Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas

AutorProf.ª Ana Paula de Barcellos
CargoMestre e Doutora em Direito Público pela Faculdade de Direito da UERJ
Páginas1-31

Mestre e Doutora em Direito Público pela Faculdade de Direito da UERJ. Professora Adjunta de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ. Advogada no Rio de Janeiro.

O professor Ricardo Lobo Torres foi sem dúvida o principal responsável por recolocar a questão dos direitos fundamentais no centro do debate jurídico no ambiente da pós-graduação da Faculdade de Direito da UERJ. Um mestre autêntico, sob todos os aspectos, estimulou cada um de seus alunos, categoria na qual me incluo com orgulho, a desenvolver suas próprias idéias sobre o tema. Suas aulas foram um marco na nossa experiência acadêmica e pessoal.

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I Neoconstitucionalismo: algumas notas

A expressão "neoconstitucionalismo" tem sido utilizada por parte da doutrina para designar o estado do constitucionalismo contemporâneo1. O prefixo neo parece transmitir a idéia de que se está diante de um fenômeno novo, como se o constitucionalismo atual fosse substancialmente diverso daquilo que o antecedeu. De fato, é possível visualizar elementos particulares que Page 2 justificam a sensação geral compartilhada pela doutrina de que algo diverso se desenvolve diante de nossos olhos e, nesse sentido, não seria incorreto falar de um novo período ou momento no direito constitucional. Nada obstante isso, fenômeno humano e histórico que é, o constitucionalismo contemporâneo está ligado de forma indissociável a sua própria história2, como se verá adiante.

É possível ordenar as características específicas mais destacadas do chamado neoconstitucionalismo em dois grupos principais, por simplicidade: um que congrega elementos metodológico-formais e outro que reúne elementos materiais. Seguem algumas notas sobre cada um deles.

Do ponto de vista metodológico-formal, o constitucionalismo atual opera sobre três premissas fundamentais, das quais depende em boa parte a compreensão dos sistemas jurídicos ocidentais contemporâneos. São elas: (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento de que as disposições constitucionais são normas jurídicas, dotadas, como as demais, de imperatividade3; (ii) a superioridade da Constituição sobre o restante da ordem jurídica (cuida-se aqui de Constituições rígidas, portanto4); e (iii) a centralidade da Carta nos sistemas jurídicos, por força do fato de que os demais ramos do Direito devem ser compreendidos e interpretados a Page 3 partir do que dispõe a Constituição5. Essas três características são herdeiras do processo histórico que levou a Constituição de documento essencialmente político, e dotado de baixíssima imperatividade, à norma jurídica suprema, com todos os corolários técnicos que essa expressão carrega6.

A particularidade do neoconstitucionalismo consiste em que, consolidadas essas três premissas na esfera teórica, cabe agora concretizá-las, elaborando técnicas jurídicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da aplicação do direito. O neoconstitucionalismo vive essa passagem, do teórico ao concreto, de feérica, instável e em muitas ocasiões inacabada construção de instrumentos por meio dos quais se poderá transformar os ideais da normatividade, superioridade e centralidade da Constituição em técnica dogmaticamente consistente e utilizável na prática jurídica.

Nesse contexto se inserem, por exemplo, as discussões sobre a eficácia jurídica dos princípios constitucionais7, as possibilidades de controle das omissões inconstitucionais e os diversos estudos que procuram compreender e interpretar a legislação ordinária a partir do texto constitucional, como acontece de forma especialmente marcante com o direito civil, o direito penal e o direito processual8. Como se verá, o tema do controle das políticas públicas - objeto Page 4 central deste pequeno estudo - está inserido nesse mesmo esforço de concretização técnica das noções de normatividade, superioridade e centralidade da Constituição.

Do ponto de vista material, ao menos dois elementos caracterizam o neoconstitucionalismo e merecem nota: (i) a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional. Explica-se melhor.

