Justiça Administrativa, o que influi decisivamente para a adoção de um modelo de primazia dos direitos fundamentais ou de supremacia do interesse público.
Existe uma necessidade garantística de apuração dos fatos no processo, porque uma decisão justa está ancorada à verdade e isto deve ser tomado como pressuposto de uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos.6 Neste tópico, pretende-se descobrir como opera a técnica processual na busca da verdade no processo, bem como traçar os seus limites.
O movimento garantista tem ensejado verdadeira revisão metodológica no Direito Processual, especialmente no campo do processo penal, exigindo que o julgamento seja realizado por um juiz imparcial, eqüidistante das partes. Tal movimento parece, no entanto, pouco influente no outros ramos do Direito Processual.7
No campo do processo civil, a escassez de iniciativas instrutórias oficiais constitui, ao lado da inobservância de prazos pelos agentes do juízo e da motivação superficial ou lacunosa da decisão, alvo de críticas dirigidas à atuação do juiz no que diz respeito à condução do processo e à resolução da lide.8
Nesta linha, vem ganhando espaço a idéia de que o juiz deve desempenhar papel ativo na produção de provas, porque com a atividade instrutória do magistrado tem-se a garantia de que se busca a verdade.9 Contudo, pela incerteza na sua descoberta, tal busca revelou-se problemática. Tentaram os juristas solucionar esse impasse a partir da distinção entre "verdade formal" (construída dentro do processo e que muitas vezes não corresponde aos fatos reais pretéritos) e "verdade material" (empírica).10 A propósito, é fácil encontrar, ainda hoje, nos manuais a assertiva de que o processo civil se contenta com a verdade formal, enquanto que o processo penal deve buscar a verdade material, muito embora tal distinção tenha sido muito contestada a partir de 1915, sobretudo, por FRANCESCO CARNELUTTI:
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"...agevole osservare come la verità non possa essere che una, onde la verità formale o giuridica o coincide con la verità materiale, e non è che verità, o ne diverge, e non è che una non verità".11
Tal assertiva está ancorada na premissa de que o direito privado cuida de direitos disponíveis enquanto o direito público de direitos indisponíveis. Afigura-se, no entanto, questionável tal diferenciação.12 Ademais, a reconstrução dos fatos no processo civil não é menos relevante que no processo penal, porque as conseqüências daquele processo podem ser até mais graves,13 como ocorre com a perda do pátrio poder em comparação com a pena de multa criminal.
Agrava-se o problema ainda mais no campo do chamado direito processual público, ou seja, aquele ramo do direito processual voltado para a composição de conflitos em que o Estado aparece como parte em juízo.14
Não se quer negar importância aos litígios envolvendo particulares, tampouco asseverar que inexiste interesse público na solução dos litígios privados. Deve-se reconhecer, todavia, que a relação processual que envolve o particular e o Estado como partes é qualitativamente diversa, porque nela há, normalmente, um desequilíbrio de forças. Tal desequilíbrio é ainda mais acentuado no Brasil, quer pela presunção de legitimidade dos atos administrativos, quer pelos privilégios processuais de que goza a Administração Pública.
Lembre-se que inexiste Brasil, ainda, uma lei que trate dos princípios e regras gerais do contencioso judicial administrativo. Embora existam leis que tratam de alguns procedimentos judiciais envolvendo a Administração, aplica-se, onde não houver norma especial, o Código de Processo Civil, que contém poucas regras referentes à relação processual em que estão presentes o particular e a Administração.
É de se questionar se as regras processuais aplicadas às relações envolvendo o direito privado devem ser aplicadas às relações processuais travadas entre Estado e cidadão no que se refere ao encontro da verdade. Há autores, neste campo, que sustentam a prevalência do princípio da verdade material nas causas em que o Estado é parte, sem desconsiderar, no entanto, normas limitadoras, como a que veda o uso de provas ilícitas e o conhecido princípio da demanda.15 Tais normas, apesarPage 124de indispensáveis à realização de um processo justo, contribuem para obstaculizar o encontro da verdade absoluta.
Por outro lado, um juiz ativo, com poderes para descobrir a verdade a qualquer preço, pode acabar substituindo o poder das partes na atividade destinada à produção de provas acarretando a negação do princípio dispositivo,16 o que seria incompatível com o modelo processual garantista.17
Nesta linha, é curioso notar que, no âmbito da jurisdição penal de alguns países, assiste-se à limitação dos poderes dos juízes para que não seja comprometida a imparcialidade, enquanto na jurisdição civil ocorre o inverso, apesar de se tratar de direito privado.18
Com efeito, o direito material público caracteriza-se, segundo a doutrina, pela indisponibilidade do interesse pertinente ao Estado. Como transportar, então, o princípio dispositivo para as situações de direito material público sem comprometer a busca da verdade?19
Seja como for, deve ser repudiada a distinção entre verdade formal e verdade material, porque a verdade material como descrição minuciosa do fato exatamente como aconteceu esbarra na: 1) impossibilidade jurídica (lei coloca limitações à busca da verdade, como o uso de provas ilícitas e preclusões); 2) impossibilidade fática (quando o fato está registrado apenas na memória de testemunhas, o tempo e a contradição das informações podem tornar a tarefa decisória deveras difícil); 3) irrelevância prática (há fatos que não interessam ao direito (na maioria dos casos, a cor da roupa, a altura das pessoas etc.); 4) interpretação diversa dos fatos (valorações e descrições parciais que influenciam a decisão).20
JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER explica, a propósito, que:
"A verdade não é o fim do processo. É apenas meio. Não se busca a verdade por amor à verdade, mas apenas para se poder afirmar se incidiu ou não incidiu norma jurídica. É preciso decidir, de preferência em curto prazo. Por isso mesmo, não se busca a verdade absoluta ou material. Certo, a verdade é uma só e, portanto, não se pode opor uma verdade relativa ou formal a uma verdade absoluta ou material. Assim, quando se diz que o processo sePage 125contenta com a verdade formal, o que na realidade se afirma é que nele se procura a verdade, mas, sendo impossível, difícil ou inconveniente alcançá-la, contentamo-nos com uma aparência de verdade."21
Assim, tem-se que, para prestar a tutela jurisdicional, o magistrado deve realizar todos os esforços para buscar a verdade, limitados pelos fatos trazidos pelas partes, e pelas limitações legais e constitucionais de seus poderes de instrução.22
A verdade que se busca no processo, se é que pode ser assim qualificada, é a "verdade processual", a qual forma no julgador a "convicção de certeza". Se a "verdade processual" – que é meio para a realização do processo justo – não for encontrada (porque os fatos permanecem controversos), valerá a decisão de acordo com as regras do ônus da prova (objetivo). Neste caso, pouco importará que a verdade tenha sido encontrada, porque este é o preço que se paga pelo processo justo. Ora, o processo...
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