O negócio jurídico denominado 'factoring'. A possibilidade de cessão onerosa de crédito, com garantia de pagamento pelo cedente por inadimplemento do sacado - IOF - não-incidência

AutorSacha Calmon Navarro Coelho e Marco Aurélio Caldeira Coelho
Páginas257-272

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1. A consulta

Em complementação a um parecer, em sede de tributação, por nós elaborado em 1998 para a ANFAC - Associação Nacional de Factoring, consulta-nos agora a mesma sobre um ponto específico. É possível às empresas de factoring receber em cessão, créditos pertencentes aos seus clientes mediante endosso, com o contrato entre o cedente e o cessionário prevendo a responsabilidade do primeiro pelo pagamento do título em caso de não pagamento do mesmo pelo sacado? Se afirmativa a resposta, incide sobre a operação o IOF?

Passamos a responder.

2. A resposta

Cumpre, desde logo, estabelecer o plano do parecer. Em primeiro lugar, importa caracterizar o contrato de factoring, de conformidade com a legislação pátria. Em segundo lugar, cabe caracterizar dito negócio jurídico como civil e mercantil e, na mesma passada, excluí-lo dos negócios praticados pelas instituições financeiras. Em terceiro lugar, cumpre demonstrar que consoante a legislação nacional e as tendências jurídicas internacionais, especialmente as observadas no âmbito da Comunidade Económica Europeia, cuja tradição é, como a nossa, a romana-gerrnânica, o instituto do endosso e as cláusulaspro-soluto e pro-sol-vendo, podem ser manejadas livremente pelas empresas de factoring, valendo o pacta sunt servanda. Noutras palavras, impõe-se demonstrar que constitui um descomunal erro jurídico caracterizar o factoring (o negócio principal) como endosso em preto pro-soluto (o sub-negócio). As operações

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das empresas de factoring bem podem prever o recebimento, em cessão onerosa, de títulos cambiariformes, coma cláusula de co-responsabilidade do cedente, em caso de simples inadimplemento dos sacados, embora formal e materialmente perfeitos, os títulos constantes do portifólio, i.e, sem vícios ou fraudes. Além da legislação, contra certa doutrina, mas com o apoio crescente da jurisprudência, esta terceira parte da resposta será o imo mesmo do parecer.

Como corolário, será demonstrado que não incide sobre ofactoring o IOF, por não -se tratar de operações financeiras com títulos e valores mobiliários, mas de operações mercantis com títulos cambiariformes.

2. 1 Definições legais tendentes a precisar o conceito de "factoring"

O fomento mercantil é uma atividade mista atípica, cujos fundamentos são regidos basicamente pelos princípios do direito mercantil.

Pela Circular BC 1.359/88, a Direto-ria do Banco Central reconheceu ser ofactoring atividade mercantil mista atípica mediante- o compromisso de não fazer qualquer tipo de intermediação de. recursos de terceiros no mercado, comprar efetivamente créditos mercantis e só operar com pessoas jurídicas.

Pelo disposto na Lei 8.981/95, ratificada pela Resolução 2.144/95, do CMN, e pelas Leis 9.249/95 e 9.430/96, foi definitivamente reconhecida sua tipicidade jurídica própria e nitidamente delimitada a área de atuação da sociedade de fomento mercantil que não pode ser confundida com à das instituições financeiras.

Merecem menção outros fundamentos fornecidos, pelo Direito pátrio:

- pelo Código Civil, art. 1.216 - prestação de serviços;

- pelo Código Comercial,- arts. 191 a 220 - vendas mercantis - subsidiados pelos artst 1.065 a 1.078 do Código Civil. - cessão de crédito mercantil, nunca ope-ração de crédito, ato financeiro (mútuo bancário);

- pela Lei 5.474/68 - vendas mercantis;

- pelo Ato Declaratório 51, de 28.9.94, da Receita Federal, foi descaracterizada a natureza financeira da operação de compra de créditos (direitos) resultantes de vendas mercantis realizada pela sociedade de fomento mercantil, se reconhecendo tratar-se de operação puramente comercial, que tem fulcro nos arts. 191 a 220 do Código Comercial, ratificando, portanto, o entendimento de operação própria de uma empresa mercantil;

-pela Circular BC 2.715, de 28.8.96 - foram restabelecidos os limites dè crédito que as empresas de fomento, como sociedades mercantis, desfrutavam nos bancos.

A atividade de factoring foi inicialmente definida pelo art. 28, § l9, c, da Lei 8.981/95, como sendo a "prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e receber, compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (faç-toring).

O referido conceito foi ppsteriormen-. te confirmado, nos seus exatos termos, pelo art. 58 da Lei 9.430/96.

