Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático

AutorPedro Sutter Simões
Ocupação do AutorAdvogado público, graduado na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, mestrando em Direito Público, na Universidade de Estado do Rio de Janeiro
Páginas261-288
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 261
Notas sobre Concentração Econômica
e Fundamentos do Constitucionalismo
Democrático
Pedro Sutter Simões482
A igualdade, em contraste com tudo o que se rela-
ciona com a mera existência, não nos é dada, mas
resulta da organização humana, porquanto pelo
princípio da justiça483.
1. Introdução: uma Breve Narrativa sobre
Desigualdade, Pobreza e Concentração Econômica
Nas últimas duas décadas do século XIX, os países ricos do
mundo viveram anos de profunda contradição nos seus estratos
sociais. Os Estados Unidos servem como boa ilustração. Superada
a Guerra Civil, o país passava uma era dourada: um inequívoco
progresso econômico o alçava ao posto de maior economia indus-
trial do mundo. O crescimento dos lucros refletia no aumento dos
índices absolutos de desenvolvimento social. Em meio ao entu-
siasmo pelo novo, profundas mudanças aconteceram no estilo de
vida americano, com o desenvolvimento tecnológico influenciando
inovações nos mais diversos setores produtivos.
Por outro lado, os mesmos anos que enriqueceram o setor in-
dustrial e financeiro americano foram marcados pelo contraste entre
concentração elevada de renda e extrema pobreza. Com o cresci-
mento econômico e tecnológico, as cidades passaram a abrigar uma
quantidade sem precedentes de pessoas em situação de miséria484.
Um por cento dos americanos mais ricos chegaram a acumular 51%
de toda a riqueza produzida no país, ao passo que aos 44% mais
pobres cabiam 1,2%
485
. Já nesses anos, era corrente o debate sobre a
perda do caráter republicano que marcara o discurso constitucional
482 Advogado público, graduado na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, mestrando
em Direito Público, na Universidade de Estado do Rio de Janeiro.
483 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 410.
484 RIIS, Jacob A. How the other half lives. 1890.
485 FRASER, Steve. The age of acquiescence: the life and death of american resistance to
organized wealth and power. EUA: Little, Brown and Company: 2015. p. 66.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
262
no país até então: industrialistas começaram a usar sua influência
e fazer lobby com representantes, sendo compreendidos como os
verdadeiros chefes do Senado
486
. A literatura, sempre capaz das mais
perspicazes críticas sociais, deu contribuição crucial aos contornos
deste período. Em célebre sátira, Mark Twain e Charles Dudley joga-
ram luzes críticas sobre a opulência de uma classe super rica, que,
ao importar valores da aristocracia europeia, vivia em mansões pala-
cianas, se locomovia com carruagens deslumbrantes e contava com
uma legião de criados487. Sua obra, Gilded Age, a Tale of Today, me-
taforiza os Estados Unidos como uma espécie de bijuteria folheada a
ouro: por trás de uma fina, dourada e enganosa camada de pujança
econômica, existia uma volumosa quantidade de aço escuro, com
pouco valor agregado, no qual se reproduziam seríssimos problemas
sociais. A expressão Gilded Age – ou Era Dourada, para fins deste
artigo – ganhou contornos pejorativos desde então, sendo utilizada
na cultura americana para descrever um momento de excessos ma-
terialistas combinados com pobreza extrema.
A despeito da Era Dourada ter durado até meados do século
XX, o estudo concluiu que, após as Guerras Mundiais
488
, os níveis
de desigualdade econômica nos países ocidentais desenvolvidos
sofreram drástica redução, associado a uma agenda de políticas
públicas com claro cunho social. Esta fase retratou a compressão
da desigualdade, que se efetivou até os anos 1970, chegando ao
estágio de maior homogeneidade já documentada entre os estratos
sociais489. Em 1960, o 1% mais rico acumulava 11,5% da riqueza na
França, e 12,6% nos Estados Unidos. Por outro lado, grande par-
te da riqueza nacional desses países passou a ser alocada entre
486 Neste sentido, notabilizaram-se charges publicadas pela Puck Magazine. No caso da
charge mencionada, sua publicação se deu em 1899, e se encontra disponível em: YAHOO
NEWS. Parade of satire: Puck magazine Easter illustrations from cartooning’s Gilded Age.
Disponível em:
wp-160607608/photo-p-puck-easter-l-m-photo-160607329.html>. Acesso em: 20 jan. 2020.
487 DUDLEY, Charles; TWAIN, Mark. The Gilded Age. Disponível em:
org/files/3178/3178-h/3178-h.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020.
488 Ponto fulcral para compreender a desigualdade no Século XX, afirma Piketty, é que não há
nada de espontâneo neste processo. As Guerras Mundiais ocasionaram esta mudança em
razão da destruição de riqueza ocorrida entre os anos de 1914 e 1945, mas a tendência da
economia de mercado segue sendo, em condições normais, a concentração econômica.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2014. p. 234.
489 Ibid., p. 265-295.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 263
as camadas mais modestas da sociedade, abrindo margem para
o surgimento de uma classe média enriquecida. No mesmo ano, a
fatia acumulada pelos 40% no meio do estrato social era de 44%
da riqueza nacional em ambos os países490.
Este momento de fortes influxos distributivos no campo eco-
nômico reverberou nas instituições jurídicas dos países desenvol-
vidos. O direito constitucional nas sociais-democracias passou por
profundas transformações, assumindo um modelo no qual o direito
se perfaz conferindo foco ao ser humano e na sua posição dentro
do mundo491. Neste momento, desenvolveram-se muitos dos insti-
tutos jurídicos que o Brasil se inspirou, anos depois, para cuidar da
redistribuição de riqueza em sede da Constituição Federal de 1988.
De um lado, instalou-se nos ordenamentos constitucionais um sis-
tema capaz de conferir maior efetividade aos direitos promotores
de justiça redistributiva. Principalmente nos ordenamentos jurídicos
europeus, evoluíram direitos trabalhistas, sociais e econômicos
492
.
De outro, foi introduzida no interior das constituições social-demo-
cratas uma casa de máquinas que almejava a construção de uma
sociedade economicamente mais igualitária, por meio da efetivação
de políticas públicas com finalidades redistributivas. Foram os anos
de expansão da seguridade social e dos serviços públicos, das po-
líticas de tributação progressiva, e mesmo da atuação do Estado
na condição de empresário.
É este modelo constitucional, vigente tanto no Brasil pós-1988
quanto na maior parte dos países desenvolvidos, que se choca, des-
de a década de 1970, com profundas limitações fiscais, capazes de
limitar a plena eficácia dos direitos prestacionais. Foram crescentes
490 Dados obtidos no sítio eletrônico: WORLD INEQUALITY DATABASE. Home. Disponível em:
. Acesso em: 20 jan. 2020.
491 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 10. ed. Madrid: Editorial
Trotta, 2011. p. 67. O autor europeu traça uma dualidade entre direitos derivados do
jusnaturalismo racionalista e outros derivados do católico-cristão. Os primeiros dizem respeito
a “direitos de liberdade”, e os segundos aos “direitos de justiça”. Sobre o processo ocorrido
no pós-Guerras, o autor narra, em citação direta, que “(...) las nociones de dignidade humana
y persona humana – nociones que no pertenecen a la tradición del iusnaturalismo racionalista,
sino a la del iusnaturalismo cristano católico – que se encuentram enunciadas em muchas
constitcuiones u em varias declaraciones internacionales de derechos a modo de eje sobre
el que gira toda la concepción actual del derecho y de los derechos, expresan um concepto
objetivo derivado de uma determinada visión del hombre u de su posición em el mundo”.
492 Sobre a evolução dos direitos na Europa, ver MARSHALL, T.H. Cidadania e classe social. In:
Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
264
as críticas associadas a um movimento econômico liberalizante493,
que buscavam enxugar o tamanho do Estado Social e reduzir a re-
gulação sobre diversos setores da economia. Este modelo estatal
temperou-se, numa perspectiva que advogava o trade off entre
equidade e eficiência econômica. Os influxos distributivos abando-
naram a preocupação com a concentração de renda, restringindo-se
essencialmente à pobreza extrema494.
De fato, desde então, grande parte das mazelas sociais atingi-
ram os índices mais baixos já catalogados:495 a fome parece estar
no caminho para a erradicação em muitas partes do mundo
496
, e
é possível observar o aumento no poder de compra para adquirir
bens e serviços que, até alguns anos, teriam sua fruição impensável.
No século XXI, as externalidades de uma economia pujante e global
parecem trazer benefícios que trouxeram melhoria de vida para
pessoas mais pobres. Estudos bem-intencionados afirmam catego-
ricamente: nunca se viveu tão bem no mundo como hoje em dia
497
.
