Notas sobre a Interpretação do Contrato de Trabalho

AutorEstêvão Mallet
Páginas47-61

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Introdução

A legislação trabalhista brasileira não se ocupa, ao menos não de modo expresso, do problema da interpretação do contrato de trabalho e das cláusulas que o compõem. Não há normas legais voltadas especificamente a disciplinar os parâmetros aplicáveis à hermenêutica do negócio jurídico correspondente ao contrato de trabalho. Algumas poucas regras podem ser lembradas, mas a consideração de cada uma delas mostra que têm objeto distinto.

O parágrafo único do art. 456 da CLT, por exemplo, ao dispor que, "a falta de prova ou inexistindo cláusula expressa e tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal", não estabelece critério de interpretação. O que faz é editar norma integrativa, para que se complete o negócio, omisso relativamente a aspecto essencial, a saber, o seu objeto. Integrar o contrato é algo distinto de interpretá-lo, ainda que não poucas vezes a integração dependa de interpretação, para saber se o contrato é mesmo omisso ou não1. Se a interpretação leva à definição do objeto do contrato, não há lugar para invocar o parágrafo único do art. 456 da CLT2. Já o art. 896, alínea "b", da CLT, refere-se tangencialmente à interpretação de normas coletivas e de regulamento de empresa, ao delimitar o cabimento do recurso de revista. Não indica, porém, os critérios pertinentes para a interpretação e muito menos considera o contrato individual de trabalho.

Tampouco a doutrina costuma se dedicar ao problema da interpretação do contrato de trabalho. Colhem-se apenas poucos registros, como notas sumárias, em textos de caráter geral3. Não há, contudo, tratamento sistemático e mais aprofundado ou desenvolvido do assunto, muito menos sob a forma de estudos monográficos ou obras específicas.

A despeito do evidenciado silêncio normativo e doutrinário, o contrato de trabalho, como todo e qualquer contrato, reclama sempre interpretação. Não há como saber o que se estabeleceu, o que se pactuou - e, portanto, cumprir o ajustado -, sem antes interpretar o negócio jurídico. O menor espaço para o exercício da autonomia negocial e mesmo o exercício menos frequente dessa autonomia, pela simples adoção do modo legal de admissão do empregado, tornam com certeza menos ampla a base contratual a interpretar. Põe-se mais o problema da interpretação da norma legal, que define a abrangência das obrigações assumidas. No plano coletivo, ao contrário, exatamente por ser muito maior a autonomia negocial, o problema da interpretação dos acordos e convenções coletivas é sem dúvida mais significativo e costuma chamar mais a atenção dos autores4 e dos tribunais5. Mas não deixa

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o problema de ter toda a relevância também no plano do contrato individual de trabalho. Não há como simplesmente desconsiderá-lo.

1. Contrato de trabalho e interpretação

Ainda quando claras as condições da contratação ou quando verbal ou tácito o ajuste, há necessidade de interpretação6. No primeiro caso, ela é apenas facilitada pela ausência de ambiguidade, mas não deixa de se realizar. Na verdade, só se chega à conclusão de que há clareza depois de interpretar-se a norma, a cláusula ou a declaração. Por isso, nenhum crédito tem hoje a máxima in claris cessat interpretatio7.

No último caso, de contrato não escrito, o que muda é apenas a forma de expressão do enunciado que se vai interpretar - ou seja, o acordo verbal ou tácito -, de que podem decorrer dificuldades para definição de seu teor ou significado8.

Permanece, contudo, o problema da interpretação.

Enfim, como anota Kelsen, a interpretação é imprescindível à observância de quaisquer normas jurídicas, "na medida em que hajam de ser aplicadas", inclusive em se tratando "de normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos etc."9. Para resolver, por exemplo, se o empregado pode ou não ser transferido para determinada localidade, no caso de previsão contratual, conforme art. 469, § 1º, da CLT, há que considerar o que se dispôs sobre o assunto e verificar se a hipótese está abrangida ou não no pacto adjeto. Do mesmo modo, para saber se determinada tarefa pode ou não ser atribuída ao empregado ou se, ao contrário, tem ele o direito de se recusar legitimamente a cumpri-la, é também preciso interpretar o contrato, para definir os seus limites objetivos. Mesmo para decidir sobre a exigibilidade ou não de algum pagamento, quando se invoca, na cobrança, disposição contratual, o que importa é, como sempre, interpretar o ajuste.

2. Direito comum, interpretação e contrato de trabalho

Diante da omissão da legislação trabalhista, a interpretação do contrato de trabalho - sempre necessária - tem de ser feita pela aplicação subsidiária do direito comum, considerados os parâmetros hermenêuticos estabelecidos para os contratos em geral.

É que, sem embargo das peculiaridades que lhe são próprias, não há como negar a natureza contratual da relação jurídica que se estabelece entre empregado e empregador. As limitações à autonomia da vontade, presentes na relação de emprego, não bastam para fazer com que se transforme o vínculo contratual em liame puramente objetivo, para cuja formação e execução deixa de ter relevância a manifestação de vontade. "Não se pode dizer - como anota Pontes de Miranda - que basta o ato (ou fato) de trabalhar, porque o ato (ou fato) supõe o acordo, ainda se, da parte do empregador, houve ato de tolerância, porque quem tolera traz, leva, sustenta e o que se suportou foi apenas uma das causas do querer"10.

Daí encontrar-se repetidamente em doutrina a afirmação da natureza contratual da relação de emprego11. Em termos irrespondíveis, Mauricio Godinho Delgado lembra que "a restrição fática (às vezes bastante intensa) da liberdade e vontade do trabalhador, no contexto da relação empregatícia concreta, não autoriza a conclusão simplista de que a existência do trabalho livre (e da liberdade, pois) e da vontade obreira não sejam da essência dessa relação jurídica"12.

Da natureza contratual da relação de emprego extraem-se várias conclusões importantes, como a não exclusão liminar, na definição do seu sentido, dos critérios hermenêuticos próprios dos contratos ou dos negócios jurídicos em geral. Definir a natureza jurídica de um dado instituto, de uma dada relação ou de uma dada situação, serve justamente para determinar o quadro normativo que lhe corresponde. Consoante Du Pasquier, déterminer la nature juridique d’une institution, c’est déterminer sa place dans le système du droit; c’est donc la rapprocher de telles institutions don’t elle est parente et l’opposer à telles autres; c’est reconnaître les principes plus généraux sous l’empire desquels la fait vivre la place qu’on lui assigne dans le système.13

Admitido que a relação jurídica estabelecida entre empregado e empregador tem a natureza de contrato, segue-se

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sujeitar-se sua interpretação, de ordinário e ressalvadas exceções decorrentes de certas peculiaridades, às regras aplicáveis aos contratos em geral, inclusive no tocante à interpretação. Tanto é assim que o direito comum é fonte subsidiária do Direito do Trabalho, nos limites do parágrafo único, do art. da CLT.

Não há, pois, incompatibilidade ontológica entre as soluções postas na teoria geral dos contratos e o contrato de trabalho. Importa, de qualquer sorte, examinar as regras invocáveis, no sistema jurídico brasileiro, para os contratos em geral, delimitando se e em que medida também são aplicáveis ao contrato de trabalho. Excluí-las liminarmente, apenas pelo fato de editadas para a interpretação de outros contratos, diverso do de trabalho, não se justifica. Há que ter sempre em conta, isso sim, as particularidades do Direito do Trabalho, as quais podem limitar - e de fato não poucas vezes limitam - a importação de soluções válidas em outros campos. É o que o preceitua o próprio art. 8º, parágrafo único, da CLT, ao vincular a aplicação do direito comum à sua compatibilidade com os princípios fundamentais do Direito do Trabalho.

É, inclusive, a solução encontrada também em vários outros sistemas jurídicos. Em França, por exemplo, não hesita a doutrina em afirmar que o contrato de trabalho deve ser interpretado em conformidade com as "directives générales données au juge par le Code civil en matière d’interpretation des conventions"14. Em Portugal, é corrente a ideia de que "a interpretação do contrato de trabalho segue as regras gerais da interpretação do negócio jurídicos"15, o que também a jurisprudência enuncia. Certa feita o Supremo Tribunal de Justiça registrou em acórdão: "Os critérios legais de interpretação do negócio jurídico, constantes dos arts. 236 a 238 do CC ... são aplicáveis para determinar qual a extensão a dar à declaração constante no contrato individual..."16.

Não há, como se vê, controvérsia significativa sobre o ponto.

3. Os parâmetros hermenêuticos de direito comum

Conforme o exposto no item anterior, extrai-se a grande importância, na interpretação do contrato de trabalho ou de pactos adjetos que o integram ou que a ele sejam adicionados, das regras dos arts. 112, 113, 114 e 423 do Código Civil brasileiro, principais normas voltadas à interpretação dos negócios jurídicos em geral.

A relevância dessas diretrizes torna-se ainda maior quando se considera que são todas elas de natureza cogente17.

Não indicam, como mera sugestão, um possível critério interpretativo entre...

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