"Nem tudo e sobre raca": evadindo o debate sobre racismo no marco juridico-politico latino-americano/"Not all is about race": evading the debate on racism in the Latin-American legal-political debate.

AutorCoelho, Luana Xavier Pinto
  1. Racismo, discriminacao racial e a "inocencia" do Direito na America Latina (1)

    O Direito e permeado de uma suposta "inocencia" quando o tema e o racismo, particularmente na America Latina, enquanto mecanismo discursivo ancorado no argumento reincidente "aqui nunca institucionalizamos o racismo ou tivemos leis racistas", como nos Estados Unidos (Hernandez, 2013). De formal geral, o direito moderno de matriz liberal mantem-se neutro (Fitzpatrick, 1990) a partir da enunciacao de que "todos sao iguais perante a lei" ou na formula mais recente da nao-discriminacao generica por motivos enumerados em lista. Quem desrespeita esse comando geral e um infrator, possui um comportamento aberrante e excepcional a regra e, portanto, deve ser corrigido (Cf. Maeso, 2018; Moreira, 2017). O principio generico da naodiscriminacao tambem contempla a proibicao do tratamento arbitrario, seja para beneficiar certo grupo, seja para prejudicar pois, afinal, a lei e cega. Por fim, a partir dessa perspectiva da isonomia formal, "parte-se do pressuposto de que a nocao de intencionalidade e arbitrariedade sao elementos indispensaveis para a caracterizacao de um ato discriminatorio" (Moreira, 2017, p. 17-18, grifo nosso). E, portanto, um problema levado a esfera individual, onde um individuo discrimina outro intencionalmente baseado em suas ideologias "incompativeis" com o Estado de Direito.

    Essa narrativa contem convenientes silenciamentos e apagamentos. Sao formulas que perpetuam a "inocencia do Direito" por lhe retirar toda a materialidade, toda a historicidade e sua espacialidade. Silencia a relacao intrinseca entre liberalismo e imperio colonial (Cf. Hesse, 2004; Maeso, 2018; Maldonado-Torres, 2017), perpetuando o seu universalismo ao mesmo tempo em que apaga a relacao colonial que construiu os Estados latino-americanos. A formula da isonomia formal "todos sao iguais perante a lei" ecoa, ahistorica, como se a raca (2) nao tivesse funcionado como marcador da linha do humano e do nao-humano na conformacao das relacoes de poder que, por outro lado, figuravam o Europeu como o "modelo" a ser seguido (Cf. Quijano, 2014). Modelo esse fortemente construido a partir de uma narrativa do Direito, afinal a Europa e o berco da democracia--de origens gregas--e dos "Direitos do Homem"--desde o iluminismo anglo-frances--, criando o "Outro" como aquele que deve deixar a barbarie e se desenvolver, num processo que passa por aceitar os valores juridicos universais da humanidade, concebidos na Europa civilizada (Goldberg, 2002; Maeso, 2018).

    Essa continuidade na narrativa juridica, que silencia a ruptura colonial, a objetificacao de pessoas e a expropriacao de territorios e culturas, permanece de forma perturbadora nos discursos juridicos, diplomaticos, oficiais de nossos Estados modernos/coloniais. A reflexao trazida aqui pretende, mesmo que de forma inicial, pensar sobre as continuidades no discurso dos Estados no momento em que a regiao se apresenta como comprometida com a pauta antirracista desde a Conferencia Regional das Americas em Santiago do Chile no ano 2000, preparatoria para a Terceira Conferencia Mundial Contra o Racismo, a Discriminacao Racial, a Xenofobia e a Intolerancia Correlata, realizada em Durban em 2001. Serao analisados os documentos produzidos como contribuicao de paises que lideraram o grupo de trabalho no ambito da Organizacao dos Estados Americanos (OEA) (3) para a elaboracao do projeto de uma convencao contra o racismo, de forma a avaliar os limites do discurso juridico oficial da "nao-discriminacao" que silenciam o historico colonial e escravista.

    Exemplificando, a contribuicao do Estado Argentino para o debate ilustra como os principios juridicos aqui retratados, igualdade ou isonomia, articulam-se como uma continuacao do processo evolutivo "iniciado" na Grecia antiga, passando pela modernidade e sua construcao liberal de igualdade, ate culminar na Declaracao Universal dos Direitos Humanos:

    Longe de ser uma nocao moderna, a igualdade e um conceito ja amplamente trabalhado por filosofos da Grecia antiga, que contribuiram para desenvolver as bases teoricas para sustentar regimes politicos democraticos. (...) Agora, se por um lado e verdade que a nocao de igualdade e consubstancial a definicao de democracia, a verdade e que, com o advento da modernidade, essa nocao mudou na medida em que foi redefinida em termos de se tornar um conceito associado a nocao de direitos humanos, sendo compativel com a pluralidade da sociedade civil. Assim, a igualdade deixou de ser exclusiva para se tornar uma categoria inclusiva. (Argentina, CAJP/GT/RDI-4/05 add.2, p. 1, traducao nossa) Essa compreensao de que devemos nossa "democracia" e nosso "Estado de Direito" a esse arcabouco conceitual acumulado desde a Grecia a modernidade Europeia e perversa e mais atual do que gostariamos de admitir. Alem de garantir a neutralidade do discurso juridico, tambem o impermeabiliza, tornando-o um escudo (Flauzina, 2006, p. 124) contra um debate aprofundado sobre a relacao entre o Direito liberal e racismo, ou sobre as continuidades coloniais que sustentam as relacoes de poder, racialmente delimitadas, em nossa regiao.