No entanto, o crescimento econômico escorado na evolução
tecnológica, capaz de garantir a vitória de muitos cidadãos pelo
mundo na luta contra a pobreza, não tem sido acompanhado de
uma alocação isonômica da riqueza. Com reformas econômicas, a
tendência igualitária não se manteve nos países ricos do mundo
ocidental. A trajetória de concentração de riqueza voltou a galo-
par ao final do século XX, de modo que o 1% mais rico nos Estados
Unidos em 2000 já chegava a deter 18,3% da riqueza nacional
498
.
493 Sobre críticas liberalizantes ao Estado Social do pós-Guerras que induziram à guinada política,
econômica e ideológica a partir da década de 1970, ver FRIEDMAN, Milton. Capitalism and
freedom. Londres; Chicago: The University of Chicago Press, 2002; e KRISTOL, Irving. About
equality. Commentary, p. 41-47, nov. 1972.
494 SOUZA, Pedro Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os
ricos no Brasil 1926-2013. São Paulo: Hucitec, 2018.
495 Este diagnóstico não quer dizer que a pobreza tenha sido erradicada no mundo. Na verdade,
em algumas regiões, como é o caso da África Subsaariana, os índices de pobreza extrema
apresentam tendência de crescimento. Neste sentido, ver DEUTSCHE WELLE BRASIL.
Banco Mundial: Pobreza extrema ainda preocupa em África. 17 out. 2018. Disponível em:
%C3%A1frica/a-45924718. Disponível em: 20 jan. 2020.
496 WORLD BANK. SDG Atlas 2017: Zero hunger: end hunger, achieve food security and improved
nutrition, and promote sustainable agriculture. Disponível em:
org/sdgatlas/archive/2017/SDG-02-zero-hunger.html>. Acesso em: 20 jan. 2020.
497 ROSER, Max. The short history of global living conditions and why it matters that we know
it. In: DICKOVICK, J. Tyler; EASTWOOD, Jonathan (Edit.). Current Debates in Comparative
Politics. Oxford: Oxford University Press, 2018.
498 Dados obtidos em: WORLD INEQUALITY DATABASE, op. cit.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 265
O panorama de contínua dispersão entre os estratos sociais deu
a tônica nos países ricos nos últimos 20 anos. Em 2014, o índice
chegou a 20,2% nos Estados Unidos, e a 13% no Reino Unido
499
.
Segundo dados assustadores produzidos pela OXFAM, em 2015, os
62 indivíduos mais ricos do mundo possuem a mesma riqueza da
metade mais pobre da população mundial500. Não por acaso, este
processo reintroduziu a discussão sobre a possibilidade de estar-
mos vivendo uma segunda Era Dourada
501
. Diante da aceleração
da concentração econômica, economistas e cientistas sociais têm
investido na questão, aprimorando métodos de pesquisas e dados
sobre a evolução econômica. Os resultados são preocupantes, e
apontam para o agravamento, ao longo deste século, dos índices
de concentração de riqueza502.
O mesmo método de pesquisa alcançou o Brasil nos últimos
anos. Intensa produção acadêmica narra que, a longo do século XX,
vivemos em meio a alto grau de desigualdade, cuja característica
mais marcante e visível é precisamente a concentração de riqueza
em uma pequena fração da população
503
. Em suma, observou-se
durante este período que a concentração econômica flutuou entre
níveis altíssimos, de modo que a fração do centésimo mais rico
permaneceu num patamar muito alto, entre 20 e 25%504, na maior
parte do período. Já em 2015, o 1% mais rico no Brasil acumulava
28,3% da riqueza nacional505, índice este muito maior que o obser-
vado nos países desenvolvidos.
Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Bra-
sil de 1988 (CRFB/1988) foi promulgada com a proposta de um
499 Ibid.
500 OXFAM BRASIL. Relatório 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 jan.
2020.
501 Ver, por exemplo: HUYSSEN, David. We won’t get out of the Second Gilded Age the way we got out
of the first. Vox, 1 abr. 2019. Disponível em:
gilded-age-income-inequality-robber-baron>. Acesso em: 20 jan. 2020.
502 Verdadeira escola de desigualdade tem se desenvolvido a partir de estudos pioneiros
realizados nos Estados Unidos e na Europa, por economistas como Thomas Piketty, Emanuel
Saez. Para um panorama dos Estados Unidos no Século XXI, ver PIKETTY, op. cit., p. 244.
503 Em livro publicado por Pedro Ferreira de Souza, foi produzida pela primeira vez uma série
histórica sobre a renda dos diferentes estratos sociais no país, abarcando um período que vai
de 1926 até 2013. SOUZA, op. cit., p. 24.
504 Ibid., p. 222.
505 Dados obtidos em: WORLD INEQUALITY DATABASE, op. cit.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
266
projeto de origem social-democrata, modificada desde então por
uma série de reformas liberalizantes pelas quais o Brasil passou nas
décadas seguintes. Sua marca é um forte caráter compromissório,
que dá posição central à noção de dignidade humana, buscando
a efetivação de direitos prestacionais e interesses redistributivos
em meio a uma sociedade profundamente desigual. Nas próximas
páginas, serão ensaiadas algumas das implicações deste fenômeno
socioeconômico em um ordenamento democrático-constitucional.
2. Assentando Ideias: Análise Econômica do Direito,
Classes, Falhas de Mercado e Status Relativo
O trabalho aqui desenvolvido possui intensa relação com a eco-
nomia. A despeito da economia poder ser persuasiva quanto ao
pretenso fornecimento de respostas certas, questão fundamental
para o manuseio de análises econômicas no campo jurídico é o re-
conhecimento nelas de um caráter não científico506. Neste campo,
ao evocar institutos econômicos, um jurista precisa reconhecer o
aspecto valorativo na eleição dos aspectos que utilizará em seu
raciocínio. Em comum, diferentes doutrinas econômicas buscam
por uma forma preferencial de alocar recursos, o que ocorre em
boa medida na disputa pelo funcionamento de instituições jurídicas
no caso concreto. Neste cenário, os dados e as construções econô-
micas relacionadas à concentração de renda não só podem, como
devem ser inseridas no debate jurídico, ao mesmo tempo que se
reconheça por trás delas um objetivo socioeconômico.
Abordagem relevante é conferida pela professora Susan Ro-
se-Ackerman, que desenvolve uma proposta de análise econômica
do direito progressiva. Aqui, é criticada a forma com que os juristas
deixaram de participar das análises político-econômicas que influen-
ciam as principais ideias sobre reforma do estado administrativo,
e, em oposição, afirma-se o papel central do estudo de interseção
506 PARGENDLER, Mariana; SALAMA Bruno. Direito e consequência no Brasil: em busca de um
discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 262, p. 131, jan./
abr. 2013. Propagam-se doutrinas econômicas, das quais, além de diagnósticos pretensamente
“científicos”, faz parte a filosofia ética e a partir dos quais são elaborados um conjunto de
proposições. Segundo os autores, “(...) [a]o contrário do que possa parecer, os problemas da
doutrina jurídica como não ciência são comuns àqueles observáveis na doutrina econômica. O
ponto é sutil e talvez contraintuitivo, porque é bastante comum pensar-se na economia como
ciência e no direito como dogma”.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 267
entre direito e economia para o Estado Social existente nos países
democráticos ocidentais. A partir deste diagnóstico, a autora defen-
de uma integração que combine a análise realista fornecida pelos
estudos econômicos com a proposição institucional que a técnica
jurídica desenvolve507.
Para tratar do tema da concentração de riqueza nas sociedades,
é preciso estudar uma classe composta pelos seus integrantes mais
ricos. A pesquisa histórico-econômica especializada costuma per-
sonificar este conjunto de indivíduos como o décimo ou centésimo
mais rico do estrato social. Neste ponto, o artigo buscará partir do
mesmo recorte. Ao mesmo tempo, será adotado um modelo tri-
partite sobre os estratos sociais. É usual distinguir a distribuição de
riqueza entre os mais ricos; uma classe média, e um terceiro grupo
efetivamente mais pobre508.
A história da riqueza pode ser entendida como a mesma do
décimo ou centésimo mais ricos. Estabelecendo bases empíricas
confiáveis para a construção de um debate público sincero, Thomas
Piketty buscou demonstrar que a desigualdade não é um acidente
ou uma imperfeição do mercado, mas, sim, gestada a partir de uma
contradição central do capitalismo. Num cenário em que a taxa de
retorno médio do capital ao longo da história é superior à taxa de
crescimento da economia, a riqueza acumulada no passado cresce
mais rapidamente que a produtividade e os salários
509
. Em suma,
é observada uma tendência510 da economia de mercado, pela qual
suas forças convergem na direção do retorno a um capitalismo
patrimonial. Heranças vultuosas assumem papel fundamental na
507 ROSE-ACKERMAN, Susan. Progressive law and economics – and the new administrative law.
In Yale Law Journal, v. 98, n. 2, p. 341-368, 1998. p. 368.
