Notas sobre a eficácia da cláusula compromissória estatutária

AutorJuliana Krueger Pela
Páginas129-140

Page 129

I - Introdução

A recente reforma da lei acionária brasileira, promovida pela Lei 10.303, de 31.10.2001, trouxe diversas inovações à disciplina e aos institutos relativos às sociedades por ações. O presente estudo pretende tratar de uma dessas inovações, a saber, a introdução de um § 39 ao art. 109 da Lei 6.404, de 15.12.1976, que dispõe:

"Art. 109. (...) "§ 3° O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar."

Segundo esse dispositivo, portanto, pode o estatuto da sociedade por ações indicar a arbitragem como mecanismo de solução das divergências que venham a emer-gir nas relações entre os acionistas e a companhia ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários.1

Para tanto, deve o estatuto social conter a chamada cláusula compromissória arbitrai, assim definida pelo art. 49 da Lei 9.307, de 23.9.1996 (Lei de Arbitragem):

"Art. 49. A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato."2

Page 130

Nas sociedades por ações, a adoção da cláusula de que trata o art. 49 da Lei de Arbitragem, acima transcrito, deve ocorrer em sede de assembleia geral, com necessário reflexo no estatuto social da companhia, inclusive por força do disposto no § 1° do mesmo art. 49.3 Por essa razão, costuma-se empregar, nesse caso, a expressão "cláusula compromissória estatutária", utilizada inclusive no título deste estudo.

A referida adoção, com efeito, tanto pode ser deliberada pelos acionistas no ato de constituição da sociedade, mais precisamente em sua assembleia geral de constituição, quanto em momento posterior, vale dizer, em assembleia geral extraordinária.4 Essa distinção, segundo o raciocínio que aqui se pretende desenvolver, revela-se bastante importante na análise da eficácia da cláusula compromissória estatutária.

De fato, no âmbito da assembleia geral de constituição, o sistema da lei acio-nária pressupõe a adesão irrestrita dos subscritores ao conteúdo do projeto de estatuto social. Ao contrário do que ocorre nas reformas estatutárias posteriores, em que a respectiva deliberação pode ser tomada por maioria, na assembleia geral de constituição "a maioria não tem poder para alterar o projeto de estatuto", nos termos do art. 87, §29daLei6.404/1976.5

Em razão dessas regras, não resta dúvida de que, caso o estatuto social aprovado quando da constituição da companhia contemple a adoção da cláusula compromissória arbitrai, todos os acionistas estarão a ela vinculados porque necessariamente manifestaram seu consentimento a esse respeito.6

Por outro lado, em se tratando de reformas estatutárias deliberadas em assembleia geral extraordinária, vigora, em princípio, a regra da maioria, nos termos do art. 129 da lei acionária.7

Page 131

Especialmente no que toca à reforma do estatuto para fins de inclusão da cláusula compromissória, a vigência e cogência do princípio majoritário não são excepcionadas pelo art. 109, § 39, ora analisado, e nem mesmo mitigadas pela atribuição, ao minoritário dissidente, do direito de recesso, dado o silêncio, nesse particular, do art. 137 da Lei 6.404/1976.

Todavia, considerando os princípios em que se assenta a Lei de Arbitragem, a possibilidade.de impor a cláusula compromissória contra a vontade de um dos contratantes causa, no mínimo, estranheza. Com efeito, a possibilidade de excluir previamente determinados litígios do conhecimento do Poder Judiciário está condicionada, em primeiro lugar e nos termos do art. l9 da Lei de Arbitragem, à disponibilidade e patrimonialidade dos bens objeto de litígio e, em segundo lugar, à manifestação explícita dos contratantes nesse sentido, como se infere pelo disposto no art. 49 da Lei de Arbitragem, já mencionado acima.

Vislumbra-se, assim, uma tensão entre, de um lado, a regra da maioria, sobre a qual se organiza, em larga medida, a disciplina das sociedades e, de outro lado, um dos princípios basilares adotados pela Lei de Arbitragem, segundo o qual a cláusula compromissória é válida desde que voluntariamente aceita pelos que a ela se sujeitarão.

Diante dessa tensão, é de se indagar se a cláusula compromissória, cuja inclusão em estatuto social tenha sido deliberada por maioria, pode obrigar os minoritários que restaram vencidos.

Essa é, propriamente, a hipótese objeto do presente trabalho.8

Para enfrentá-la de forma adequada, serão abordados, preliminarmente, os traços essenciais da cláusula compromissória e a disciplina das deliberações nas sociedades por ações.

