Nexo Subjetivo: Culpa

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas411-441

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16.1. Conduta contrária ao dever de diligência

A culpa tem o estigma da imprevidência e do descuido, pois decorre de posição antiética assumida pelo ser humano. Com efeito. O homem é ser eminentemente social. Convive e se relaciona com seus semelhantes no contexto da vida comunitária. Nela todos têm direitos e interesses assegurados pelo ordenamento jurídico. Por tal razão, cada um de nós, como corolário do convívio social e para preservar a sua harmonia, deve proceder nos atos da vida com zelo, cautela, apuro, precaução e cuidado para evitar comportamentos impróprios, inadequados e arriscados que possam colocar em risco os direitos e interesses daqueles que conosco participam da vida societária.

Daí surgir o dever de diligência, a todos imposto como regra primeira do convívio social, em respeito ao patrimônio jurídico de direitos de nossos semelhantes.

A conduta culposa toma corpo com a transgressão desse dever de diligência e cuidado (Fahrlaessigkeit), ao realizar-se ação inadequada que cria certa margem de risco e perigo aos interesses de outrem, partícipe de nossa vida social e comunitária.

A divergência entre a ação realmente realizada e a que deveria ser praticada em virtude do dever de cuidado que era necessário observar é que confere ênfase ao delito culposo. A desaprovação jurídica recai sobre a forma de realização da ação ou sobre a seleção dos meios para praticá-la917, deitando raízes a aferição da culpa no desvalor da ação (Welzel), no ato de ferir um valor no intercâmbio social.

Deve-se, portanto, professa Júlio Fabbrini Mirabete, confrontar a conduta do agente com aquela que teria um homem razoável e prudente no lugar do autor. Se o agente não cumpriu com o dever de diligência que aquele teria observado, é indiscutível a presença do comportamento culposo918.

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Surge, assim, o denominado princípio da confiança. Seria absurdo que o Direito impusesse aos destinatários de suas normas comportar-se de modo desconfiado em relação ao semelhante, todos desconfiando de todos. Sob esse prisma, admite-se que cada um se comporte como se os demais se conduzissem corretamente. Para a determinação em concreto da conduta correta de um, não se pode deixar de considerar aquilo que, nas circunstâncias, seria lícito esperar de outrem919.

O dever de cuidado e atenção, destarte, deve ser julgado de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Lançar fora a ponta acesa de um cigarro será comportamento culposo em um aposento onde haja objetos ou resíduos capazes de ganhar fogo ou próximo a substâncias inflamáveis, mas não na praia ou sobre o calçamento de uma rua920.

Desta sorte, o dever de agir de forma diversa da adotada deve ser dessumido em face das peculiaridades que cada situação apresenta, de modo que na culpa, como remarca Graf Zu Dohna, nos encontramos remetidos, totalmente, ao direito não escrito921, motivo pelo qual, acrescentamos, os crimes culposos constituem tipos abertos (v. n. 5.5), uma vez que requestam complementação pela aferição de outros valores.

Nessa conjuntura, doutrina Graf Zu Dohna, a responsabilidade por culpa é completamente independente da infração aos deveres de diligência expressa e legalmente estatuídos. O versari in re illicita terminou, em todo o sentido, de desempenhar o seu papel922(v. n. 16.1.3).

A nota característica do procedimento culposo, que assinala o momento inicial de sua anatomia, está na conduta contrária ao dever de diligência e precaução, que se exprime por meio da imprudência, negligência ou imperícia.

16.1.1. Imprudência, negligência e imperícia

Imprudência é a culpa in faciendo ou in comittendo. Revela modalidade ativa, militante e positiva de culpa923. Consiste em agir o agente, pelo arrojo, açodamento, precipitação, afoiteza, atrevimento, inconsequência ou leviandade, de forma comissiva, desenvolvendo comportamento, dotado de energia, fisicidade e movimento dinâmico, que viola as regras de cuidado ditadas pela experiência comum.

Assim, exempli gratia, procede com imprudência quem fuma próximo a depósito de pólvora e dinamites e provoca explosão com resultado lesivo924. Imprudentemente atua aquele que efetua travessia de gado bovino pela rodovia e causa acidente de trânsito925.