508 Pedro Fernandes de Souza constrói um histórico sobre a forma com que se desenvolveu
a descrição da sociedade em classes. A sistemática tripartite não foi sempre a forma mais
utilizada, competindo usualmente com a leitura polarizada da constituição. Neste sentido, ver
SOUZA, op. cit., p. 20.
509 BARROSO, Luís Roberto. Revolução tecnológica, crise da democracia e risco ambiental:
limites do direito num mundo em transformação. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, p.
1252-1313, set./dez. 2019.
510 Este artigo tem a pretensão de construir uma análise jurídica baseada nas conclusões
alcançadas pela pesquisa econômica sobre a concentração de riqueza nas sociedades
constitucional-democráticas, de modo que não buscaremos adentrar rigorosamente no
desenvolvimento da metodologia empregada. Para uma leitura aprofundada sobre a
disparidade da relação entre as taxas de retorno médio do capital e a taxa de crescimento da
economia, ver PIKETTY, op. cit., p. 163-195 e 233-264. Ao longo do texto, será abordada com
maior detalhamento a ideia central, assim como outras mais particulares desta obra.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
268
economia, transparecendo uma narrativa histórica em que socieda-
des baseadas na economia de mercado tendem a concentrar cada
vez mais riqueza nos setores mais ricos.
Esta narrativa tem como ponto de partida um retrato de ex-
trema concentração de riqueza dentro das sociedades ocidentais,
cuja tendência é o agravamento. A contínua acumulação, afirmam
estudos econômicos, também não leva necessariamente a ganhos
mercadológicos511. Joseph Stiglitz512 tem associado uma série de
aspectos do comportamento exarado pelos mais ricos à ideia de
rentismo (rent seeking). A renda está associada à remuneração de
grupos pelo simples fato de possuir o capital, independentemente
do trabalho513, e pode ser constituída por aluguéis, juros, dividendos,
lucros, royalties, valores mobiliários ou diversas outras categorias
jurídicas. Baseado nesta ideia de gerar riqueza sem necessariamente
trabalhar, o autor associa condutas rentistas às falhas de mercado,
resultantes no desalinhamento entre os retornos privados e os be-
nefícios sociais oriundos de determinado setor da economia. A falha
ocorre quando um grupo, cujos incentivos privados se diferenciam
do retorno social esperado, amplia seus ganhos às expensas dos
demais cidadãos, por meio da exploração de outras esferas da vida
em sociedade, influenciadas pelo poder econômico. A chave para o
sucesso destes grupos em uma economia de mercado seria garantir
a inexistência de competitividade, ou, pelo menos, tempo suficiente
para promover um monopólio que a inviabilize.
O capitalismo patrimonial que se desenvolve nas economias
ocidentais é indesejável para quem objetiva viver em uma ordem
econômica livre, eficiente e inclusiva. Ele traz contornos graves ao
sistema econômico, por distorcer as demais esferas sociais, assim
como pilares da economia de mercado. Grupos extremamente ricos
por vezes tendem a bypassar ou moldar as instituições jurídico-
-políticas em seu favor, de modo que surge o dever dos governos
em temperar excessos. O poder público deve ter papel central na
correção das falhas de mercado, de modo a garantir a existência de
511 STIGLITZ, Joseph E. Inequality is holding back the recovery. In: Johnston, David Cay (Org.).
Divided: the perils of our growing inequality. Nova York: The New Press, 2015. p. 44-49.
512 STIGLITZ, Joseph E. The price of inequality: how today’s divided society endangers our future.
New York: Norton, 2013. p. 48-64.
513 PIKETTY, op. cit., p. 411-412.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 269
um sistema econômico próspero e justo – mesmo que estas inter-
venções jamais sejam perfeitas
514
. A atuação distributiva do Estado
pode funcionar como espécie de contrabalanceamento à tendência
dos mercados que objetivam produzir resultados eficientes, espe-
cialmente quando existem limitações orçamentárias515.
Evidentemente, não se busca aqui afirmar um determinismo
no comportamento humano. A discussão sobre falhas de mercado
não pressupõe que todo agente econômico extremamente rico, ao
buscar tão somente lucros pessoais, se valerá do poder econômico
para distorcer as demais esferas sociais. Seria possível argumentar,
com base em tais dados, que pleitos contrários a extrema riqueza
são, no fundo, reflexos de um ressentimento por parte de pessoas
que não conseguiram alcançar tal status econômico516.
Todavia, esta posição parece não se confirmar na realidade
brasileira. Primeiro, a discussão quanto à manutenção de estrutu-
ras econômicas que concentram renda há gerações fazem ainda
mais sentido em nosso ordenamento jurídico. A importância da
herança é maior na América Latina e no Brasil: 47% dos bilionários
pátrios são herdeiros
517
. Segundo, a construção da maior parte
das fortunas nesta geração não constitui um fator impeditivo à
organização de grupos de interesse que moldam os mercados e o
sistema político por meio de seu poder econômico, incidindo assim
em comportamentos rentistas. Apesar de a economia capitalista
514 STIGLITZ, 2013, p. 48-64.
515 STIGLITZ, Joseph E. Government Failure vs. Market Failure: Principles of Regulation. In:
BALLEISEN, D; MOSS, D. (Eds.). Government and Markets: Toward a New Theory of Regulation.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 6.
516 O economista laureado com o Nobel de Economia, James Heckman, por exemplo, afirma que,
superada a garantia de uma vida digna para todos numa sociedade, não importaria que uns
ganhem muito, e muitos ganhem pouco. Neste sentido, ver MENA, Fernanda. Pré-distribuir
habilidades é melhor jeito de reduzir desigualdade, diz Nobel de Economia. Folha de São Paulo,
29 jul. 2019. Disponível em:
habilidades-e-melhor-jeito-de-reduzir-desigualdade-diz-nobel-de-economia.shtml>. Acesso
em: 20 jan. 2020. Também, merece nota a discussão promovida no programa de Mestrado da
UERJ com o professor Luis Roberto Barroso, que defendeu posição parecida à de Heckman.
Afirmar que a maioria dos bilionários construíram sua fortuna pode parecer, a primeira vista,
um poderoso argumento contra qualquer tentativa de traçar uma tendência concentradora
de riqueza numa sociedade de mercado. Estudos demonstram que, atualmente, a maior
parte dos bilionários construíram as próprias fortunas, tendo apenas 30% destes herdado
valores tão vultuosos. Isso é considerável menos do que há duas décadas, quando as heranças
correspondiam a uma parcela maior do dinheiro.
517 FREUND, Caroline; OLIVER, Sarah. The Origins of the Superrich: The Billionaire Characteristics
Database. Working Paper, fev. 2016. Disponível em:
wp16-1.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
270
tender à concentração de riqueza, existem fatores históricos ca-
pazes de expandir a desigualdade. Terceiro, estudos demonstram
que, apesar do aumento do número de novos bilionários, isso não
significa que aqueles que já eram ricos não tenham ficado ainda
mais endinheirados. Cerca de 20% do aumento da riqueza nas
mãos de bilionários no período se deve ao enriquecimento de
quem já fazia parte do grupo518.
Estas distorções, que se originam no topo da pirâmide, são
notadas também nos diferentes setores sociais. Mesmo que o de-
senvolvimento econômico venha levando à acentuada diminuição
de pobreza, a desigualdade econômica possui aspectos distintos,
que podem se manifestar dentro negativamente em diferentes
setores da sociedade. Em pesquisa realizada por Michael Norton
e Dan Ariely, entrevistados acreditavam que o quinto mais rico
nos Estados Unidos detinha, no máximo, 59% da riqueza nacional.
A perspectiva mostrou-se bastante otimista, eis que o valor acu-
mulado por esta fatia do estrato social é, hoje em dia, de 84%519.
São comuns ilusões positivas deste tipo de sentimento geral
sobre desigualdade, e a econômica comportamental vem apresen-
tando conclusões que implicam diretamente no estudo sobre con-
centração econômica. Keith Payne procura demonstrar que boa
parte da resposta dada à desigualdade é moldada pela necessidade
dos indivíduos em ocupar um status que as permitam se sentir con-
fortáveis. Crer que a concentração econômica é consideravelmente
menor nos países que vivem faz com que pessoas de classe média
e pobres se coloquem em uma situação de maior vantagem do
que caso reconhecessem os abismos sociais que representam as
verdadeiras medidas de desigualdade econômica nos países aqui
documentados. Extrai-se, assim, que a desigualdade não se constrói
apenas pela questão monetária, mas também pelo comportamento
espelhado nas outras pessoas520.
518 Ibid.
519 ARIELY, Dan; Norton, Michael. Building a better america – one wealth quintile at a time”.
Perspectives on Psychological Science, p. 10, 2011. Disponível em:
edu/mnorton/norton%20ariely%20in%20press.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020.
520 PAYNE, Keith. The broken ladder: how inequality affects the way we think, live, and die. Nova
York: Viking, 2017. p. 29.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 271
A percepção sobre riqueza e pobreza são sempre relativas no
tempo e no espaço, e isso inclui o fato de que pessoas realizam
comparações sociais entre demais, até mesmo sem perceber obje-
tivamente este tipo de atitude. Gary Becker aponta que a economia
não deve observar os indivíduos apenas tomando como critério
uma perspectiva individualista, ancorada no lucro, já que as pessoas
buscam maximizar o bem-estar na forma que elas o percebem521.
O julgamento acerca da própria posição social nunca é dissociado
da comparação relativa, e nossa noção de valor jamais está ligada
à situação daqueles à nossa volta.
Entre uma pessoa muito rica, uma de classe média e uma ex-
tremamente pobre, tudo lhes é oferecido de forma diferente. In-
divíduos em ordens econômicas muito desiguais são afetados de
maneiras que transcendem o seu acesso a bens de consumo. A ex-
cessiva concentração de riqueza, mesmo que nem sempre implique
no empobrecimento de um estrato social, permite a existência de
abismos sociais que afetam diretamente o reconhecimento do sta-
tus dos indivíduos – mesmo que estes só percebam isso inconscien-
temente522. A insegurança raramente é associada a altos níveis de
desigualdade econômica, mas constitui uma marca da atual classe
média, num contexto de incompreensão sobre o futuro, que influen-
cia de forma decisiva na efetividade dos projetos constitucionais
igualitários pelo mundo.
3. Concentração Econômica e o Projeto
Constitucional-Redistributivo Brasileiro
Em narrativa metafórica, Lawrence Lessig idealiza um país em
que, a despeito da vigência de um regime democrático represen-
tativo, existiriam duas eleições
523
. Na primeira, teriam direito ao
voto apenas uma fração da sociedade escolhida aleatoriamente:
os Lesters. Este grupo seria determinante para o sucesso de qual-
quer candidato, já que, para poder concorrer na segunda eleição,
521 BECKER, Gary. The Economic Way of Looking at Life. Law & Economics Working Paper, n. 12, 1993.
522 PAYNE, op. cit., p. 50.
523 LESSIG, Lawrence. Institutional Corruptions. Edmond J. Safra Research Lab Working
Papers, n. 1, Harvard University, 2013. Disponível em:
cfm?abstract_id=2233582>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
272
o potencial representante deveria se sair extremamente bem na
primeira. Aqui, está desenhada uma democracia constitucional em
que (i) a influência decisiva do cidadão comum é baixa, dependendo
preliminarmente da decisão tomada apenas pelos Lesters; (ii) há
incentivos para a transferência de poder aos Lesters, e (iii) legisla-
dores dependem de dois tipos distintos de público, tendo em vista
as duas etapas do processo democrático. Os Lesters seriam um
grupo hipotético, com prerrogativas análogas ao das pessoas extre-
mamente ricas, que servem como atores ativos no processo político
dos Estados Unidos. Na verdade, a situação seria ainda pior, eis que
o poder financeiro no processo eleitoral americano representa uma
classe específica, com interesses específicos e identificáveis.
Para Lessig, tal modelo demonstra a corrupção institucional524
do processo democrático nos Estados Unidos, em que os dois sus-
tentáculos da representação política americana entram em con-
flito – de um lado, o dinheiro, e de outro, o povo. Neste cenário,
fica prejudicado o pressuposto republicano de se considerar cada
indivíduo singularmente. O autor fala em corrupção, mas isso pode
ser também entendido como a captura da Constituição de deter-
minado país por um pequeno grupo afluente, que limita e molda as
decisões públicas em seu favor. Haveria, portanto, um processo de
oligarquização constitucional.
A oligarquização constitui uma contradição fulcral nos sistemas
jurídicos construídos nos países ocidentais, e especificamente con-
flita com as bases do constitucionalismo brasileiro. Daniel Sarmento
e Cláudio Pereira de Souza Neto tratam do percurso de abandono
de uma noção meramente liberal-burguesa de constituição, pela
qual se compreendia a igualdade a partir de uma perspectiva me-
ramente formal, e cujo arcabouço se voltava à preocupação com
direitos individuais e limitação a limitação do poder. O modelo,
como era de se esperar, inviabilizava a intervenção redistributiva
na esfera econômica, impedindo que se alterassem as relações de
poder daquela sociedade. Além disso, em nada buscava-se inter-
ferir na opressão que marca as relações privadas, nem que isso
significasse atenuar a pobreza ou rendas improdutivas. Um modelo
524 Ibid.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 273
destes, além de negativo no aspecto político-econômico, opõe-se
ao projeto constitucional redistributivo que permeia o ordenamento
jurídico brasileiro. Em seu lugar, passaram a vigorar constituições
com claro cunho social, nas quais, apesar de não renegar os ele-
mentos positivos do liberalismo, buscava-se a conciliação com os
valores de justiça social e bem-estar coletivo525.
Em linha similar, é possível afirmar que, além das tradições
liberais, outro lado do constitucionalismo democrático é o floresci-
mento de demandas pelo robustecimento do republicanismo, que
tem como condição a ampla participação no processo governamen-
tal, decorrente da emergência de uma cidadania verdadeiramen-
te ativa
526
. Aqui, associa-se também a noção de desenvolvimento
sustentável, com uma conotação positiva, especialmente em países
marcados pela forte desigualdade social e falta de acesso de grande
parte da população a serviços básicos. Oscar Vilhena Vieira e Dimi-
tri Dimoulis afirmam que a Constituição brasileira tem a pretensão
de pôr em prática o governo republicano nela desenhado, numa
proposta de conciliação entre as perspectivas liberal e social. Para
eles, daí surgiu uma constituição aspiracional, cuja relação com o
desenvolvimento impõe uma noção substantiva de justiça, mediante
o desenvolvimento e a transformação econômico-social, e articula
meios para garantir a expansão do bem-estar coletivo. Constitui-
ções deste tipo funcionam como pontos de partida e não de che-
gada, já que dependem do jogo político e da constante presença
dos atores sociais, que podem pressionar as autoridades estatais a
implementar os programas constitucionais527.
Na esteira do constitucionalismo social, desenvolveu-se, no
sistema jurídico brasileiro, a doutrina da efetividade, que procura-
va incutir um potencial emancipatório na Constituição Federal de
1988. Nela, identifica-se, de um lado, uma dimensão garantística,
associada à perspectiva liberal, que consagra liberdades e garantias
525 SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e
métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 80-81.
526 CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Governo democrático e jurisdição
constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
527 VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri. Constituição e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ,
José Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de direito e desenvolvimento. São
Paulo: Saraiva, 2011. p. 51-54.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
274
individuais. De outro, há uma faceta dirigente, a partir da qual se
estabelece um amplo rol de direitos sociais, trabalhistas e econômi-
cos, associados a uma série de normas voltadas para a formulação
um projeto de futuro igualitarista
528
. Sobre este segundo ponto,
foi implantada na Constituição brasileira uma verdadeira casa de
máquinas objetivando a implementação de interesses coletivos de
cunho redistributivos
529
. O combate às desigualdades sociais tem
sua efetivação prevista em uma série de cláusulas redistributivas
do texto constitucional, e deve ser levado a sério em meio a um
discurso de efetividade.
Este objetivo igualitário pode ser identificado tanto por meio de
normas principiológicas quanto por estas cláusulas redistributivas em
sentido estrito, que tomam a forma de programas constitucionais.
Na primeira categoria, destaco, sem pretensão de exaurir as
possibilidades, (i) o art. 3°, inciso II, que inclui no rol dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil não só a erradi-
cação da pobreza e da marginalização, mas também “reduzir as
desigualdades sociais e regionais”; e (ii) o art. 170, VII, que estabe-
lece, como princípio da ordem econômica brasileira, a “redução das
desigualdades regionais e sociais”. Neste ponto, parecem existir ex-
celentes razões para argumentar que a noção de isonomia, segundo
a Constituição Federal, não passa apenas pelo tratamento igualitário
perante a lei ou a erradicação da pobreza extrema – valores estes
que parecem estar se consolidando na prática jurídico-política bra-
sileira. Normas abertas como estas têm o condão de promover um
debate mais profundo sobre as diferentes noções de desigualdades
sociais, que diz respeito também à concentração econômica nos
setores extremamente ricos da sociedade.
Prosseguindo, a Constituição Federal estabelece programas
com a pretensão de interferir diretamente em diversos setores da
economia e da vida privada, objetivando dar concretude ao projeto
social-redistributivo instaurado pelo ordenamento jurídico em 1988.
São exemplos destas cláusulas redistributivas, (i) o capítulo relativo
528 SARMENTO, op. cit., p. 198.
529 Neste ponto, ver ALEXY, Robert. Individual Rights and Collective Goods. In: NINO, Carlos
Santiago (Ed.). Rights: International Library of Essays in Law and Legal Theory. New York:
New York University Press, 1992. pp. 169-174.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 275
à política agrícola e fundiária e da reforma agrária, que, dentre outras
funções, atribui competência à União para “desapropriar por interes-
se social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja
cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização
em títulos da dívida agrária” (art. 184); (ii) o capítulo relativo à polí-
tica urbana, que consagra hipóteses de usucapião, instituto jurídico
que permite aos indivíduos adquirir originariamente a propriedade
de imóveis, sejam rurais ou urbanos, após percorrido prazo ininter-
rupto e sem oposição (artigos 183 e 191); e (iii) o capítulo relativo à
seguridade social, que deve ser financiada “por toda a sociedade,
de forma direta e indireta” (art. 195). Estes três institutos ilustram
a vasta pretensão redistributiva do direito constitucional brasileiro,
que merece um estudo mais aprofundado.
Sociedades cujos recursos econômicos se encontram concen-
trados numa pequena elite são fundamentalmente incompatíveis
com uma forma republicana de governo, e serão apresentados dois
cenários que apontam para transformações no constitucionalismo
que baseia tais ordenamentos jurídicos530.
3.1 A Constituição Oligarquizada
No país alegórico de Lesterland, a invasão das “distinções de
berço” no sistema político é considerada uma forma de corrupção,
tamanha a distorção que a conduta é capaz de trazer às bases
do republicanismo fundador da constituição americana. Lessig se
ampara no Federalista 52 de Madison, que afirmava a dependência
dos representantes eleitos em face de cada um de seus eleitores
531
.
530 SITARAMAN, Ganesh. Economic Inequality and Constitutional Democracy. In: GRABER, Mark
A.; LEVINSON, Sanfor; TUSHNET, Mark (Ed.). Constitutional Democracy in Crisis? Oxford:
Oxford Univ. Press, 2018. O autor também fala, em outros efeitos, da extrema desigualdade
econômica que ameaçam o sistema democrático. Um destes é a impossibilidade de uma vida
razoável diante da opressão privada, num mundo em que o poder econômico é capaz de ditar
questões essenciais à vida das pessoas comuns. Situações extremas teriam sido vistas ao longo
da história, como é o caso da escravidão e da servidão nas sociedades feudais. Tais formas
de opressão são vistas por autores republicanistas como uma modalidade evidente de tirania,
configurando arranjos econômicos incompatíveis com o constitutionalismo democrático. Nos
dias de hoje, o processo de precarização de trabalhos pode ser visto como porta de entrada
relevante para o domínio econômico. Sociedades cuja riqueza é extremamente concentrada
vêm oferecendo postos de trabalho sem uma margem de proteção que seria considerada
mínima há alguns anos. Sobre a questão, é preocupante a relação que pessoas de classe
média-baixa têm com aplicativos de economia compartilhada, como Uber e Ifood. Também,
ver ANDERSON, Elizabeth. Private government: how employers rule our lives. EUA: Princeton
University Press, 2017.
531 LESSIG, op. cit.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
276
No Brasil, em que pese ter o Supremo Tribunal Federal proibido
recentemente a doação de empresas privadas em campanhas elei-
torais
532
, a captura pelo poder econômico do funcionamento das
constituições ainda ocorre, e vai na contramão do que o constituin-
te planejou que fosse realizado no período de redemocratização
do país, ao consagrar um constitucionalismo econômico compro-
missório – ou seja, atento à liberdade econômica, mas também à
promoção da justiça social
533
. O constitucionalismo brasileiro ainda
procura conferir mais efetividade a estas cláusulas, seja por meio
da alocação de recursos financeiros – especialmente na realização
de direitos sociais, mas também nos programas constitucionais.
Em estudo que trata dos efeitos da desigualdade econômica
sobre as democracias constitucionais, Ganesh Sitaraman aponta
para a possibilidade de se estarem formando sociedades oligárqui-
cas, cujo interesse de preservação do seu quinhão é o que estimula
as classes mais ricas
534
. Financiamento de campanhas eleitorais,
lobby nos processos legislativo e judicial, efeito de porta giratória
em cargos-chave das políticas econômicas e captura das agências
reguladoras são preocupações centrais para o constitucionalismo
americano, do qual se aproxima a premissa de tradução do poder
econômico em poder político. Questões como estas, num mundo
de grande concentração econômica, tem efeitos que incluem a ex-
cessiva financialização da econômica americana, baixa tributação
532 Este problema parece ter sido atenuado no Brasil, em decisão tomada pelo Supremo Tribunal
Federal, que julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.650, para
declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de
pessoas jurídicas às campanhas eleitorais. Mas, a despeito de uma significativa renovação no
parlamento ocorrida nas eleições de 2018, ainda estamos numa fase em que grande parte
dos políticos comprometidos com a pauta das empresas que lhes financiavam conseguiram
se manter no poder. A situação parece ainda mais grave no cenário americano, em que a
Suprema Corte decidiu recentemente pela constitucionalidade da doação de empresas em
campanhas eleitorais. A decisão é vista com uma permissão implícita ao que costumava ser
entendido por estudiosos como corrupção institucional, já que naturaliza no sistema jurídico
vícios provenientes da troca de dinheiro por favores políticos.
533 Neste sentido, André Cyrino afirma que, em uma constituição compromissória, tem-se um
alargado espectro de possíveis conformações da economia, consoante decisões a serem tomadas
pelos órgãos democraticamente eleitos. Ver CYRINO, André. Direito constitucional regulatório.
2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2018. Há também quem diga que o constitucionalismo é
“chapa branca”, entrincheirando privilégios no sistema rígido do texto constitucional. Neste
sentido, ver SUNDFELD, Carlos Ari. A Constituição Chapa Branca. Disponível em:
raphaelmoras.wordpress.com/2014/10/20/constituicao-chapa-branca-carlos-ari-sundfeld/>.
Acesso em: 20 jan. 2020.
534 SITARAMAN, Ganesh. Economic Inequality and Constitutional Democracy. In: GRABER, Mark
A.; LEVINSON, Sanfor; TUSHNET, Mark (Ed.). Constitutional Democracy in Crisis? Oxford:
Oxford Univ. Press, 2018.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 277
sobre pessoas extremamente ricas, e sucateamento das organiza-
ções de classe. O autor analisa a disfuncionalidade pela qual esta
estrutura social causa no sistema político, e, após, na efetividade
de diferentes democracias constitucionais.
Para a consecução desta tarefa, parte-se de uma premissa
aristotélica segundo a qual as comunidades políticas mais aptas à
democracia seriam aquelas formadas, essencialmente, por cidadãos
de classe média535. A narrativa de captura pelo poder econômico
do sistema político, afirma Sitaraman, está diretamente associada
à ideia de oligarquia536.
Em sua obra, Piketty faz alerta relevante sobre a impossibili-
dade de uma estrutura rentista, clássica das oligarquias, conviver
com uma democracia nos moldes da francesa. Ao identificar como
atributo inescapável da atividade econômica existente a concen-
tração patrimonial extrema, o autor questiona a possibilidade de
sucesso das sociedades democráticas, nas quais se espera que as
desigualdades sejam mais fundadas no mérito e no trabalho do que
na filiação e na renda537. Nestes tipos de democracias, a igualdade
proclamada dos direitos dos cidadãos contrasta de maneira singular
com a desigualdade real das condições de vida. A racionalidade
econômica em nada tem a ver com a racionalidade democrática. O
autor conclui que “a democracia real e a justiça social exigem insti-
tuições específicas, que não são apenas as do mercado e, também,
não podem ser reduzidas às instituições parlamentares e democrá-
ticas formais538”. O iluminismo teria buscado superar a dominação
política dos mais afluentes, mas não aboliu as forças econômicas
capazes de produzir uma sociedade de rentistas.