O Projeto de Lei 230, protocolado em 14.8.95, no Senado Federal, de autoria do Senador José Fogaça, resultado de estudos e do know how da-ANFAC, que tem por objetivo obter uma lei específica que discipline e regule as atividades de fomento mercantil, já tramitou pela Comissão de Assuntos Económicos, que aprovou o Substitutivo do Relator, e está, no momento, nai Comissão de Constituição e Justiça que deverá apreciar Substitutivo apresentado com emendas de redação e de outros itens com vistas ao aperfeiçoamento do texto.

Decorre do dispositivo legal que a atividade de factoring caracteriza-se pelo já mencionado binómio prestação de serviços/

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compra de direitos creditórios. Em outras palavras, no factoring há uma necessária combinação, de forma contínua, da aquisição de direitos creditórios decorrentes de vendas de mercadorias/produtos ou de serviços, com prestação de serviços especia- lizados por parte da empresa de factoring (factor). Nesse particular, inclusive, releva sublinhar que o UNIDROIT (Instituí International Pour Unification du Droit Prive), na Convenção Diplomática realizada em Ottawa em 1988; concluiu que somente há factoring se estiverem presentes ao menos duas das funções entre as seguintes relacio-. nadas: gestão de crédito; administração de contas a receber, cobrança; proteção contra riscos de crédito ou fornecimento de recursos.

Em uma concepção gráfica, o factoring poderia ser idealizado como a reunião de duas figuras distintas, que não se confundem, mas que se tangenciam.

É em razão deste conceito preciso, que se entende queofactoring temnatureza mercantil mista, subordinando-se às normas dos Códigos Comercial (arts. 191 a 220) e Civil (arts. 1.216 e 1.065 a 1.078), entre outros diplomas específicos (v.g., Lei 5.474/68).

O fomento mercantil, portanto, não é operação financeira ou mesmo simples compra de faturamento. É um instituto jurídico que se acerca, se aproxima, se avizinha, se abeira do instituto da cessão, do desconto, da antecipação e do adiantamento bancário e de uma série de contratos análogos, mas não se identifica com nenhum deles. O fomento mercantil se sintetiza em uma unidade orgânica e variável segundo a forma operacional adotada, proporcionando às empresas-clientes uma gama de vantagens que devem contribuir para otimizar a gestão delas. Esta é a realidade que não pôde ser ignorada, tanto que a Resolução CMN 2.144/95 esclareceu que qualquer operação realizada por empresas de facto1 ring que não sé enquadre no conceito legal, e que caracterize operação privativa de instituição financeira, constitui ilícito administrativo e criminal.

A melhor doutrina perfilha igualmente a definição legal vigente no direito pátrio.

Na visão de Waldirio Bulgarelli, "as obrigações de ambas as partes - àofactor de receber os créditos e prestar outros serviços, e a do cedente de ceder os créditos e pagar as comissões e juros, caracterizam a sua bilateralidade, a sua comutatividade e a sua onerosidade; também demonstram que não se trata de contrato instantâneo, mas de duração, realizado apenas entre empresas, e obviamente, com o aspecto fiduciário" (Contratos.Mercantis, 4§ ed., Atlas, p. 498).

Fran Martins, embora tenha se manifestado sobre o assunto antes da conceitua-ção formulada pelo diploma legal supra citado, apoia-se na doutrina francesa para caracterizar o factoring como técnica financeira e como técnica de gestão comercial, sendo que còm relação à essa unota-se na faturização a interferência do faturizador (factor) nas operações do faturizado, sele-cionando os clientes deste, fornecendo-lhe informações sobre o comércio em geral, prestando-lhe, enfim, serviços que, de qualquer modo, diminuem os encargos comuns do vendedor" (Contratos e Obrigações Comerciais, 2- ed., Forense, p. 567).

Por fim, Ives Gandra Martins e Luiz Lemos Leite, em artigo enfocando o assunto, destacam: "o que efetivamente existe numa operação de factoring não é um financiamento, mascarado de cessão de crédito. Pressupõe o instituto a prestação de serviços, que deve ter por consequência a compra dos direitos das vendas de um produto ou de uma mercadoria. Não se pode portanto, definir o factoring como uma simples cessão de crédito. O factoring pressu-. põe serviços de apoio às empresas-clien-tes, conforme demonstra a experiência de 50 países onde ele é praticado" ("A ativi-dade típica financeira não se confunde com os serviços prestados por sociedade de fomento mercantil", in O Estado de S. Paulo, ed. de 23.8.97, p. B2).

O fomento mercantil pressupõe a prestação de serviços de apoio ao segmento das

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pequenas e médias empresas que têm dificuldades de dimensionar a identificar as suas deficiências em itens fundamentais, como por exemplo, controle de estoques, conhecimento do mercado de seus produtos, negociação com os fornecedores, acompanhamento de contas a receber e a pagar.

Como consequência desses serviços, a empresa-cliente vende à vista os seus direitos (créditos) resultantes de suas vendas mercantis realizadas a prazo, materializadas em títulos de crédito, que são comprados pela sociedade de fomento mercantil.

A alienação...

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