II - Aspectos centrais da cláusula compromissória no Direito brasileiro

Consoante se adiantou na introdução ao presente estudo, a cláusula compromissória é aquela que instrumentaliza o acordo das partes em um determinado contrato sobre a submissão dos litígios daí advindos a um juízo arbitrai, com a consequente renuncia à utilização dos meios de acesso ao Poder Judiciário. Sob essa perspectiva, a doutrina reconduz a cláusula compromissória à categoria de negócio jurídico processual, "eis que a vontade manifestada pelas partes produz desde logo efeitos (negativos) em relação ao processo estatal e (positivos) em relação ao processo arbitrai (já que, com a cláusula, atribui-se jurisdição aos árbitros)".9

Por conta disso, à promulgação da Lei de Arbitragem, seguiu-se debate sobre sua compatibilidade com a Constituição da República, pois nesta última a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário tem o sta-tus de garantia fundamental. Assim, muito se discutiu se a acima mencionada dimensão negativa da cláusula compromissória arbitrai - consistente em retirar dos órgãos judicantes estatais o poder de conhecer e dirimir situações de lesão ou ameaça de lesão a direitos - implicaria violação ao disposto no art. 59, XXXV, da Constituição da

Page 132

República. O presente estudo não tem por escopo relatar na íntegra essa discussão nem analisar e julgar os argumentos utilizados de parte a parte.

Importa, porém, sob uma perspectiva mais pragmática, identificar de que modo o próprio Poder Judiciário tem compreendido a eficácia da cláusula compromissória para, em um segundo momento, contrastar tal compreensão com os princípios que regem a organização e o funcionamento das sociedades por ações no direito brasileiro.

Assim, deve-se fazer referência, em primeiro lugar, ao julgamento do Supremo Tribunal Federal nos autos do Agravo Regimental na Sentença Estrangeira 5.206, realizado em 12.12.2001, cujo resultado foi publicado no Diário de Justiça de 19 de dezembro do mesmo ano. Nesse julgamento, considerado leading case em matéria de arbitragem, o Supremo Tribunal Federal, vencidos em parte os Ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, firmou o entendimento de que os dispositivos da Lei de Arbitragem que conferem exeqiiibilidade à cláusula compromissória arbitrai - quais sejam, os seus arts. 6g, parágrafo único, 1- e respectivos §§, 41 e 42 - não ofendem o texto constitucional.10

Em harmonia com essa interpretação favorável à plena eficácia da Lei de Arbitragem e seus mecanismos fundamentais, tanto juízos monocráticos como tribunais têm referendado os ditos efeitos negativos e positivos da cláusula compromissória arbitrai.11

Essa ampla aceitação da Lei de Arbitragem pelos juizes e tribunais brasileiros permite inferir, com efeito, a existência de uma forte correlação entre a validade da cláusula compromissória e o reconhecimento de que os contratantes gozam de autonomia quanto à sua estipulação. Em suma, a afirmação de que a Lei de Arbitragem manteve incólume a garantia de acesso ao Poder Judiciário prevista no art. 59, XXXV, da Constituição da República importa em atribuir aos contratantes a faculdade de escolher a forma pela qual seus conflitos serão solucionados. Nesse sentido, o que a Lei de Arbitragem delineia é uma expansão da liberdade contratual ou, em outras palavras, a constituição de um espaço regulado, sobretudo, pelo consenso entre as partes e imune à interferência estatal, uma vez que estão em jogo apenas interesses passíveis de livre disposição pelos envolvidos.12

Essa relação essencial entre, de um lado, a validade e eficácia da cláusula compromissória e, de outro, a necessidade de manifestação inequívoca do consentimento da parte envolvida acerca de sua adoção fica cabalmente demonstrada na disciplina da arbitragem nos contratos de adesão.13 Como se sabe, esta última categoria de contratos caracteriza-se pela supressão da liberdade de uma das partes - o aderente - de discutir e contribuir para a determinação do conteúdo contratual, restando-lhe apenas a escolha entre contratar ou não contratar.14

Page 133

Segundo o art. 49, § 29 da Lei de Arbitragem, que cuida especificamente dos contratos de adesão, a eficácia da cláusula com-promissória, nesses contratos, condiciona-se (i) à iniciativa do aderente quanto à sua adoção, ou (ii) à concordância do aderente, manifestada de modo explícito e específico, em relação às demais cláusulas contratuais, com a cláusula compromissória.15

Demonstra-se, assim, que, no sistema da Lei de Arbitragem brasileira, não se pode compelir qualquer pessoa, física ou jurídica, a submeter-se ao juízo arbitrai contra sua vontade ou mesmo na ausência de manifestação explícita de sua parte.

Feita essa constatação, cumpre analisar se essa nota estrutural da cláusula compromissória, tal como definida na Lei de Arbitragem, deve ser relevada ou de qualquer forma impactada por conta de sua inserção na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT