Notas sobre as assembleias de credores na lei de recuperação de empresas

AutorRachel Sztajn
Páginas53-70

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1. Introdução

A disciplina normativa relativa à crise das empresas, na esteira da legislação nor-te-americana - a qual, em boa medida, está reproduzida nas normas europeias -, assenta-se sobre dois pilares: (1) de um lado, a tentativa de preservar aquelas empresas (entenda-se aquelas atividades anteriormente ditas mercantis), desde que existentes condições econômico-financeiras que viabilizem tal escopo; e (2) a proteção do crédito ou da sua circulação. Contudo, o legislador de 2005 retira do campo de incidência das normas as empresas públicas e sociedades de economia mista, instituições financeiras, seguradoras, cooperativas de crédito e consórcios. A exclusão deve-se ao fato de que a crise dessas empresas, ao menos no que diz respeito à reorganização, está sujeita a disciplina especial.

Feito a reparo, note-se o cuidado com que se trata da viabilidade económica de empresa em crise, porque de nada serve envidar esforços para preservá-la, nem mesmo argumentos como a garantia de empregos ou ser ela estratégica, sem que fique demonstrada a possibilidade de superar a crise, porque os efeitos sobre o crédito e a aptidão para superar a crise dependem de demonstração de que a rentabilidade do negócio será resgatada e que a atividade atingirá algum nível de normalidade.

Empresa é fenómeno económico - e, portanto, a crise também o será; ou, na melhor das hipóteses, terá impacto económico sobre a atividade. Por isso será desejável promover a recuperação de empresas ou organizações apenas quando sejam economicamente viáveis. A determinação da viabilidade económica da empresa deve ser demonstrada em plano ou projeto que será negociado com os credores. Essa negociação, no caso de recuperação judicial da empresa, tem como locus a assembléia-geral de credores. No caso da recuperação extrajudicial as negociações serão empreendidas entre devedor e uma ou mais classe de credores.

A opção de política legislativa - conferir aos credores poder para aprovar, alterar ou rejeitar o plano de recuperação empresarial apresentado pelo devedor - parece, porém, ter deixado de lado recurso a estratégias que podem alterar a distribuição de poder e produzir resultados inesperados, alguns indesejáveis. É isso o que se pretende estudar.

2. A nova lei em face do Decreto-lei 7 661/1945

O legislador de 2005 afastou-se, em larga medida, das regras adotadas em 1945, nas quais a tutela do crédito diante de situa-

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ções de insolvência de comerciantes se resumia à decretação da falência. O rigor emprestado à circulação do crédito está evidente na redação do art. P do Decreto-lei 7.661/1945, que considerava falido o comerciante que deixasse de pagar, no vencimento, obrigação líquida, salvo relevante razão. Entendia-se que atrasos, além de indicarem a impossibilidade de pagar, implicavam abalo no crédito, com perda de confiança na capacidade de honrar as obrigações por aquele devedor.

É que a perda de credibilidade, confiança - do crédito, em suma -, por atrasos no pagamento de obrigações suportava presunção júris tantum de que estaria instalada uma situação de desequilíbrio patrimonial adverso (passivo maior que ativo), que tornava inviável a continuidade da ati-vidade mercantil, sendo, pois, mais conveniente a decretação da falência como forma de preservar o mercado.

Outra era a solução quando se tratava de iliquidez momentânea, superável, porque o desequilíbrio era de caixa, e não patrimonial, e essa se resolvia com a concessão da concordata preventiva da falência, que dava ao devedor comerciante prazo para solver as obrigações.

Se a falência eliminava do mercado aqueles comerciantes que, por falta de talento, por serem propensos a riscos, ou qualquer outro motivo, poderiam, com suas decisões na condução dos negócios, comprometer a circulação do crédito, a concordata preventiva dava fôlego àqueles que momentaneamente se encontrassem sem recursos líquidos.

A falência poderia ser pensada - e não se cogita, aqui, de matéria penal e privação de liberdade, como pena socialmente relevante - porque, ao atingir a reputação do comerciante, culminando com seu afastamento do meio, impedindo-o de exercer o comércio, ainda quando temporariamente, serviria para incentivar diligência, prudência, no contrair obrigações. Esse fator, a reputação, mais do que ver na medida de eliminação do mercado um procedimento infamante, seria o incentivo, forte, para que comerciantes, desejosos de participar de mercados, adotassem comportamentos adequados à atividade, sem propagar o risco entre os demais. Na verdade, a falência poderia ser interpretada como mecanismo que fixa padrões ou paradigmas para tutelar a circulação do crédito em mercados nos quais o risco está presente.