As Constituições contemporâneas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, introduziram de forma explícita em seus textos elementos normativos diretamente vinculados a valores - associados, em particular, à dignidade humana e aos direitos fundamentais9 - ou a opções políticas, gerais (como a redução das desigualdades sociais10) e específicas (como a prestação, pelo Estado, de serviços de educação11). A introdução desses elementos pode ser compreendida no contexto de uma reação mais ampla a regimes políticos que, ao longo do Século XX, substituíram os ideais iluministas de liberdade e igualdade Page 5 pela barbárie pura e simples, como ocorreu com o nazismo e o fascismo. Mesmo onde não se chegou tão longe, regimes autoritários, opressão política e violação reiterada dos direitos fundamentais foram as marcas de muitos regimes políticos ao longo do século passado12.

Com a superação desses regimes, diversos países decidiram introduzir em seus textos constitucionais elementos relacionados a valores e a opções políticas fundamentais, na esperança de que eles formassem um consenso mínimo a ser observado pelas maiorias. Essa esperança era reforçada - e continua a ser - pelo fato de tais elementos gozarem do status de norma jurídica dotada de superioridade hierárquica sobre as demais iniciativas do Poder Público. Por esse mecanismo, então, o consenso mínimo a que se acaba de referir passa a estar fora da discricionariedade da política ordinária, de tal modo que qualquer grupo político deve estar a ele vinculado13.

Essa primeira característica material se liga de forma direta à questão metodológica a que se fez menção acima. Com efeito, a partir do momento em que valores e opções políticas transformaram-se em normas jurídicas, tornou-se indispensável desenvolver uma dogmática específica capaz de conferir eficácia jurídica a tais elementos normativos. Esse é, sem dúvida, um dos desafios do neoconstitucionalismo. Page 6

A segunda característica de natureza material referida acima envolve a questão dos conflitos. No direito constitucional contemporâneo, tanto sob a perspectiva da teoria jurídica, como da experiência observada nos juízos e tribunais, é possível falar de conflitos específicos e de um conflito geral.

Os conflitos específicos se explicam, em boa medida, pelo reflexo, nos textos constitucionais, de diferentes pretensões, que necessitam conviver e harmonizar-se14 em uma sociedade plural como a contemporânea. Sua configuração envolve, freqüentemente, colisões, reais ou aparentes, entre diferentes comandos constitucionais, dotados de igual hierarquia, cada qual incidindo sobre determinada situação de fato e postulando uma solução jurídica diversa15. Assim, direitos fundamentais - elementos centrais dos sistemas constitucionais contemporâneos - parecem entrar em choque em muitas circunstâncias. Outros elementos constitucionais também podem apresentar uma convivência difícil em determinados ambientes, como acontece, e.g., com a livre iniciativa e os princípios da proteção ao consumidor e ao meio-ambiente. O exemplo já clássico da tensão entre liberdade de informação e de expressão e intimidade, honra e vida privada é apenas um entre muitos outros que poderiam ser citados16. Page 7

Além dos conflitos específicos, o neoconstitucionalismo convive ainda com um conflito de caráter geral, que diz respeito ao próprio papel da Constituição. Trata-se da oposição entre duas idéias diversas acerca desse ponto. A primeira delas sustenta que cabe à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais. Essa primeira concepção pode ser descrita, por simplicidade, como substancialista. Um grupo importante de autores, no entanto, sustenta que apenas cabe à Constituição garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas. Nenhuma geração poderia impor à seguinte suas próprias convicções materiais. Esta segunda forma de visualizar a Constituição pode ser designada de procedimentalismo17. Page 8

É bem de ver que o conflito substancialismo versus procedimentalismo não opõe realmente duas idéias antagônicas ou totalmente inconciliáveis. O procedimentalismo, em suas diferentes vertentes, reconhece que o funcionamento do sistema de deliberação democrática exige a observância de determinadas condições, que podem ser descritas como opções materiais e se reconduzem a opções valorativas ou políticas. Com efeito, não haverá deliberação majoritária minimamente consciente e consistente sem respeito aos direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a garantia das liberdades individuais e de determinadas condições materiais indispensáveis ao exercício da cidadania18. Em outras palavras, o sistema de diálogo democrático não tem como funcionar de forma minimamente adequada se as pessoas não tiverem condições de dignidade ou se seus direitos, ao menos em patamares mínimos, não forem respeitados.

Esse conflito, longe de ser apenas um debate de interesse acadêmico, afeta a concepção do aplicador do direito acerca do sentido e da extensão do texto constitucional que lhe cabe interpretar e, a fortiori, repercute Page 9 sobre a...

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