Neo-reformismo e fragmentação social (ou só é 'otimista quem quer')

AutorNelson Oliveira
CargoNelson Oliveira é doutor em Economia (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp), professor da Escola de Administração e do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (NPGA) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e foi durante muitos anos redator dos Cadernos do CEAS. Do mesmo Autor, ver 'Lênin e a questão agrária: cultura e hegemonia' (Cadernos...
Páginas4-28
ANÁLISE DE CONJUNTURA
NEO-REFORMISMO E FRAGMENTAÇÃO SOCIAL
(OU SÓ É “OTIMISTA QUEM QUER”)
NELSON OLIVEIRA *
“Nada se parece mais com um conservador do que um liberal no poder”
Desde o fim da ditadura militar, entre os que, de algum modo, se opunham ao
regime e até lutavam abertamente contra ele, dois hábitos foram amplamente
se disseminando e ganhando força como quase-ideologia política. O primeiro,
de sacralizar a esperança, ou permanecer esperando que algo aconteça,
mesmo quando essa expectativa se mostra muitas vezes impossível como
na peça teatral Esperando Godot e nem mesmo se acredite, no íntimo, que
um dia iria ou chegue a acontecer; o segundo, de sacralizar o direito, ou
considerá-lo como ante-sala da justiça, numa clara apologia da passividade, ou
de esperança passiva, nas palavras de Ernest Bloch (1880-1959). A esperança
de que um dia as coisas teriam que mudar somava-se à crença de que
tinha-se direito, assim quase naturalmente, a um quinhão na quota de
distribuição social, como se os regimes políticos simbolizassem ora uma fonte
de restrição, ora uma fonte de possibilidade de realização de direitos
naturalmente humanos ou sociais. Esses hábitos ou esperanças quase
religiosas perpassam não apenas indivíduos mas os diversos movimentos
sociais e frentes de luta, servindo de bandeira para quase todos os envolvidos
nessa nova etapa de construção de uma realidade mais democrática,
assentada em pretensos novos valores.
O poder como via transformadora das condições sociais se revela fonte do
direito e da justiça social. Poder neutro, dependente, para sua eficácia, da
vontade e do caráter dos que dele se apropriassem. Não por acaso, o país
passou a viver de sobressaltos. As classes dominantes, em sua eterna
vigilância conservadora, desunidas muitas vezes como frações de controle dos
processos reprodutivos, se unem em torno de um único desiderato de
assenhoramento das estruturas de poder decisório; as classes trabalhadores,
em seus diversos matizes, sonhando com um poder, mas sem projeto próprio,
descambam muitas vezes para a construção de ilusões que as tornam
simplesmente presas de aventureiros e salvadores, destes que costumam
aparecer a cada período eleitoral. O alvo era o mesmo, quer fossem vitoriosos
partidos de características mais à esquerda, quer os mais à direita. Busca-se
tão-somente alcançar o poder, sem uma dimensão mais precisa de seu
significado. Para tanto, valendo tudo, dos discursos mais radicais às alianças
mais espúrias.
Um dos argumentos centrais desta análise é que, em função de suas
especificidades, muito mais do que nas gestões de centro-direita que
sucederam o regime ditatorial pós-1985, no governo do Partido dos
Trabalhadores (PT) e de seus aliados ilusões populares cultivadas por anos de
repressão e de impedimentos à livre organização popular foram determinantes
para uma fuga acelerada da política no sentido mais profundo, e para a crença
nos milagres administrativos, dissociando-se cada vez mais a política do
conflito, por meio de sua aproximação muito sintomática com a necessidade de
obtenção de consensos, não apenas promissores como eficazes do ponto de
vista da reprodução sistêmica.
No caso mais específico do PT, sua decisão de manter-se dentro das linhas já
traçadas de antemão pelo antecessor imediato parece demonstrar essa opção,
não como uma incoerência ou abandono de uma perspectiva, mas como
atitude política coerente de um partido reformista que não vê na confrontação o
caminho mais acertado para mudanças (assim como estas passam a ser
entendidas). Ao reduzir, como fez, a proposta de ruptura a um puro
anacronismo, e seguir os passos da nova social-democracia européia, com a
qual passa a manter vínculos ideológicos informais, passa a desvendar uma
nova faceta administrativa, apegando-se a dois pontos fundamentais para a
nova identidade que procura construir que, no fundo, revelam a identidade que
procura assumir: à estabilidade como condição para a harmonia entre os
diferentes interesses e à harmonia como pressuposto de um crescimento
sustentável.
1. ELEIÇÕES E RECESSO DA POLÍTICA
Na passagem da Monarquia à República, diversas foram as manifestações de
desagrado com a postura camaleônica de antigos monarquistas, ou com
aqueles que facilmente se adaptam a qualquer contexto político. Não foram
poucas as atitudes de repúdio às vacilações ideológicas de figuras expressivas
do denominado republicanismo de casaca e ao seu oportunismo. As
conversões aceleradas e sem problemas teriam sido objeto de muitas lamúrias
por parte de alguns poucos que de certo modo até chegaram a imaginar que
se podia, de fato, promover pelo alto uma ruptura com a velha e carcomida
monarquia imperial. Esse otimismo, porém, teria durado muito pouco.
Já nos primeiros ensaios de reestruturação do poder, na sua fase republicana,
podia-se ver como tudo permanecera no mesmo lugar. Personagens de
casaca e pince-nez se cruzavam nos mesmos corredores, tramavam as
mesmas tramas, nem mesmo cismados seus atores ou figurantes de que
estava-se diante de algo novo. República: qual república? O que era mesmo
aquilo? Para alguns, muito cedo desiludidos, a república de casaca era aquilo
mesmo: uma casca vazia, não mais do que um ornamento novo para uma
velha monarquia que se apresentava agora com cores novas, ou nem mesmo
isto. Mudava-se a disposição dos atores para que estes realizassem as tarefas
de sempre.
Durante todo o século XX, outros tantos momentos se transformaram em
idênticas fontes de dissabores e frustrações, sobretudo para os que, quase
sempre muito otimistas, insistiam na mesma ladainha de confundir aqueles
momentos em que se transita de uma etapa ou fase de desenvolvimento a
outra com momentos de ruptura entre elas. Foi não apenas usual como
bastante freqüente, e até proposital, a confusão entre transição e ruptura. Não
apenas no caso da assim chamada transição monárquico-republicana, quando

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