Já, a concordata suspensiva - isto é, a interrupção do procedimento de liquidação do ativo para pagamento do passivo -, também prevista no quadro normativo, servia de incentivo para que, ainda durante o processo de liquidação do ativo e solução do passivo, fossem adotadas medidas sanea-doras; se os credores e o magistrado se convencessem da boa-fé do comerciante, de que a falência não era a melhor solução, que não se devera a falta de diligência, a imprudência, que havia possibilidade de recuperar o negócio, seu deferimento, ainda que raro, não estava vedado.

Essas medidas atendiam a necessidades económicas de funcionamento dos mercados em sociedades de base agrícola ou agropecuária, de baixo nível de industrialização, sendo menos adequadas em face das enormes transformações sócio-econômicas que tiveram início na década de 50 do século passado. O acelerado processo de industrialização, avanços tecnológicos e internacionalização da economia e a crescente inserção do país em novos mercados tornaram aqueles institutos defasados para compor os reclamos da sociedade.

Demais disso, a inflação, que, ao longo dos anos 60 a 90 do século passado, pela corrosão do poder de compra da moeda, estimulava, tanto na falência quanto na concordata, que se protelasse o andamento de qualquer medida judicial, porque isso gerava, para os devedores, ganhos reais, em virtude da não-correção do valor das obrigações, do passivo em geral, ao passo que os ativos, se e quando negociados, o eram ao valor de mercado. Vale dizer que o de-

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curso do tempo reduzia ou até eliminava a relação negativa entre ativo e passivo, que poderia tornar-se positiva, com ganhos derivados da inércia do devedor.

Pior que a inflação, fator de natureza social em relação à decretação da falência de algumas grandes sociedades, considerando-se o efeitos e repercussões quer no mercado de trabalho, quer no de crédito, levou à criação, no BNDE (atualmente BNDES), de um assim denominado "hospital de empresas". Comum ouvir-se a frase "muito grande para quebrar", ou "opera em setor estratégico", para explicar o socorro do Governo, com a transferência de recursos públicos para tais sociedades, visando a atividades no pressuposto de que, futuramente, o banco recuperaria os montantes investidos.

Indiscutível que a legislação anterior requeria ajustes, um aggiormento, a revisão do tratamento da crise empresarial, de forma a que a falência fosse o último recurso e que os devedores não se aproveitassem do favor legal que era a concordata para ganhar tempo, transferindo mais risco aos credores.

Assim, apoiado em experiências de outros países de mesmo sistema, Direito codificado, foram buscadas soluções menos traumáticas para o caso de, constatado o desequilíbrio adverso entre ativo e passivo, não passar diretamente para o procedimento liquidatário-solutório, a falência, mas dar ao devedor a oportunidade de demonstrar que, reorganizada a atividade, terá condições económicas de continuar. Restava estabelecer critérios para avaliar a eficiência das operações propostas, dado que o procedimento anterior gerava custo social -o que deve ser evitado quando se parte da noção de eficiência alocativa com prevalência da racionalidade na tomada de decisões.

É que, diz a teoria económica, partindo de uma qualquer distribuição de bens na sociedade, sua circulação se faz daqueles que os apreciam menos para quem os aprecia mais, ou, de outra forma, dos usos menos eficientes para os mais eficientes. Quando há mercados a circulação dos bens se dá sem muito atrito (custos de transação); mas, diante de crises, ainda quando os mercados funcionem, os custos de transação são mais elevados, o oportunismo fica mais fácil e externalidades negativas podem aparecer.

A solução está no processo de recuperação - judicial ou extrajudicial - das empresas em crise, que, desta feita, é analisado pelos credores. Assim, a mudança do quadro normativo propõe tratamento diferenciado para as crises empresariais conforme haja possibilidade concreta de preservar algum ou alguns núcleos, ou não.

Desaparece da lei a concordata, em ambas as modalidades - a preventiva da falência, favor legal, em que se concedia prazo para que o devedor solvesse, integral ou parcialmente, as obrigações quiro-grafárias, sempre com base no pressuposto de que se estaria frente a fato específico: a iliquidez;1 ou a suspensiva da falência, que interrompia o processo de liquidação, no pressuposto de que seria viável a continuação do negócio.

A nova lei dá a quem tem interesse na preservação do regular funcionamento do mercado de crédito a possibilidade de analisar as condições de superação da crise e o poder para decidir quanto à viabilidade de preservar, ou não, aquelas atividades económicas que passem por processo de crise, seja ele de iliquidez, seja de desequilíbrio patrimonial adverso.

A reconfiguração dos mecanismos de avaliação das condições econômico-finan-ceiras das empresas permite ignorar argumentos do tipo "muito grande para quebrar", reduz o espaço para exercer pressão e obter vantagens sob o argumento de...

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