Pensamento hegemônico e norma jurídica: o caso do princípio da isonomia no Brasil e a prisão especial para os portadores de diploma de conclusão de curso superior

AutorIgor Suzano Machado
CargoBacharel em Direito, Faculdades de Vitória, Brasil; Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil; Doutorando em Sociologia, IUPERJ, Brasil
Páginas47-62

Page 47

1. Introdução

Este artigo1 parte do pressuposto de que a norma de direito é uma norma social que se situa no conjunto dos bens culturais de um determinado grupo, sendo, conseqüentemente, representada nos, e representante dos valores, instituições e contradições existentes nesse mesmo grupo. Sendo assim, levando-se em conta a produção dessa norma jurídica como um processo complexo que abrange desde a prescrição legislativa até a norma aplicada ao caso concreto na decisão judicial, o estudo também considera que, da análise da produção dessa norma dentro da conjuntura cultural do grupo social que a produz e ao qual ela se destina, é possível se extrair conclusões relevantes acerca das relações entre as normas jurídicas desse grupo e o pensamento que nele se apresenta hegemônico, tomada aqui a hegemonia nos termos que preceitua a teoria de Antonio Gramsci, conforme tornarse-á mais claro adiante.

Para isso, navegaremos entre campos das ciências humanas que contribuem para a explicitação dessa relação entre o direito, enquanto regra de conduta e bem cultural, e a organização social e política da sociedade, abarcando conhecimentos das áreas de Sociologia, Antropologia, Ciência Política e Ciência do Direito.

Não obstante, ilustraremos a questão com um estudo de caso capaz de explicitar essa função social e política da norma jurídica em sua contribuição para o consenso ideológico e estruturação do Estado. No entanto, nesse ponto, sem nos esquecermos da teoria Gramsciana, recorreremos também a dados antropológicos que retratam a realidade cultural brasileira na qual está inserido o exemplo pesquisado e fora da qual, talvez ele nem faça sentido. Buscando o presente trabalho explicitar o ponto de junção da norma jurídica e da hegemonia no sentido proposto por Antonio Gramsci, nos parece pertinente aos objetivos almejados seguirPage 48 essa orientação multidisciplinar e analisar um caso concreto específico para retratar a forma como o direito atua na consolidação de um determinado bloco-histórico.

Esse caso concreto específico será a construção da norma jurídica pelos tribunais superiores brasileiros – TRFs, STJ e STF – e Tribunal de Justiça do Espírito Santo – TJES – acerca da incidência do princípio constitucional da isonomia frente ao caso da concessão de prisão especial aos detentores de diploma de conclusão de curso superior, a ser analisada por meio de consulta a fontes oficiais de publicação digital, nos sítios respectivos de cada tribunal.

Focalizando uma faceta cultural brasileira de escalonamento de direitos por nível social e a aplicabilidade de um princípio constitucional do sistema jurídico do mesmo país, buscaremos retratar até que ponto o sistema jurídico, que não possui existência autônoma frente aos demais sistemas simbólicos sociais, influencia e é influenciado por uma dimensão informal que revela aspectos de um pensamento provavelmente hegemônico, já que se reflete em aspectos culturais de inegável relevância prática, conforme deixam claro os estudos sobre o tema.

Dessa forma, o primeiro ponto que merece destaque é a exata delimitação do conceito de hegemonia trabalhado no artigo.

2. Os operadores do direito enquanto intelectuais orgânicos e a construção da hegemonia

O termo hegemonia já encontrou diversas acepções dentro das ciências sociais. Até mesmo em Gramsci, a palavra já designou realidades distintas. No entanto, o termo será aqui considerado significando a dominação social, em termos ideológicos e valorativos, exercida pela classe dominante.

Assim, tomando o termo

Da forma desenvolvida pelo marxista italiano Antonio Gramsci, hegemonia é um conceito que se refere a uma forma particular de dominação na qual uma classe torna legítima sua posição e obtém aceitação, quando não apoio irrestrito, dos que se encontram abaixo. Até certo ponto, toda dominação baseia-se em coerção e no potencial uso da força. Este tipo de poder, no entanto, é relativamente instável. Para que a dominação seja estável, a classe governante precisa criar e manter estilos de ampla aceitação de pensar sobre o mundo que definam sua dominação como razoável, justa e no melhor interesse da sociedade como um todo.2

A norma de direito caracteriza-se fundamentalmente por ter substrato em textos produzidos pelo Estado – leis em sentido amplo, abrangendo leis, constituições, decretos, etc. Não se confunde, entretanto, com esses textos. Trata-se de uma interpretação dos mesmos, capaz de estabelecer uma norma social de conduta que encontra coercitividade na possibilidade de recorrer ao aparelho repressivo estatal em caso de seu não cumprimento.

Page 49

Considerando a norma jurídica sob tal prisma, temos, em analogia com a teoria da linguagem, que a lei seria o suporte físico do qual a norma seria a significação.3

Ou seja, na verdade, a lei, nos termos expostos acima, é que advém do Estado; a norma advém dessa lei. E a interpretação não é restrita a certos agentes: como a norma é destinada a todos, a interpretação é subjetiva e cabe a qualquer um membro da sociedade a que tal norma se destina. Portanto, a norma jurídica é uma interpretação de textos de origem Estatal, através da qual o comportamento humano é limitado pela preponderância de certos valores subjacentes à norma específica, tanto no texto jurídico que lhe dá substrato, quanto na sua interpretação.

Assim, enquanto norma, ela cumpre a função de declarar o pertencimento, ou não, do indivíduo à comunidade que materializa, cristaliza seus valores naquela norma.

A norma é uma regra cultural que associa o comportamento ou a aparência do indivíduo a recompensas ou castigos (sanções). Como tais, as normas geram conseqüências sociais que produzem o efeito de regular a aparência e o comportamento. As conseqüências são artificiais, no sentido que não resultam naturalmente da própria ação.

As normas cumprem uma grande variedade de funções sociais. Regulam o comportamento e a aparência e, dessa maneira, contribuem para criar padrões reconhecíveis que distinguem um sistema ou situação social de outros. Assim, ajudam a definir e manter fronteiras que separam os de dentro dos de fora, uma vez que a conformidade visível a normas é sinal de filiação a um sistema social, e a violação das mesmas poderia levar o indivíduo a ser excluído ou expulso. As normas dão respaldo também a valores culturais, ao associar sanções às alternativas entre as quais pessoas resolvem como se comportar. Dessa maneira, as normas transformam o que em sua ausência seria considerado apenas uma forma desejável de comportamento em uma expectativa concreta, que encerra conseqüências sociais reais.4

Dessa forma, os intérpretes responsáveis pela construção da norma jurídica desempenham o papel de intelectuais, na concepção gramsciana do termo, ou seja, aqueles responsáveis por atividades organizativas e diretivas na construção da hegemonia, já que a norma jurídica, enquanto norma, cumpre a função de estabelecer o consenso, atuando na construção de um pensamento hegemônico.

(Gramsci) Define o intelectual de uma perspectiva bastante ampla, de modo a incluir todos aqueles que têm “uma função organizacional no sentido amplo”. Todos os seres humanos, a seu ver, possuem capacidades racionais e intelectuais, embora somente alguns tenham, no presente, uma função intelectual na sociedade.

Os intelectuais organizam a teia de crenças e relações institucionais e sociais que Gramsci denomina hegemonia.5

Page 50

Agentes estatais como juízes, governadores, etc., nem por isso deixam de ser intérpretes qualificados da norma. Acontece que, por mais que a interpretação seja destinada a todos os membros da comunidade na qual a lei é válida, é a interpretação dos agentes do Estado que será válida para a utilização do aparelho repressivo estatal. Ou seja, a coercitividade da norma jurídica é dependente da gênese estatal da lei e da norma advinda dessa lei, enquanto interpretação também, de agentes estatais.

Ou seja, o operador do direito atua na sociedade civil enquanto intelectual, responsável por colaborar na construção do “certo” e do “errado”, privilegiando valores hegemônicos naquela sociedade, através da norma jurídica. Mas, indo além dos demais intérpretes a que se destina a norma, os operadores do direito possuem posição privilegiada de interpretação, pois podem estender à sociedade civil, tentáculos da sociedade política, dentro da teoria de Estado ampliada de Antonio Gramsci, segundo o qual:

“Pode-se por ora fixar dois planos superestruturais: o que se pode chamar de ‘sociedade civil’, isto é, o conjunto de organismos ditos ‘privados’, e o da ‘sociedade política ou Estado’ e que corresponde à função de ‘hegemonia’ e de ‘domínio’ direto ou de comando que se exprime no Estado e no governo jurídico”; ou seja, existem dois planos superestruturais que se referem respectivamente ao “aparato de hegemonia (sociedade civil) e aparato de coerção (sociedade política).”6

É no sentido exposto acima que a atuação do operador do direito constrói, por exemplo, os parâmetros do exercício do direito à isonomia, garantido no Brasil por nossa Constituição, mas cujos textos legais que lhe dão suporte apresentam uma série de antinomias a serem sanadas pelos intérpretes da lei.

Isto porque a lei é lugar de luta pela hegemonia, que se constrói fazendo concessões a contra-hegemonias que condizem aos anseios de classes e grupos que não ocupam posição privilegiada na sociedade.

A hegemonia, como é possível argumentar, não se reduz a legitimação, falsa consciência, ou instrumentalização da massa da população, cujo “senso comum” ou visão do mundo, segundo Gramsci, é composto de vários elementos, alguns dos quais contradizem a ideologia dominante, como aliás grande parte da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT