Negociação coletiva trabalhista

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas1514-1550

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I Introdução

A negociação coletiva é um dos mais importantes métodos de solução de conflitos existentes na sociedade contemporânea. Sem dúvida, é o mais destacado no tocante a conflitos trabalhistas de natureza coletiva.

São distintos, como se sabe, os métodos de solução de conflitos interindividuais e sociais hoje conhecidos. Classificam-se em três grandes grupos: autotutela, heterocomposição e autocomposição. A negociação coletiva enquadra-se no grupo dos instrumentos de autocomposição.

A diferenciação essencial entre tais grupos de métodos encontra-se nos sujeitos envolvidos e na sistemática operacional do processo de solução do conflito. É que nas modalidades da autotutela e autocomposição apenas os sujeitos originais em confronto relacionam-se na busca da extinção do conflito. Isso dá origem a uma sistemática de análise e solução da controvérsia autogerida pelas próprias partes (na autotutela, na verdade, gerida por uma única das partes).

Já na heterocomposição verifica-se a intervenção de um agente exterior aos sujeitos originais na dinâmica de solução do conflito, o que acaba por transferir, em maior ou menor grau, para este agente exterior a direção dessa própria dinâmica. Ou seja, a sistemática de análise e solução da controvérsia não é mais exclusivamente gerida pelas partes, porém transferida para a entidade interveniente (transferência de gestão que se dá em graus variados, é claro, segundo a modalidade heterocompositiva).

A autotutela ocorre quando o próprio sujeito busca afirmar, unilateralmente, seu interesse, impondo-o (e impondo-se) à parte contestante e à própria comunidade que o cerca. Como se vê, a autotutela permite, de certo modo, o exercício de coerção por um particular, em defesa de seus interesses. Não é por outra razão que a antiga fórmula da justiça privada correspondia à mais tradicional modalidade de autotutela.

A heterocomposição ocorre quando o conflito é solucionado através da intervenção de um agente exterior à relação conflituosa. Em vez de pacificarem isoladamente a solução de sua controvérsia, as partes (ou até mesmo uma delas, unilateralmente, como na jurisdição) submetem a terceiro seu conflito. Em decorrência, a solução será por este firmada ou, pelo menos, por ele instigada ou favorecida.

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Na heterocomposição, também não há exercício de coerção pelos sujeitos envolvidos. Entretanto pode haver, sim, exercício coercitivo pelo agente exterior ao conflito original — como se passa no caso da jurisdição. A heterocomposição, em sua fórmula jurisdicional, distingue-se, pois, da autocomposição (e até mesmo das demais modalidades heterocompositivas) pelo fato de comportar exercício institucionalizado de coerção ao longo do processo de análise do conflito, assim como no instante de efetivação concreta do resultado final estabelecido.

São modalidades de heterocomposição a jurisdição, a arbitragem, a conciliação e, também, de certo modo, a mediação1.

A autocomposição ocorre quando o conflito é solucionado pelas próprias partes, sem intervenção de outros agentes no processo de pacificação da controvérsia.

Ela verifica-se de três maneiras, às vezes significativamente distintas entre si. De um lado, o despojamento unilateral em favor de outrem da vantagem por este almejada (renúncia). De outro lado, a aceitação ou resignação de uma das partes ao interesse da outra (aceitação, resignação ou, ainda, submissão). Por fim, a autocomposição também ocorre através da concessão recíproca efetuada pelas partes (transação).

A negociação coletiva enquadra-se, como citado, no grupo das fórmulas autocompositivas. Contudo, é fórmula autocompositiva essencialmente democrática, gerindo interesses profissionais e econômicos de significativa relevância social. Por isso não se confunde com a renúncia e muito menos com a submissão, devendo cingir-se, essencialmente, à transação (por isso fala-se em transação coletiva negociada).

É claro que a negociação coletiva, sendo dinâmica social relativamente complexa, relaciona-se, comumente, a algumas das citadas fórmulas heterocompositivas ou mesmo autocompositivas. É o que se verifica com a mediação, a greve e a arbitragem (embora esta ainda não seja frequente nas negociações coletivas verificadas no Brasil). Estes três mecanismos podem ser considerados, desse modo, instrumentos-meios da negociação coletiva trabalhista.

Por sua vez, a negociação tem, é claro, seus instrumentos-fins, aqueles que consumam o sucesso da dinâmica negocial. Trata-se, no Brasil, da convenção coletiva de trabalho e do acordo coletivo do trabalho (o contrato coletivo do trabalho é figura ainda não institucionalizada no país).

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II Importância da negociação coletiva

A importância da negociação coletiva trabalhista transcende o próprio Direito do Trabalho. A experiência histórica dos principais países ocidentais demonstrou, desde o século XIX, que uma diversificada e atuante dinâmica de negociação coletiva no cenário das relações laborativas sempre influenciou, positivamente, a estruturação mais democrática do conjunto social. Ao revés, as experiências autoritárias mais proeminentes detectadas caracterizavam-se por um Direito do Trabalho pouco permeável à atuação dos sindicatos obreiros e à negociação coletiva trabalhista, fixando-se na matriz exclusiva ou essencialmente heterônoma de regulação das relações de trabalho.

Esse contraponto — maior ou menor atuação sindical e maior ou menor participação da negociação coletiva no Direito do Trabalho — permite, inclusive, estabelecer rica tipologia de sistemas trabalhistas no mundo ocidental desenvolvido. Tal tipologia dá a medida da importância da negociação coletiva na sociedade contemporânea2.

Considerada a evolução do Direito do Trabalho nos séculos XIX e XX, podem-se perceber alguns modelos principais de ordens jurídicas trabalhistas nos países ocidentais de capitalismo central. É claro que o ramo justrabalhista nesse plano do Ocidente expressa e assimila, inevitavelmente, a diversidade das experiências históricas vivenciadas em cada país em que esse Direito se gestou e consolidou-se. Não obstante tal diversidade, é possível identificar-se a existência de alguns padrões principais de estruturação normativa do mercado de trabalho e das relações de produção no universo dessas experiências centrais.

Nesse sentido, é viável — e funcional — apreenderem-se, em grossas linhas, dois grandes padrões de organização do mercado de trabalho e do ramo justrabalhista nos países de capitalismo central. O primeiro padrão de organização (que se desdobra em dois subtipos) corresponde àquele inerente às sociedades democráticas consolidadas, cumprindo relevante papel na configuração própria da Democracia nessas sociedades. O outro padrão principal de estruturação do mercado de trabalho e do seu ramo jurídico especializado consiste no padrão corporativo-autoritário, que teve presença marcante em diversas experiências políticas do mundo ocidental contemporâneo3.

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1. Parâmetros dos Modelos Justrabalhistas Democráticos

O padrão democrático de organização do mercado de trabalho não se configura, historicamente, sob um único e indiferenciado modelo. É inquestionável a existência de inúmeras peculiaridades normativas entre as diver-sas experiências dos países centrais. Ainda assim, é viável enxergarem-se alguns relevantes pontos de aproximação entre os padrões nacionais existentes, permitindo a formulação de uma tipologia composta por alguns modelos específicos.

Em linhas gerais, é razoável acolher-se a configuração de dois modelos trabalhistas democráticos essenciais. Eles podem ser denominados, respectivamente, de modelo de normatização autônoma e privatística e de modelo de normatização privatística mas subordinada.

A) Normatização Autônoma e Privatística — O padrão de norma-tização autônoma e privatística supõe a plena legitimação do conflito entre particulares. A ampla realização do conflito gesta meios de seu processamento no âmbito da própria sociedade civil, por meio dos mecanismos de negociação coletiva autônoma, hábeis a induzir à criação da norma jurídica. A norma produz-se, de fato, a partir da sociedade civil, mediante a dinâmica conflituosa e negocial estabelecida entre os sindicatos, associações profissionais e empregadores. Generaliza-se a norma jurídica nesses casos, muitas vezes, independentemente de ser ainda absorvida legislativamente pelo Estado.

Os exemplos mais clássicos desse padrão residem nas experiências dos sistemas inglês e norte-americano, em que a normatização jurídica deflui, fundamentalmente, da criatividade privatística, manifestada em especial através das convenções e acordos coletivos4.

B) Normatização Privatística Subordinada — No modelo ora considerado (da normatização privatística mas subordinada) a criação e reprodução da norma jurídica...

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