    Assim, inicio com uma reflexao sobre a tradicao de negacao do racismo na America Latina, com a apresentacao do trabalho de Ariel Dulitzky que sistematiza as diferentes estrategias discursivas empregadas por estes paises para negar o racismo ate 2001. Na sequencia, reflito sobre a tensao entre o debate do racismo e as multiplas discriminacoes no discurso oficial dos paises na construcao da convencao interamericana contra discriminacao, e sobre as contradicoes presentes nas propostas de inclusao de "novas vitimas", que fazem o debate sobre racismo parecer ultrapassado. Por fim, se coloca como a analise do discurso oficial questiona o efeito "Durban" na tradicao de negacao do racismo na regiao.

  2. Discursos sobre raca pre-Durban: uma regiao em negacao

    O discurso sobre racismo nos paises da America Latina no periodo anterior a Declaracao de Durban em 2001 era de negacao, ainda sobre o forte argumento da "democracia racial", a ser motivo de orgulho em relacao a outras regioes da comunidade internacional. Como teoriza Lelia Gonzalez, "o racismo por denegacao tem, na America Latina, um lugar privilegiado de expressao" (1988), por justamente atuar como ideologia e introjetar crencas e valores do Ocidente como universais, mas sobretudo por se legitimar em "teorias" de miscigenacao que, para a autora, sao de assimilacao ou democracia racial.

    "Uma regiao em negacao" foi a conclusao de Ariel Dulitzky (2001) ao analisar uma serie de relatorios de paises para o Comite das Nacoes Unidas para a Eliminacao da Discriminacao Racial (CERD), onde ele aponta tres tipos de negacao do racismo, a partir do trabalho de Stanley Cohen, presentes na regiao: a "negacao literal (nada aconteceu), a negacao interpretativa (o que esta acontecendo e realmente outra coisa) e a negacao justificativa (o que esta acontecendo e justificado)" (ibid., p. 87, traducao nossa). Considerando a relevancia do estudo ao identificar os diversos mecanismos discursivos de negacao do racismo na regiao ate 2001, para uma analise sobre possiveis continuidades e pertinente apresenta-los em sua extensao.

    Primeiramente, Dulitzky apresenta a negacao literal que se encontra em respostas de paises como Peru, Mexico e Venezuela que negam diretamente a existencia de discriminacao racial ou que isso nao e mais um problema. Ou ainda, recorrendo a um discurso legalista, defendem que a discriminacao racial ja e proibida por lei, ou que a raca foi rejeitada pelas normativas nacionais por nao ser mais reconhecida como categoria juridica valida. Em relacao a negacao interpretativa, o autor aponta como o empoderamento do ativismo e a construcao de evidencias de exclusao racial na regiao dificultaram a negacao direta, por isso os discursos tem-se sofisticado. O autor classifica-os como eufemismo, legalismo, negacao de responsabilidade ou incidentes isolados. O argumento eufemistico mais comum e o de que que as pessoas nao discriminam populacoes negras ou indigenas por causa da raca, mas porque sao pobres. Afirmando que o subdesenvolvimento de certos setores da populacao e um problema, e nao o racismo, o argumento sustenta-se na reiteracao de que "nossas sociedades aceitam prontamente explicacoes baseadas em disparidades economicas" (2001, p. 92, traducao nossa). Como Dulitzky problematiza, essa justificativa falha em sua logica, ja que nao explica a razao de a maioria das pessoas racializadas na regiao ser pobre em contraste com a populacao branca. Para ele, esse argumento reforca a ideologia da "democracia racial", onde estariamos todos "misturados", sendo sociedades monoliticas mesticas e, portanto, livres de discriminacao, uma vez que nao poderiamos explicar disparidades entre grupos baseados em raca, mas sim baseados na desigualdade economica.

    Outro argumento da negacao interpretativa e o legalismo, em que o uso de "linguagem legalista ou diplomatica nega a existencia de praticas discriminatorias" (Dulitzky, 2001, p. 93, traducao nossa). O argumento aqui e afirmar que o pais nunca teve leis discriminatorias que impusessem a segregacao ou o apartheid. E um argumento muito recorrente, reafirmando uma certa inocencia dos estados latinoamericanos e o papel do Direito (Cf. Fitzpatrick, 1990; Hernandez, 2013), na conformacao de estados raciais, tendo como comparacao eterna as situacoes dos Estados Unidos e da Africa do Sul como exemplos de racismo institucionalizado. O direito internacional exige mais do que suprimir leis discriminatorias. Para o combate ao racismo tambem se faz necessaria a implementacao de medidas especificamente dirigidas a satisfacao das obrigacoes de respeito e garantia a fim de prevenir, punir e eliminar o racismo. Ate 2001, poucos paises da regiao tinham leis anti-discriminatorias alem da clausula constitucional geral, o que dificultava ate mesmo queixas de vitimas de racismo...

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