A perspectiva encontra guarida na narrativa desenvolvida por
Joseph Stiglitz: num cenário em que são criados campos favoráveis
535 BOBBIO, Norberto. A Teoria das formas de governo. São Paulo: Edipro, 2017.
536 Ibidem.
537 PIKETTY, op. cit., p. 20. O autor apresenta questão relevante relaciona ao emprego negativo
da ideia de renda no imaginário francês. Se antes isso era aceito na sociedade, os valores
meritocráticos e democráticos se impuseram, e a palavra “renda” se tornou quase um insulto.
Cabe questionar se, no Brasil, isso também vem acontecendo.
538 Ibid. Piketty tem uma visão diferente da de outros economistas, segundo o qual a renda
não é uma imperfeição do mercado, mas, ao contrário, a consequência de um mercado de
capital “puro e perfeito” no sentido dos economistas. Seja qual for o problema encontrado, a
consequência é o capitalismo patrimonial.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
278
ao 1% mais rico da sociedade, o autor busca examinar como essa
forma de concentração afeta a economia do sistema político. Os
super ricos atuariam com condutas rentistas, visando a manutenção
de suas imensas fatias, com influência determinante para distorcer
as políticas públicas capazes de transferir riqueza numa direção
progressiva. Fica distorcido o raciocínio de que cada pessoa possui
mesmo peso que o seu próprio voto (“one person, one vote”), que
se trata de um dos pilares do constitucionalismo democrático539.
Essa questão parece encontrar explicações na lógica de re-
presentatividade sobre políticas públicas. Em geral, representantes
eleitos são mais responsivos às preferências das elites ricas do que
de pessoas com uma renda média
540
. No Brasil, esse tipo de cená-
rio talvez se explique pelo maior acesso que pessoas ricas têm aos
representantes: Sérgio Lazarini, em esforço de trazer para a realida-
de brasileira a noção de crony capitalism – ou capitalismo de laços,
aproxima o funcionamento da economia brasileira da nossa tradição
patrimonialista, pela qual a prosperidade é dependente das valiosas
relações sociais entre agentes privados e estatais, que interagem
em ambientes mutuamente frequentados, a qual o autor denomina
mundos pequenos
541
. Por exemplo, a política dos campeões nacionais,
consistente no fomento estatal para o crescimento de empresas ca-
pazes de competir em escala internacional, é entendida como incen-
tivo à concentração de renda que parte do próprio erário público
542
.
A distorção do sistema jurídico-político pelo poder econômico
assume, para Stiglitz, diferentes facetas. O autor enumera algumas
práticas levadas a cabo nos Estados Unidos, e que encontram cor-
respondentes no Brasil. São elas: (i) ajustes com o poder político pela
exploração monopolista de ativos estatais; (ii) edição de leis capazes
de diminuir a competitividade de determinados mercados, ou má
aplicação do direito concorrencial; (iii) subsídio do governo a ativi-
dades econômicas extrativistas, por meio de estratégias de fomento
539 STIGLITZ, 2013, p. 48-64.
540 Neste sentido, ver Ibid.; e SITARAMAN, Ganesh. “Economic Inequality and Constitutional
Democracy” in Constitutional Democracy in Crisis? (ed. Mark A. Graber, Sanford Levinson,
Mark Tushnet). Oxford Univ. Press, 2018.
541 LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. Campus, 2010.
542 Para uma crítica relevante sobre a política dos campeões nacionais, ver CYRINO, André.
Crítica ao capitalismo de Estado. Valor Econômico, 27 jun. 2013. Disponível em:
valor.com.br/opiniao/3176410/critica-ao-capitalismo-de-estado>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 279
público; e (iv) captura regulatória, por meio da qual o poder eco-
nômico busca eleger seus próprios árbitros no cenário regulatório.
É possível identificar um potencial processo de oligarquização
do sistema jurídico brasileiro. Como aponta Stiglitz, para pessoas
extremamente ricas, gastar com políticas para moldar o sistema
não é uma questão de virtude cívica, mas, sim, um investimento, do
qual é demandado retorno543. Ressalta-se, ainda, que a prática do
rent seeking não é a única forma de se obter e preservar fortunas
na sociedade544. Também são listadas questões como (a) tributa-
ção regressiva, em que aqueles no topo pagam uma fração muito
menor do que o justo; ou (b) a atuação do sistema financeiro, por
meio de empréstimos predatórios e práticas abusivas de cartão
de crédito, especialmente em face dos mais pobres e desinforma-
dos. Como afirmado acima, este artigo não tem a pretensão de
pormenorizar as complexas questões que cada situação oferece
aos juristas. Entretanto, é possível acordar que, caso efetivadas
no mundo concreto, as práticas listadas por Stiglitz acabam por
corromper grande parte dos programas constitucionais redistribu
-
tivos presentes na Constituição de 1988. Neste cenário, haveria um
risco verdadeiro ao constitucionalismo democrático que a ordem
constitucional brasileira estabelece.
3.2 A Constituição Degradada
Um risco de segunda ordem advindo da extrema concentração
econômica surge diante dos danos à democracia constitucional,
causados por oligarquias econômicas. A ansiedade de status, que se
relativiza pela comparação com os mais afluentes, justifica-se dian-
te da insegurança econômica em contraste com grandes fortunas
veiculadas na mídia, e tem servido de ânimo a parte das recentes
crises constitucionais
545
. Temos observados diversos backlashes
populistas em ordens constitucionais estabelecidas, o que cria a
543 STIGLITZ, 2013, p. 148-182.
544 Ibid., p. 51.
545 Para o cientista político David Soskice, as pessoas nestas democracias encontram-se ansiosas
em relação ao futuro, e, diante disso, olham para o mundo exterior em busca de culpados.
Neste cenário, propostas populistas, como o fechamento de fronteiras, ganham força no
debate público. Ver CANZIAN, Fernando. Frente a desigualdade crescente, Estados devem
ter papel mais ativo, diz cientista político. Folha de São Paulo, 24 jul. 2019. Disponível em:
devem-ter-papel-mais-ativo.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
280
necessidade de se pensar naqueles “deixados para trás” pelo de-
senvolvimento econômico.
Como visto, Stiglitz parte da premissa de que o sistema político
é cercado de uma série de práticas com a finalidade de garantir o
quinhão das pessoas mais ricas, pelo controle das escolhas públicas
cruciais em seu favor
546
. O atual cenário de distribuição de riquezas
no mundo coloca um peso desigual sobre a classe média, que sofre
das mazelas da insegurança financeira. Uma grande quantidade de
dívidas, redução dos mecanismos de assistência social e encareci-
mento do custo de vida vem levando ao achatamento deste grupo
que já possuiu maior proeminência, aproximando também uma par-
te crucial da sociedade ao poço da pobreza
547
. A narrativa corrente
tem sido no sentido de perda de confiança no sistema democrático.
Quando vêm à tona, este comportamento leva à redução do que o
autor denomina capital social, conceito relacionado à capacidade
de coesão de determinada comunidade, uma espécie de cola que
mantém sociedades juntas.
Diante da exposição da sociedade civil a um número conside-
rável de transgressões, ocasionadas pela oligarquização da vida
política – e assim das constituições, há uma significativa quebra de
confiança no sistema político pela sociedade. A noção de desigual-
dade na vida pública favorece o sentimento de injustiça sobre o
sistema econômico e a política. Neste sentido, torna-se mais custoso
aumentar o número de eleitores interessados no processo eleitoral,
já que pessoas passam a participar menos do processo político. Ao
esvaziar o espaço de participação para o cidadão médio, grandes
desigualdades econômicas abrem caminho para o domínio na polí-
tica de interesses coincidentes com quem se encontra no topo dos
estratos sociais. Há um cenário de verdadeira alienação do poder,
que advém da falta de confiança, cooperação e senso de justiça
para ordenar a sociedade. O capital social se desmancha548.
546 STIGLITZ, 2013, p. 148-182.
547 Recentemente, o jornal Folha de São Paulo produziu uma série de reportagens especiais
acerca da desigualdade pelo mundo, apontando para a forma com que pessoas afetadas
pela globalização perdem status e se rendem aos discursos populistas. Neste sentido, ver
CANZIAN, Fernando. A revolta da classe média. Folha de São Paulo, 22 jul. 2019. Disponível
em:
shtml>. Acesso em: 20 jan. 2020.
548 STIGLITZ, 2013, p. 148-182.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 281
Neste cenário, tais sociedades correm riscos de se afastarem
de uma efetiva cidadania ao ver sua participação popular captura-
da por agendas populistas e extremistas, cujo discurso baseia-se
no ataque a um establishment que teria criado o sistema injusto. A
incorporação desta agenda vem se desenvolvendo num cenário de
cidadania mal informada nos países que passam por crises demo-
cráticas. O cidadão comum é desempoderado, enquanto eleitores
muito ricos seguem corrompendo o sistema político para garantir
a manutenção de seus lucros549.
