Nexo Causal

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas173-203

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6.1. Considerações preliminares, conceito e imputatio facti

Nexo causal é relação de causalidade.

Nexo traduz ideia de vínculo, liame, ligação.

Exatamente porque não se compreende a existência de um vínculo ou de uma ligação senão entre outros dois elementos, que pelo liame devem ser unidos, o nexo de causalidade subentende, necessariamente, a presença de outros dois componentes típicos que por meio dele devem interagir, quais sejam, a ação e o resultado.

Com o batismo jurídico de nexo causal, é fácil perceber que ele consiste no liame de causa e efeito entre a ação e o resultado do crime.

Cumpre considerar, entretanto, que ação e resultado permitem o descortino do nexo de causalidade.

Nesse passo, é irrefragável que a relação causal somente pode estabelecer-se, em primeiro lugar, com relação ao comportamento humano que, como conduta, denote relevância ao Direito Penal. Não basta, assim, configurar ação descrita na lei como delituosa. Há mister, ainda, para o comportamento humano desenvolvido não ser infenso ao interesse penal, que, em sua formação, apresente o impulso anímico da vontade, seguido de atuação. Inexiste ação relevante ao Direito Penal se ela não se compuser com os pressupostos da vontade + atuação (v. n. 3.1).

Desse modo, é patente que apenas a ação típica, ou seja, a conduta que desperta o interesse penal, pode gerar o nexo de causalidade.

Assim, se sonâmbulo, do alto de um edifício, em crise profunda, deixa cair vaso à rua, o qual atinge e mata por fratura de crânio um transeunte, ou se pessoa hipnotizada acata a determinação do hipnotizador e, atuando como mero autômato, mata outrem com disparos de arma de fogo, ou, ainda, se epilético, ao se debater fisicamente no decorrer de aguda convulsão, atinge alguém com movimento corporal puramente mecânico e reflexo de seus braços e pernas, ferindo-o (v. n. 3.1), é iniludível que sequer

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cabe cogitar-se de relação de causalidade entre essas atividades físicas e as mortes ou ferimentos, à falta de ação penalmente relevante.

Empós verificada a existência de ação que reúna a característica típica, insta perquirir do resultado a que deve associar-se.

Sabe-se que o resultado do crime se subdivide em duas espécies, segundo o foco da visualização: o resultado jurídico, conceituado como a consequência da ação no plano do ordenamento jurídico (a ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado) e o resultado naturalístico ou tipológico, considerado como a consequência natural da ação que o tipo prevê, a modificação que a conduta deve produzir no mundo exterior como seu necessário complemento (v. n. 5.1).

Não há crime sem resultado jurídico, mas é perfeitamente possível, conforme a espécie de conduta incriminada, conceber a existência de delitos sem resultado naturalístico, como sói acontecer nos crimes de mera atividade (n. 5.1 e 5.2).

Impende examinar, portanto, a que modalidade de resultado é imperioso ligar a ação típica.

Evidentemente que ao resultado naturalístico.

Dessa maneira, constatada a existência de conduta provida de visos típicos, calha dessumir se a ação realizada é daquelas que, pela sua índole, não se pode compreender sem a produção de um efeito, de uma consequência - perceptível ou objetivamente constatável - que, no plano físico, deva persistir como complemento necessário (v. n. 5.1).

Conclui-se daí, como corolário, não existir relação de causalidade em delito de mera atividade (formal ou de mera conduta). Isso porque essa categoria de crime prescinde da produção de qualquer resultado no mundo exterior para a sua configuração jurídica (v. n. 5.2). A causalidade, destarte, é problema inexistente nos crimes de mera atividade, posto que nestes, como perlustra Massimo Punzo, em vez do binômio conduta/resultado, há tão só o monômio conduta297.

Por via de consequência, se testemunha prestar em juízo depoimento com a nódoa da falácia no curso de processo judicial, é irrelevante investigar, para o aperfeiçoamento típico do crime, se o perjúrio induziu ou não em erro o julgador, uma vez que eventual erro judiciário não se prende à ação como efeito necessário do delito (art. 342, CP). Da mesma forma, se três ou mais pessoas se associam para o fim de cometer crimes, é inútil aferir se chegaram a cometer os delitos para os quais se associaram, visto que a ação é, por si só, suficiente à tonalização jurídica do ilícito (art. 288, CP), independentemente da obtenção do resultado visado. Outrossim, se houver violação de domicílio (art. 150, CP), pela entrada não consentida de estranho em residência alheia, não avulta analisar se a ação produziu prejuízo, porque a conduta incriminada se esgota em si mesma para a caracterização do crime, dissociada que está da ocorrência de qualquer efeito externo.

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Do exposto, nota-se que a relação de causalidade é particularidade típica somente presente nos crimes materiais (v. n. 5.2).

Contudo, nenhum valor tem a análise da causalidade nos crimes materiais que apresentam forma vinculada (v. n. 3.2) se a ação é perpetrada de modo diverso daquele particularizado no tipo. Se em determinadas figuras típicas, salienta Soler, é admissível uma condição simples como causa, em outras encontra-se a exigência de um modus operandi absolutamente definido. Assim, enfatiza Antolisei, é evidente que, quando é individualizado o meio mediante o qual o resultado deve ser atingido, a indagação causal fica circunscrita: uma causação estranha àquele determinado meio não configura o crime e, por isso, a sua verificação não interessa a quem deva aplicar a norma298.

Constatada a existência de ação típica e do efeito que deve figurar como seu resultado naturalístico, e não sendo o meio executivo estranho à ação, imperioso é cuidar, ato contínuo, de estabelecer o nexo causal entre ambos. Deve-se, então, verificar se a consequência exteriorizada no plano fático proveio mesmo da conduta realizada ou se, por qualquer razão, houve a interferência de circunstância que as separou.

Essa investigação circunscreve-se à mera imputatio facti.

A operação consiste em concluir se o resultado, como um fato, decorreu da ação e se pode ser atribuído ao sujeito ativo para inserir-se na esfera de sua autoria, na condição de agente que deflagrou a ocorrência.

A imputatio facti, é conveniente salientar, desenvolve-se no campo da causalidade puramente material ou objetiva e representa questão simplesmente típica. Não se confunde e nem pode ser embaraçada com a imputatio juris, que conclui a análise pertinente ao crime e pressupõe os juízos ulteriores e positivos da antijuridicidade e da culpabilidade. A primeira (imputatio facti) envolve simples constatação de fato. A última (imputatio juris) implica a atribuição jurídica do crime e a inflição da sanção correspondente como sua consequência. Sob esse prisma, a imputatio facti consiste em simples imputação física, de modo que não se pode enlear o problema da causa com o da responsabilidade.

Se alguém mata outra pessoa a tiros de revólver, é de clareza solar que, objetivamente, a morte da vítima proveio dessa conduta, de modo que se insere na esfera causal de autoria do sujeito ativo. No plano puramente material deduz-se pela imputatio facti. Mas não é o momento de perscrutar se o autor matou ou não a vítima em legítima defesa, ou se o fez porque eventualmente padecia de insanidade mental. Tais verificações somente apresentam relevância para a imputatio juris, de natureza complexa, não, porém, para a singela imputatio facti, para a qual apenas interessa constatar se a morte - como resultado - derivou da ação do autor. Investigações de outra ordem colocam-se fora do âmbito da causalidade simplesmente material e objetiva.

Por conseguinte, a análise do aspecto antijurídico ou culpável do episódio é estranha aos perímetros do nexo causal. Esquadrinhar circunstâncias e condições que fizeram

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o sujeito ativo agir ou relativas ao seu conhecimento a respeito da realidade fática ou sobre seu exato conteúdo de vontade não pertence à quadra de aferição da causalidade pura, sendo importante somente para efeito da imputatio juris.

Cabe também destacar que a imputatio facti não se confunde com a teoria da imputação objetiva, que trabalha com outros parâmetros e vetores (v. n. 6.4).

6.2. Concorrência de causas e o princípio da equivalência

O nexo de causalidade não teria a importância penal que apresenta, nem representaria tormentosa questão, se o resultado do crime sempre constituísse consequência única, direta, imediata e exclusiva da ação.

Quando assim sucede, é fácil verificar a existência da relação causal, que não suscita maiores problemas.

Se certa pessoa mata instantaneamente uma outra ao disparar contra ela tiros de revólver ou vibrar-lhe golpes de faca, prontamente se constata a existência da causalidade entre a ação e o evento. Se o sujeito ativo despeja veneno na alimentação da vítima e esta perece em consequência única do venefício, o nexo causal também emerge evidente.

O problema cresce em importância, e se torna verdadeiramente árido e complexo, quando se verifica que o resultado não é efeito direto e único da ação, mas representa o produto final de uma associação de fatores, entre os quais a conduta do agente seria mero elo desencadeante, o elemento propulsor.

A relação de causalidade ganha conotação intrincada, portanto, quando ocorre uma constelação de componentes que condicionam a produção do resultado, ao existir uma diversidade de combinações na sua dinâmica.

É diante da concorrência de causas que se conjugam para a produção do evento que a relação de causalidade desponta como complicado aspecto da dogmática penal.

Muitas vezes, não é uma causa, mas o conjunto de...

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