Neoliberalismo e extrajudicialização dos conflitos trabalhistas

AutorRoberta Corrêa de Araújo
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho - TRT 6a Região. Mestre e Doutora em Direito Público pela UFPE. Especialista em Direito Material e Direito Processual do Trabalho pela UNICAP
Páginas140-148

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1. Introdução

O capitalismo se reinventa em cada ciclo de crises enfrenO tadas, revigorando-se sob novas e aperfeiçoadas formas e roupagens. Assim é que o Estado capitalista atual sob a nova roupagem do ideário neoliberal consolidou-se no sentido de operar a desconstrução do capitalismo do Welfare State. Seu discurso consiste num repertório de contrapontos a cada elemento da fórmula keynesiana. Redução fiscal, privatização, despatrimonialização, desregulamentação e flexibilização de normas trabalhistas, tal é o perfil do Estado neoliberal.

Neste contexto, o trabalhador se vê inserido em grandes e constantes desafios para se adequar às exigências da competitividade do mercado global, aliar-se às novas tecnologias e resguardar direitos historicamente e arduamente conquistados diante de um ambiente em permanente transformação.

O discurso da reforma da legislação trabalhista com vistas à sua adequação às novas exigências do desenvolvimento nacional tem ocupado posição de destaque nos debates do Direito do Trabalho e na pauta ideológica do neoliberalismo. Para tal desiderato, defendem-se alterações no marco normativo constitucional e infraconstitucional, precarizando as relações de trabalho e fomentando meios de conciliação extrajudicial dos conflitos trabalhistas.

Neste ambiente, delineia-se um cenário de reordenação e reestruturação dos sindicatos, que dia a dia são enfraquecidos em seu perfil combativo e na sua feição representativa dos interesses das categorias profissionais. Tal se dá porque este processo de reestruturação capitalista, no qual o capital financeiro eleva-se hegemônico e determinante na nova dinâmica de acumulação flexível leva a um redimensionamento da conjuntura política da luta de classes, restringindo-a quase a uma pauta de variáveis de sobrevivência e manutenção da classe trabalhadora.

Não se pode perder de vista, nesse contexto que o Direito do Trabalho reveste-se de crucial importância para a vida social em vista dos contornos políticos e econômicos que são inerentes à natureza da relação que visa tutelar e para a viabilidade do próprio regime capitalista e equilíbrio da relação capital/trabalho e, por conseguinte, da paz social.

Os valores e princípios de proteção ao trabalho devem ser preservados, aperfeiçoados, conformados aos novos tempos e não alijados ou desprezados.

O esforço neoliberal por afastar o estado das relações individuais de trabalho, eliminando e flexibilizando direitos dos trabalhadores protegidos por lei não parece um bom caminho para o equilíbrio social e a história já comprovou isso. A valorização do trabalho humano, seja sob que modalidade for, deve ser compreendida como forma de realização do ideal de justiça social nas relações de trabalho e a função central do Direito do Trabalho não pode ser apreendida sob uma ótica meramente individualista, enfocando o trabalhador isolado, mas a própria relação entre o capital e o trabalho. A busca pelo ideal de justiça social passa necessariamente pelos ditames que guiam a ordem econômica e requer um equilíbrio entre os dois polos de desenvolvimento das relações econômico-sociais. Daí a relevância da tutela estatal sobre as relações de trabalho, inclusive no que tange a presença da jurisdição trabalhista em face dos conflitos decorrentes dessa relação.

2. O neoliberalismo

A história das ideias políticas no século XIX e início do século XX foi marcada pela intensa disputa em torno da questão democrática e pelo confronto entre as tendências políticas dominantes na época, o liberalismo de um lado e o socialismo de outro. Nos séculos XVII e XVIII a ascensão política da burguesia, as ideias liberais e humanistas e a necessidade de reestruturação da organização política em face das novas demandas do modelo capitalista de produção, suscitaram os movimentos revolucionários liberais que levaram à superação do absolutismo monárquico e a instauração do Estado Liberal.

Nesse modelo estatal, o liberalismo articula-se com a emergência da burguesia enquanto sujeito político, consolidando as bases teórico-culturais que vão conformar a dinâmica de transição do feudalismo para a acumulação primitiva de capital e seus eixos teóricos fundamentais têm por base a livre iniciativa e o livre mercado, sendo este erigido a instância reguladora da vida social por meio da chamada mão-invisível1, sendo relegada ao Estado a missão de não intervenção na ordem econômica e de mero

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guardião dos direitos individuais dos sujeitos sociais e da dinâmica do mercado.

Como pondera Boaventura Sousa Santos2, a demo-cracia liberal dos países ocidentais que firmou-se como modelo político hegemônico no século XX implicou em um remodelamento das suas premissas clássicas para torná-la compatível com as exigências do liberalismo, operando exclusivamente na esfera política e abandonando qualquer ideal igualitário ou dimensão emancipatória. Assim, a democracia liberal afirmou-se como um método político sem efeito sobre as desigualdades e as relações de dominação e de exploração econômica.

Numa síntese da ideologia liberal clássica, Habermas3 analisa que segundo esse paradigma, uma sociedade econômica e institucionalizada através do direito privado, em especial através dos direitos da propriedade e da liberdade de contratos, deveria ser desacoplada do Estado, enquanto esfera de realização do bem comum, e entregue à ação espontânea de mecanismos do mercado.

O Estado do laissez-faire privilegiou o capital em detrimento do trabalho e a liberdade, desvirtuada na prática, passou a ser utilizada pelo homem burguês como capaci-dade ilimitada de afirmar os seus interesses econômicos e os seus direitos individuais. A concentração de riqueza na mão de poucos e o excesso de oferta de mão de obra proletária levou à árdua e indigna exploração do trabalho humano e a proliferação de miseráveis condições de vida nos centros urbanos, tornando cada vez mais insustentável a manutenção da política de não intervenção do Estado na seara econômica. Nas últimas décadas do século XIX, o desenvolvimento da crítica social, do ideário socialista e comunista, da doutrina social da igreja católica, do sindicalismo e da organização política da classe operária acirraram a discussão e a reação em face da ausência da igualdade material e da ineficiência da política estatal absenteísta para assegurar condições de vida digna à população, lançando, destarte, as bases para a formação do Estado Social, de modo que "nas primeiras décadas do século XX, um surto intervencionista já não poderia ser contido"4.

O Estado Social resultou precipuamente da conjugação de três fatores históricos que demandaram um remodelamento das premissas ideológicas do Estado Liberal, quais sejam, o surgimento da ação organizada classista dos trabalhadores urbanos, a transposição da fase do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista e a consequente crise da autorregulação mercantil.

A própria burguesia assimilou satisfatoriamente esse processo, com vistas à preservação do próprio sistema capitalista do qual se beneficiava e com base no qual defendia seus interesses econômicos, visto que no Estado Social o modelo econômico mantém suas bases estruturais capitalistas, sendo antes um resultado de ajustes para melhor organizar e defender o próprio sistema capitalista. Ou seja, o Estado Social nasce sob forte pressão popular dos movimentos socialistas e da ação operária, mas tem o firme propósito de legitimar e dar continuidade ao sistema capitalista. Ademais, conforme ressalta Fabio Usdeo:

A despeito de isto ter sido feito em prol da grande massa de excluídos do processo político e econômico de então, a própria burguesia se beneficiou desta intervenção, pois possibilitou que a infraestrutura básica necessária para o desenvolvimento das atividades de acumulação e expansão do capital fosse gerada com verbas do Estado, que são de todo o povo. Assim, abrindo o sistema econômico-político, uma vez que possuía o controle do Estado, abriu também uma via para que o Estado passasse a participar do processo produtivo, incentivando-o, vetando-o ou mesmo dirigindo-o.5

O Estado Social conservou os valores jurídico-políticos clássicos do Estado Liberal, mas passou a incorporar uma feição interventiva e incluir em sua agenda um redirecionamento do individualismo típico do liberalismo clássico na busca do bem-estar social, que é a fórmula geradora do Welfare State.6

A transição do Estado Liberal para o Estado Social se engendrou vis-à-vis a trajetória histórica da formação das forças políticas que gravitaram em torno dos limites da democracia política burguesa para superação dos problemas socioeconômicos. A denominada democracia social ou

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social-democracia7 é gestada o final do século XIX na Europa no seio do amplo debate político e doutrinário travado no interior dos partidos políticos e círculos intelectuais socialistas em torno dos limites e fronteiras da democracia política liberal. Este debate desde sua gênese foi marcado por uma riquíssima pluralidade de correntes dentre as quais o socialismo, enquanto movimento social, político e econômico tornar-se-ia um dos principais movimentos políticos e ideológicos do século XIX e XX.

As doutrinas de índole socialista eclodem na Europa propagando os excessos do capitalismo e explicitando uma nova perspectiva social alternativa da sociedade voltada à construção de uma sociedade socialista e desdobraram-se em várias correntes de pensamento diferentes, plasmando uma variedade de expressões doutrinárias, ideológicas e econômicas cujo assento essencial era a socialização da propriedade e dos recursos e tinham por fundamentação comum o repúdio à injustiça social e a má distribuição da riqueza propiciada pela consolidação do...

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