A separação na sociedade tem consequências sistêmicas pro-
fundas: confiança e boa vontade recíproca são necessárias não
apenas para o funcionamento de mercados, mas também para
cada aspecto da cooperação social. O resultado de tais fatos pode
desaguar num momento de fragilidade na coesão social, marcado
por uma sensação de injustiça que reverbera no ceticismo com as
instituições jurídicas550.
A narrativa construída até aqui mostra-se consoante com o que
Jack Balkin denominou de podridão constitucional (ou constitutional
rot)551, consistente na decadência dos atributos do sistema consti-
tucional que permitem a manutenção de uma república saudável.
O autor explicita um grave problema de representação, tendo em
vista que o sistema político vem se tornando menos democrático e
republicano; ao passo que mais oligárquico. Isto é: a responsividade
política nas democracias tem se aproximado cada vez mais de um
grupo pequeno de indivíduos, enquanto abandona a opinião popular
e seus representantes não procuram mais se orientar pelo interesse
de todos os grupos para quem governam552.
549 Ibid.
550 SITARAMAN, Ganesh. The crisis of the middle-class constitution: why economic inequality
threatens our Republic. Nova York: Alfred A. Knopf, 2017.
551 BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot, Maryland Law Review, v. 77, n. 1,
2017. Nesta esteira, ver VARGAS, Daniel. A degradação constitucional brasileira. In: BOLONHA,
Carlos; OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de (Coords.). 30 anos da Constituição de 1988: uma
jornada inacabada. Belo horizonte: Fórum, 2019. p. 161-172. O autor vem apresentando também
uma visão similar sobre degradação constitucional, mas amparada no comportamento do
Supremo Tribunal Federal diante dos recentes choques políticos. Também, para uma visão
mais global, ver GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How to lose a constitutional democracy. UCLA
Law Review, v. 65, n. 78, 2018.
552 Ibid.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
282
A concentração econômica excessiva faz com que os mais ricos
tendam a abocanhar uma desproporcional do poder político, de
modo a utilizá-lo para garantir sua própria riqueza. Assim, dese-
nha-se como característica do constitucionalismo contemporâneo
a corrupção das repúblicas, já que estas, no contrafluxo, passam a
trabalhar com a função de enriquecer um grupo pequeno de apoia
-
dores para mantê-los no poder. É um perigo real que, num processo
de oligarquização, a perda de fé no sistema político daqueles aban-
donados pelos políticos permite o crescimento de demagogos
553
,
que prometem o retorno a tempos pretensamente gloriosos, mas
que acoplam os interesses econômicos aos seus próprios.
4. Por uma Narrativa de Regulação da Concentração
Econômica no Brasil
Ao longo deste artigo, pudemos tomar contato com o histó-
rico recente, assim como dados alarmantes acerca dos níveis de
concentração econômica existentes tanto no Brasil quanto em
outros países. O estudo das desigualdades apresentou um salto
quantitativo e qualitativo, de modo que especialmente as ciências
econômicas e políticas conseguiram avançar nos mais diversos
aspectos do tema ao longo da última década. Procuramos trans-
plantar para a teoria constitucional uma parte desta literatura e,
assim, a averiguar a (in)compatibilidade dos atributos de uma
sociedade extremamente desigual do ponto de vista econômi-
co, com características explicitamente rentistas, com as bases do
constitucionalismo brasileiro.
Diante deste cenário, a atenuação da concentração econômica
foi identificada como um interesse coletivo, a ser cumprido median-
te a efetivação de direitos sociais, trabalhistas e econômicos, e de
um programa constitucional, bem como de uma série de cláusulas
redistributivas espalhadas pelo texto constitucional. De outra mão,
tais interesses também devem ser ponderados com outros valores
caros à herança liberal do constitucionalismo, que se preocupa com
a limitação do poder e garantias individuais. Assim, foram introdu-
zidos dois grandes riscos que a excessiva concentração econômica
553 Ibid.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 283
oferece ao constitucionalismo democrático. Desenhamos um cená-
rio de oligarquização constitucional, e outro em que a constituição
ameaça caminhar para um processo de degradação.
Diante dos índices observados, assim como a aproximação des-
tes dois riscos, parece que a concentração econômica carece de
uma regulação jurídica comprometida com a sua atenuação, na qual
os eventuais conflitos jurídicos com posições individuais irrenunciá-
veis sejam tratados de forma mais sincera. Como demonstra Stiglitz,
o enfrentamento das desigualdades econômicas também envolve
uma batalha de uma camada mais profunda no campo das ideias,
que diz respeito à visão que as pessoas têm sobre o funcionamento
de mercados e do governo. Muitas pessoas que fazem parte dos
99% menos afluentes do estrato social são levadas a pensar como
se fizessem parte do seleto grupo de extremamente ricos, e são
convencidas de que os interesses deste grupo coincidem com os
seus na tomada de decisões públicas
554
. Trata-se de uma disputa
por ideias que transcendem o direito, e merece ser discutida na
arena apropriada.
Contudo, diferentes métodos de estudo do direito podem ser
empregados para lidar com questões redistributivas. A mera pon-
deração de valores abstratos mostra-se insuficiente para jogar luz
em muitas das questões que envolvem estes tipos de conflitos,
abrindo portas para que o poder econômico capture as decisões por
meio de discursos insinceros. Entretanto, é papel do direito buscar
decisões que permitam o equilíbrio entre interesses e direitos do
Estado, dos agentes econômicos interessados e da sociedade civil,
de uma forma que uma esfera não se sobreponha às demais. Assim,
uma primeira abordagem apta a aprimorar este debate é oferecida
por Katharina Pistor
555
, que propõe uma ótica sobre o direito como
o instrumento por excelência capaz de codificar os mais variados
ativos, e servindo de matriz à produção do capital, e definindo em
que medida os detentores dos ativos terão vantagens comparativas
sobre os demais. Diante desse sistema, a autora joga luzes sobre os
modelos jurídicos que disciplinam as relações entre quem possui
554 STIGLITZ, 2013, p. 185.
555 PISTOR, Katharina. The code of capital: how law creates wealth and inequality. Princeton:
Princeton University Press, 2019.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
284
ativos e os demais, fornecendo assim um instrumental capaz de
analisar com maior rigor a forma com que se produz e distribui
riqueza na sociedade.
Associado à visão do direito como criador do capital, o Bruce
Ackerman e Anne Alstott556 incentivam uma narrativa das institui-
ções jurídicas em que seja explicitada a fatia econômica que caberá
a cada grupo em determinada sociedade. Ao falar em stakeholders,
os autores criticam a construção por juristas e economistas liberais
de uma miragem da liberdade formal, que funciona como uma pa-
ródia de seus ideais. O debate jurídico redistributivo não pode se
limitar a objeções genéricas à planificação da economia nos casos
de intervenção do Estado. Este discurso carece na maior parte das
vezes de base empírica, e assenta-se sobre uma visão ideologizada
de mundo. Em seu lugar, devemos adotar uma postura sincera sobre
os vencedores e perdedores de qualquer decisão pública. O estudo
das desigualdades econômicas associadas ao direito, caso tenha
como norte uma sociedade economicamente mais justa, deverá
transpor imediatamente esta fronteira.
5. Referências Bibliográficas
ACKERMAN, Bruce; ALSTOTT, Anne. Why Stakeholding?. In: ACKERMAN,
Bruce; ALSTOTT, Anne; VAN PARIJS; Philippe (Orgs.). Redesigning
distribution: basic income and stakeholder for a more egalitarian capitalism.
Londres/Nova York: Verso, 2006.
ANDERSON, Elizabeth. Private government: how employers rule our lives. EUA:
Princeton University Press, 2017.
ALEXY, Robert. Individual Rights and Collective Goods. In: NINO, Carlos
Santiago (Ed.). Rights: International Library of Essays in Law and Legal
Theory. New York: New York University Press, 1992.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
ARIELY, Dan; Norton, Michael. Building a better america – one wealth quintile
at a time”. Perspectives on Psychological Science, p. 10, 2011. Acesso em:
pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020.
556 ACKERMAN, Bruce; ALSTOTT, Anne. Why Stakeholding?. In: ACKERMAN, Bruce; ALSTOTT,
Anne; VAN PARIJS; Philippe (Orgs.). Redesigning distribution: basic income and stakeholder
for a more egalitarian capitalism. Londres/Nova York: Verso, 2006.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 285
BALKIN, Jack. Constitutional Crisis and Constitutional Rot, Maryland Law
Review, v. 77, n. 1, 2017.