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Age imprudentemente quem, sabendo estar certa arma carregada, tenta desenguiçá-la na presença de outras pessoas sem o cuidado de dirigir o cano para local onde ninguém pudesse eventualmente ser atingido926. Comporta-se de forma imprudente aquele que dispara, a título de comemoração, arma de fogo ante marcação de gol em partida de futebol e provoca evento pessoal de dano927. Imprudente é quem, ao lubrificar arma municiada, culmina por dispará-la acidentalmente e atingir a vítima que se encontrava próxima928. Com imprudência também atua aquele que gira arma carregada no dedo indicador, no estilo "faroeste", e atinge com o involuntário disparo espectador que se encontrava à frente929. Imprudente é o motorista que dirige em estado de embriaguez, eis que a ebriedade, além de diminuir os seus reflexos na direção, tornando-os lerdos e dormentes, por um processo deteriorador da inibição ainda o estimula ao arrojo e à audácia930. Age com imprudência o motorista que desenvolve no automóvel veloci-dade excessiva ou inadequada com as condições do local931, que invade via de trânsito preferencial desrespeitando a passagem dos carros que ali trafegam932, que acelera bruscamente o veículo para passar pelo semáforo que está com a cor vermelha933etc.

Com imprudência se comporta aquele que deposita recipiente contendo veneno em local acessível a crianças, dando causa à morte de uma delas934. É inegavelmente imprudente aquele que, durante uma caçada, tendo a vítima à frente, traz a arma engatilhada, pronta para ser acionada, e produz disparo acidental que atinge o companheiro mortal-mente935. Atua com manifesta imprudência o motorista que, à noite, dirigindo veículo em estrada não pavimentada, continua a desenvolver velocidade, não obstante a faixa de poeira levantada por outro automóvel, e culmina por atropelar e causar a morte de ciclista que ali transitava936. Com imprudência igualmente procede o motorista que, portador de hipoglicemia severa e sob tratamento, é acometido de mal súbito que tinha sua origem conhecida, causando grave acidente937.

Negligência é a conduta culposa in omittendo. É caracterizada pela passividade, por não agir o sujeito ativo conforme era possível e exigível, por violar, com sua inércia e abstenção de atividade, provenientes da desatenção, desídia, descuido, comodismo,

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indolência, apatia, descaso ou displicência, um dever de precaução que as circunstâncias impunham-lhe observasse. O cerne da negligência, portanto, reside na omissão do cuidado devido.

Negligentemente atua o cirurgião que, pela desatenção, esquece instrumento cirúrgico ou compressas no organismo do paciente, desde que lhe cause mal físico938.

Na negligência se condensa a conduta culposa do médico que, diante de caso grave, se limita a prescrever medicamento sem qualquer contato pessoal prévio com o paciente, ocasionando-lhe a morte939. Procede com culpa in omittendo o médico anestesista que, após ministrar a droga ao paciente, afasta-se da sala cirúrgica, vindo a vítima a óbito pela queda da pressão arterial e consequente parada cardiorrespiratória940. Agem com negligência os pais que deixam arma de fogo ao alcance de filhos menores941. É negligente quem, sendo proprietário de animal bravio, deixa de guardá-lo com as devidas cautelas, providências e cuidados, de sorte que, pela falta de zelo, não logra evitar ataque à integridade física de terceiros por parte do semovente942. Com negligência se comporta aquele que deixa destampado reservatório d’água ou fosso profundo em local acessível a outros, dando causa, com a queda, a morte de terceiro943. Negligente é o motorista que conduz seu veículo, embora em velocidade moderada, sem manter a necessária distância de cautela do automotor que lhe segue à frente944, que o dirige com jogo ou folga na direção ou deficiência no sistema de frenagem945, com pneus apresentando as bandas de rodagem lisas (pneus carecas)946, que inflete inesperadamente à esquerda, convergindo para ganhar outra pista de rolamento, sem atentar para o trânsito que se processa em derredor (atrás ou à frente), interceptando, com essa manobra, outro veículo947, que dirige, à noite, com o sistema traseiro de iluminação inoperante948, ocorrendo, em todos esses casos, colisão com vítimas. "O motorista que dirige um caminhão, em rua da cidade, olhando para os lados, abanando aos conhecidos, de modo a atropelar, sem se aperceber, uma criancinha que descera da calçada, demonstra culpa, por sua manifesta negligência" (RT. 448/468). A queda de operário ou de objetos e instrumentos, com resultado de dano pessoal, de edifício em construção cujo andaime não se encontrava provido de guardacorpo ou tabuleiro949, assim como a falta de escoramento de paredes de imóvel que está sendo demolido, ou o trabalho operário, em condições semelhantes, sem capacete ou cinto de segurança acarretam a responsabilidade - por negligência - do construtor ou responsável

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pela obra950. Negligentes ainda são os pais, por culpa in vigilando, que deixam criança de tenra idade, sem noção do perigo, caminhar vários metros à frente, em acostamento de rodovia de intenso tráfego, culminando...

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