Norma jurídica secundária, norma processual e norma processual tributária

AutorAlan Martins
CargoMestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista
Páginas2-20

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Introdução

Unidade mínima componente do sistema de direito positivo, a norma jurídica constitui objeto de infindáveis estudos da Ciência do Direito. Investigada sob o concurso da lógica jurídica, revela um ciclo dinâmico de positivação normativa. 1Um trânsito analítico panorâmico sobre o mesmo, pode partir da enunciação legislativa de uma norma geral e abstrata de cunho dispositivo, cujo descumprimento desencadeia a aplicação de outra norma geral e abstrata também gestada legislativamente, porém veiculadora de uma sanção. Deste compartimento normativo, dito primário, devem-se extrair os elementos descritivos componentes do antecedente de um comando secundário, cujo conseqüente prescreve uma atuação do Estado-Juiz.

Trata-se o presente de um estudo sobre normas jurídicas processuais. O primeiro desiderato é, justamente, demonstrar que a norma prescritiva de uma atuação do Estado-Juiz (norma secundária) constitui, de fato, uma norma processual, bem como que a sua aplicação verifica-se no bojo de uma relação jurídica triádica regida por outras normas processuais.

Satisfeito o primeiro propósito, pretende-se, como segundo objetivo do trabalho, estabelecer um conceito de norma jurídica processual que seja afeto ao contexto do ciclo de positivação em que normas de tal natureza são aplicadas. Para tanto, serão necessárias ágeis incursões por conceitos fundamentais de teoria geral do processo.

Não obstante a dualidade processual do sistema jurídico brasileiro (processo penal e processo civil), adotando-se como premissas maiores aquilo que sedimentado na consecução dos dois primeiros propósitos, e como premissa menor a demonstração de que existem lides e ações de caráter eminentemente tributário, o último propósito é demonstrar a existência de normas processuais tributárias.

1 - Direito positivo e ciência jurídica

Segundo a visão jurídica tradicional, direito positivo é o conjunto de normas jurídicas válidas em determinado local e em determinada época. Sem deixar de destacar o consagrado conceito, mas denotando sua visão do direito positivo como disciplina Page 3 do comportamento humano estabelecida em formulação lingüística, Paulo de Barros Carvalho afirma que "...o direito positivo aparece como um plexo de preposições que se destinam a regular a conduta das pessoas, nas relações inter-humanidade".2

A partir de um vínculo ciência - objeto, o mesmo jurista concebe ciência jurídica como aquela à qual "...cabe descrever esse enredo normativo..." (o direito positivo) "...ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo suas formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação".3

Aproximação inicial dos dois conceitos revela que Carvalho se vale da Semiótica para trazer um discurso qualificado à ciência jurídica, o que tem sido de grande valia para desqualificar algumas teses fundadas em argumentos de autoridade que predominaram nas origens do Direito Tributário brasileiro. Para Eurico de Santi, a "... aplicação da semiótica ao estudo do direito potencializa o discurso da Ciência do Direito, instrumentaliza o jurista para descrever com maior precisão e riqueza as realidades imanentes ao fenômeno lingüístico do direito".4 Logo, o objetivo principal é a busca de uma linguagem jurídica lógica, precisa e fundamentada.

Nessa mesma linha, Tárek Moussallem, valendo-se de terminologia empregada em textos de Lourival Vilanova, expõe que:

Utilizando-nos dos léxicos empregados por Vilanova temos de plano dois níveis lingüísticos: 1) a linguagem-objeto (L0), que seria a linguagem prescritiva em que se manifesta o direito positivo e; 2) a metalinguagem (L1), que se traduz na linguagem descritiva do cientista do direito. Esta (L1) versa sobre aquela (L0) (g.n.).5

Portanto, a linguagem prescritiva do direito positivo estabelece regras de comportamento denominadas normas jurídicas, ao passo que o discurso da Ciência do Direito caracteriza-se por uma sobrelinguagem descritiva das normas jurídicas.

2 - A norma jurídica completa
2. 1 - Aspectos conceituais

É possível conceituar norma jurídica em poucos termos, sem que haja confusão com normas de outras naturezas, como sendo o juízo hipotético-condicional de conteúdo deôntico veiculado nos textos de lei.

Observe-se que o termo "lei" da expressão "texto de lei" é tomado no sentido amplo de "veículo normativo" ou, na acepção do artigo 96 do Código Tributário Nacional, Page 4 de "legislação tributária". Pode corresponder a instrumentos introdutores de normas primários (leis ordinárias, complementares ou delegadas, medidas provisórias, decretos-legislativos, tratados e convenções internacionais etc) ou secundários (decretos regulamentares e normas complementares). O "juízo hipotético-condicional" diz respeito à estrutura lógica da norma jurídica, de cunho implicacional ( "se... então...deve-ser"), enquanto o termo "conteúdo" é utilizado no sentido semântico de significação do texto de lei, correspondente sempre a um comando imperativo. E por fim, "deôntico" diz respeito ao conseqüente do juízo implicacional da norma jurídica, isto é, o dever ser, modalizado em permitido, obrigatório ou proibido.

A estrutura lógica de uma norma jurídica pode ser representada por D (p---q), onde: p representa uma proposição descritiva (antecedente normativo), q diz respeito a uma proposição prescritiva (conseqüente ou tese) e D é functor deôntico neutro incidente sobre a relação de implicação intraproposicional.

Uma vez desmembrada, a tese q pode ser representada por S'RS", encontrandose as seguintes variáveis: S' e S" são sujeitos e R outro functor dêontico, presente no interior da estrutura proposicional da tese. O functor R do interior da tese, embora também de natureza deôntica, distingue-se do que incide sobre toda a relação-de-implicação (extrínseco e neutro), pois constitui variável cujos valores substituintes são as constantes deônticas "permissão", "proibição" e "obrigação".

2. 2 - A norma jurídica completa: primária e secundária

Definida norma jurídica e identificada a sua estrutura lógica hipotética-condicional, um mergulho nos meandros lógicos do ciclo de positivação do direito traz à tona os conceitos fundamentais de norma primária e norma secundária, componentes da chamada norma jurídica completa.

Na obra "Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo", lançada com prefácio de Geraldo Ataliba no ano de 1976, o discurso de Lourival Vilanova em torno da diferença entre norma primária e norma secundária era o seguinte:

Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas partes, que se denominam norma primária e norma secundária. Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição descritiva de situações fáticas ou situações já juridicamente qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionadoras, no pressuposto do não-cumprimento do estatuído da norma determinante da conduta.6

Uma leitura isolada do trecho citado, que inaugura o capítulo V da obra em foco, pode deixar a entender que Vilanova pensava em norma primária como um comando Page 5 determinante de conduta e em norma secundária como sancionadora do descumprimento da primária. Entretanto, na seqüência do mesmo capítulo, já nas próximas linhas, apenas em aparente contradição, o mesmo jusfilósofo progride no seu raciocínio, afirmando que norma secundária é "...a que vem em conseqüência da inobservância da conduta indevida, justamente para sancionar seu inadimplemento (impôlo coativamente ou dar-lhe substitutiva reparadora)" (g.n.).7

Sinaliza, assim, com a teoria que dominaria por completo suas obras posteriores. Ao falar em coação e reparação, implicitamente, Vilanova está tocando em provimentos impositivos de competência exclusiva do Estado-Juiz, antecipando a concepção que somente ficaria mais nítida em vários excertos da obra "Causalidade e relação no direito", editada pela primeira vez em 1985, entre eles os seguintes:

O esquema da norma jurídica toma a forma 'deve ser que se H, então C', ou 'D (H --- C). Abrangendo a norma primária e a norma secundária, temos 'D [(H --- C) v (não - C --- E )]' O esquema simplifica, inevitavelmente. A hipótese H pode simbolizar fato natural ou conduta, situação, ou relação empírica. A conseqüência C, em sua estrutura interna, é uma relação os sujeitos S' e S" sobre uma coisa, prestação pessoal etc. A hipótese não-C é uma relação entre S' e S" (e possíveis 'terceiros', S'" - uma estipulação em favor de terceiros, por exemplo), cuja não prestação do que devia fazer, ou omitir, o sujeito passivo (não-C marca unilateralmente o descumprimento), [e hipótese para uma conseqüência E, que simboliza, simplificadamente, quer uma sanção, quer uma coação (com interveniência do sujeito S"", ou seja, o juiz)..."8

Norma primária (oriunda de normas civis, comerciais, administrativas) e a norma secundária (oriunda de normas de direito processual objetivo) compõem a bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária desjuridiciza-se; a secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio, sem fim material, adjetivo sem o suporte do substantivo.9

Ao estudar o conjunto da obra de Lourival Vilanova, a percepção de Paulo de Barros Carvalho sobre norma...

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