BARROSO, Luís Roberto. Revolução tecnológica, crise da democracia e risco
ambiental: limites do direito num mundo em transformação. Revista Estudos
Institucionais, v. 5, n. 3, p. 1252-1313, set./dez. 2019.
BECKER, Gary. The Economic Way of Looking at Life. Law & Economics
Working Paper, n. 12, 1993.
BOBBIO, Norberto. A Teoria das formas de governo. São Paulo: Edipro, 2017.
CANZIAN, Fernando. A revolta da classe média. Folha de São Paulo, 22 jul.
2019. Disponível em:
europa/a-revolta-da-classe-media.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2020.
CANZIAN, Fernando. Frente a desigualdade crescente, Estados devem ter papel
mais ativo, diz cientista político. Folha de São Paulo, 24 jul. 2019. Acesso em:
crescente-estados-devem-ter-papel-mais-ativo.shtml>. Acesso em: 20 jan.
2020.
CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Governo democrático
e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e desenvolvimento. São Paulo:
Saraiva, 2013.
CYRINO, André. Crítica ao capitalismo de Estado. Valor Econômico, 27 jun.
2013. Disponível em:
ao-capitalismo-de-estado>. Acesso em: 20 jan. 2020.
CYRINO, André. Direito constitucional regulatório. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed.
Processo, 2018.
DEUTSCHE WELLE BRASIL. Banco Mundial: Pobreza extrema ainda preocupa
em África. 17 out. 2018. Disponível em:
mundial-pobreza-extrema-ainda-preocupa-em-%C3%A1frica/a-45924718.
Acesso em: 20 jan. 2020.
DUDLEY, Charles; TWAIN, Mark. The Gilded Age. Disponível em:
gutenberg.org/files/3178/3178-h/3178-h.htm>. Acesso em: 20 jan. 2020.
FABIO, André Cabette. De onde vem a riqueza dos super ricos do mundo.
Nexo, 23 maio 2016. Disponível em:
expresso/2016/05/23/De-onde-vem-a-riqueza-dos-super-ricos-do-
mundo>. Acesso em: 20 jan. 2020.
FRASER, Steve. The age of acquiescence: the life and death of american resistance
to organized wealth and power. EUA: Little, Brown and Company: 2015.
FREUND, Caroline; OLIVER, Sarah. The Origins of the Superrich: The Billionaire
Characteristics Database. Working Paper, fev. 2016. Acesso em:
www.piie.com/publications/wp/wp16-1.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2020.
FRIEDMAN, Milton. Capitalism and freedom. Londres; Chicago: The University
of Chicago Press, 2002.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
286
GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How to lose a constitutional democracy. UCLA
Law Review, v. 65, n. 78, 2018.
HUYSSEN, David. We won’t get out of the Second Gilded Age the way we got
out of the first. Vox, 1 abr. 2019. Disponível em:
person/2019/4/1/18286084/gilded-age-income-inequality-robber-baron>.
Acesso em: 20 jan. 2020.
KRISTOL, Irving. About equality. Commentary, p. 41-47, nov. 1972.
LANDIM, Raquel. Como Joesley decidiu fazer a delação que quase derrubou
Temer. Folha de São Paulo, 5 maio 2015. Disponível em:
uol.com.br/ilustrissima/2019/05/como-joesley-decidiu-fazer-a-delacao-
que-quase-derrubou-temer.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2020.
LAZZARINI, Sérgio G. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões.
Campus, 2010.
LESSIG, Lawrence. Institutional Corruptions. Edmond J. Safra Research Lab
Working Papers, n. 1, Harvard University, 2013. Disponível em:
papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2233582>. Acesso em: 20
jan. 2020.
MACEDO, Fausto. Temer influenciou diretamente a aprovação da MP dos
portos, diz Funaro. O Estado de São Paulo, 14 set. 2017. Disponível em:
diretamente-a-aprovacao-da-mp-dos-portos-diz-funaro/>. Acesso em: 20
jan. 2020.
MARSHALL, T.H. Cidadania e classe social. In: Cidadania, classe social e status.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.
MENA, Fernanda. Pré-distribuir habilidades é melhor jeito de reduzir
desigualdade, diz Nobel de Economia. Folha de São Paulo, 29 jul. 2019.
Disponível em:
distribuir-habilidades-e-melhor-jeito-de-reduzir-desigualdade-diz-nobel-
de-economia.shtml>. Acesso em: 20 jan. 2020
MENDONÇA, José Vicente dos Santos de. Direito Constitucional Econômico: a
intervenção do estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo.
2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
MPF. Lava Jato: entenda o caso. Disponível em:
grandes-casos/lava-jato/entenda-o-caso>. Acesso em: 20 jan. 2020.
MPF. Caso Lava Jato: Rio de Janeiro. Disponível em:
grandes-casos/lava-jato/entenda-o-caso/rio-de-janeiro>. Acesso em: 20
jan. 2020.
OXFAM BRASIL. Relatório 2018. Disponível em: .
Acesso em: 20 jan. 2020.
PARGENDLER, Mariana; SALAMA Bruno. Direito e consequência no Brasil: em
busca de um discurso sobre o método. Revista de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, v. 262, p. 131, jan./abr. 2013.
Notas sobre Concentração Econômica e Fundamentos do Constitucionalismo Democrático 287
PAYNE, Keith. The broken ladder: how inequality affects the way we think, live,
and die. Nova York: Viking, 2017.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. p. 234.
PISTOR, Katharina. The code of capital: how law creates wealth and inequality.
Princeton: Princeton University Press, 2019.
POMPEU, Lauriberto. Tasso quer cobrança de imposto de filantrópicas e
agronegócio. Congresso em Foco, 27 ago. 2017. Disponível em:
congressoemfoco.uol.com.br/economia/tasso-quer-taxar-filantropicas-
agronegocio-micro-e-pequenas-empresas/>. Acesso em: 20 jan. 2020.
RIIS, Jacob A. How the other half lives. 1890.
ROSE-ACKERMAN, Susan. Progressive law and economics – and the new
administrative law. In Yale Law Journal, v. 98, n. 2, p. 341-368, 1998.
ROSER, Max. The short history of global living conditions and why it matters that
we know it. In: DICKOVICK, J. Tyler; EASTWOOD, Jonathan (edit.). Current
Debates in Comparative Politics. Oxford: Oxford University Press, 2018.
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional:
teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
SOUZA, Pedro Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de
renda entre os ricos no Brasil 1926-2013. São Paulo: Hucitec, 2018.
STIGLITZ, Joseph E. The price of inequality: how today’s divided society
endangers our future. New York: Norton, 2013.
STIGLITZ, Joseph E. Inequality is holding back the recovery. In: Johnston, David
Cay (Org.). Divided: the perils of our growing inequality. Nova Iorque: The
New Press, 2015.
STIGLITZ, Joseph E. Government Failure vs. Market Failure: Principles of Regulation.
In: BALLEISEN, D; MOSS, D. (Eds.). Government and Markets: Toward a New
Theory of Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
SITARAMAN, Ganesh. The crisis of the middle-class constitution: why economic
inequality threatens our Republic. Nova York: Alfred A. Knopf, 2017.
SITARAMAN, Ganesh. Economic Inequality and Constitutional Democracy. In:
GRABER, Mark A.; LEVINSON, Sanfor; TUSHNET, Mark (Ed.). Constitutional
Democracy in Crisis? Oxford: Oxford Univ. Press, 2018.
SUNDFELD, Carlos Ari. A Constituição Chapa Branca. Disponível em:
raphaelmoras.wordpress.com/2014/10/20/constituicao-chapa-branca-
carlos-ari-sundfeld/>. Acesso em: 20 jan. 2020.
VARGAS, Daniel. A degradação constitucional brasileira. In: BOLONHA, Carlos;
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de (Coords.). 30 anos da Constituição de
1988: uma jornada inacabada. Belo horizonte: Fórum, 2019.
Transformações do Direito Administrativo: Liberdades Econômicas e Regulação
288
VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri. Constituição e desenvolvimento. In:
RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). Fragmentos para um dicionário crítico de
direito e desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011.
WORLD BANK. SDG Atlas 2017: Zero hunger: end hunger, achieve food security
and improved nutrition, and promote sustainable agriculture. Disponível em:
hunger.html>. Acesso em: 20 jan. 2020.
WORLD INEQUALITY DATABASE. Home. Disponível em: .
Acesso em: 20 jan. 2020.
YAHOO NEWS. Parade of satire: Puck magazine Easter illustrations from
cartooning’s Gilded Age. Disponível em:
satire-puck-magazine-easter-slideshow-wp-160607608/photo-p-puck-
easter-l-m-photo-160607329.html>. Acesso em: 20 jan. 2020.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 10. ed.
Madrid: Editorial Trotta, 2011.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT