Notas sobre o conceito e a tragédia de cultura popular. Uma discussão à luz da sociologia simmeliana

AutorRonaldo de Oliveira Corrêa
CargoUniversidade Federal do Paraná
Páginas563-571

Ronaldo de Oliveira Corrêa1

Este ensaio tem por objetivo realizar uma aproximação ao conceito de cultura popular a partir da perspectiva simmeliana2.

    Notes on the concept and tragedy in popular culture: a simmelian sociology discussion

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Nota prefacial

Este é um ensaio em processo. Nesta condição de obra em composição, tomo a liberdade de inventar ficções possíveis para alegorias antigas. Este esforço que aqui realizo tem por pré-tensão animar a discursão ainda por retomar sobre a cultura popular - suas configurações materiais e teóricas -nos contextos ou intertextos contemporâneos. Ao assim construir a questão que subjaz a este ensaio, exponho o sombreamento de instigantes questões e reflexões sobre a cultura popular (subalterna) realizadas por Mário de Andrade, Florestan Fernandes e outros folcloristas, literatos, sociólogos e antropólogos, realizadas no decorrer do século XX nestas terras brasileiras.

Entradas, saidas e bandeiras

No altar do Espirito Santo

Duas velas se acendeu Minha amiga fuliôa

Ave Maria já deu

Te alegra fuliôa

Senta o pé na terra fria Vem ouvir tocar a alvorada Na capela de Maria 3

São tambores que esvaziados de uma sonoridade oca, marcam o rítimo. São vozes de mulheres que em coro, repetem a ladainha. São bandeiras que em procissão, dão andamento à função. É o divino Espirito Santo em louvação. É a cultura popular em manifestação.

A Festa do Divino (ABREU, 1999; p. 40-59) é festa antiga, com registros iconográficos e historiográficos que rememoram o século XIX no Brasil. Estes registros expõem os usos das práticas coletivas subalternas (rituais ou seculares), na configuração de uma narrativa identitária nacional (nacionalista) pretensamente hegemônica, positiva e integradora dos diferentes e desiguais grupos sociais que configuraram e que ainda configuram a sociedade brasileira.

Recentemente, pesquisadores de diferentes campos das ciências sociais e humanas, buscam reconstruir as narrativas subalternas existentes sobre estas festas e rituais, numa tentativa de reescrever as histórias e as antropologias dos hábitos e das gentes deste país. Com esta outra forma de questionar a realidade social, busca-se por reescrever contrastivamente, as formas de viver e atuar em um mundo social (o brasileiro) em que as tensões foram e continuam a ser historicamente encobertas por enunciados "hegemônicos" de democracia racial e igualdade social.

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A utilização de textos escritos, orais e imagéticos recentes e aqueles preservados em bibliotecas, viabiliza o conhecimento de valores e sentidos que configuram um repertório de significados e práticas subalternas e, contribue para interpretar as modificações (atualizações) ou permenências dos rituais e festas e, de suas alegorias. Com isso, tenta-se uma possivel reconstrução e posterior compreensão à respeito dos jeitos destas práticas e destas gentes nos seus contextos e sua dinâmica (movimentos) em meio aos processos de modernização da sociedade brasileira. Todavia uma interpretação que consiga construir outras narrativas distintas daquelas hegemônicas, cuja pregnância emudecem as performances e fórmulas utilizadas nas representações das culturas populares (sublaternas).

A questão a respeito das classificações de cultura popular tem longo trajeto e possui suas origens nas práticas inglesas de coleta de diferentes manifestações "populares" ou tradicionais (como narrativas tradicionais, costumes tradicionais, sistemas populares de crenças e formas de linguagem, entre outros temas) no século XIX (RODRIGUES, 2003) 4. Passando pelas abordagens romanticas alemães do mesmo período, que viam nestas manifestações populares a expressão da pureza de um povo ou nação, sendo este argumento utilizado como o enunciado subjacente às narrativas nacionalistas ou de construção e estabelecimento dos Estados-nação. As disputas entre os ilustrados alemães e franceses entre as terminologias cultura e civilização, estabelecem a dicotomia teórica que imprime à noção de cultura popular sua mais profunda marca, a saber: sua localização de oposição em um contínuo entre a cultura culta-popular. Numa forma de eco da disputa cultura-civilização.

A oposição culto-popular se dá no mesmo momento em que os artistas liberais (não mais mestres artesãos) reivindicam para as belas artes o estatuto de autonomia e assim, constroem a hierarquização entre os gestos humanos de intreferência estética ou ética no mundo social, ou seja, colocam de um lado os artistas e de outro os oficiais. Esta divisão é gerada e geradora do "campo da arte", i.e. de processos de legitimação (como a formação dos ateliês, as escolas de arte, as mostras e exposições), de circuitos de circulação e consumo (como a institucionalização dos museus e galerias, as revistas especializadas, leilões, entre outros), de agentes legitimadores (como os críticos de arte, os intelectuais e acadêmicos ligados a escrita de um tipo de história da arte,

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marchands e animadores culturais) e de consumidores (formados por colecionadores, galeristas e apreciadores). Desta forma, a tensão entre os gestos estéticos realizados por não especialistas e especialistas formados a partir de uma tradição em processo de criação e legitimação, afirma-se como dinâmica constituidora e arena de disputas econômicas, simbólicas e políticas entre os polos culto-popular.

Esta relação torna-se mais complexa no decorrer do século XX com a caracterização dos gestos estéticos subalternos como simulacros ideológicos em determinados momentos dos Estados capitalistas e em outros, socialistas; como por exemplo o uso do construtivismo ou...

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