A 'necropolítica' e o Brasil de ontem e de hoje

AutorRômulo de Andrade Moreira
CargoProcurador de justiça do MP/BA
Páginas11-13
TRIBUNA LIVRE
11
REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 657 I ABR/MAIO 2019
Rômulo de Andrade Moreira PROCURADOR DE JUSTIÇA DO MP/BA
A ‘NECROPOLÍTICA’ E O BRASIL DE ONTEM E DE HOJE
Achille Mbembe é um
filósofo e pensador ca-
maronês dos mais eru-
ditos. Estudioso da es-
cravidão, da descolonização
e da negritude, é professor de
história e ciências políticas
na universidade de Witwa-
tersrand, em Joanesburgo,
África do Sul, bem como na
Duke University, nos Estados
Unidos.
Considerado “um dos pou-
cos teóricos que consegue
pensar o contexto mundial
contemporâneo a partir da
provincialização da Euro-
pa”, é autor de vários livros,
alguns já traduzidos para
o português. Entre as suas
obras, quero destacar, nesta
pequena resenha, o seu traba-
lho “Necropolítica”, publicado
no Brasil pela editora  Edi-
ções.
Nesse ensaio, o autor parte
do pressuposto de que “a ex-
pressão máxima da soberania
reside, em grande medida, no
poder e na capacidade de di-
tar quem pode viver e quem
deve morrer”, razão pela qual
“matar ou deixar viver consti-
tuem os limites da soberania,
seus atributos fundamen-
tais”.
Assim, ao final e ao cabo,
“ser soberano é exercer con-
trole sobre a mortalidade e
definir a vida como a implan-
tação e manifestação de po-
der”. Logo, neste sentido, “a
soberania é a capacidade de
definir quem importa e quem
não importa, quem é ‘descar-
tável’ e quem não é”.
Rejeitando a crença “ro-
mântica” da soberania como
algo em que “o sujeito é o prin-
cipal autor controlador do seu
próprio significado”, Mbembe
preocupa-se, sob uma óptica
inteiramente diversa, “com
aquelas formas de soberania
cujo projeto central não é a
luta pela autonomia, mas ‘a
instrumentalização generali-
zada da existência humana e
a destruição material de cor-
pos humanos e populações’”
(aqui revela a influência de
Foucault em sua obra, desde a
ideia de “biopoder”, desenvol-
vida pelo filósofo francês)1.
Neste sentido, criticando o
que ele chama de um “discur-
so filosófico da modernidade”,
demonstra muito afirmativa-
mente que das “experiências
contemporâneas de destrui-
ção humana” pode muito bem
ser extraída “uma leitura da
política, da soberania e do
sujeito”, a partir da conside-
ração de “outras categorias
fundadoras menos abstratas
e mais palpáveis, tais como a
vida e a morte”.
Relacionando a noção de
biopoder (F) com
dois outros conceitos – estado
de exceção e estado de sítio
(A) –, Mbembe mos-
tra de maneira bastante clara
como “o estado de exceção e
a relação de inimizade tor-
naram-se a base normativa
do direito de matar”, e como
o poder “apela à exceção, à
emergência e a uma noção fic-
cional do inimigo” para justi-
ficar o extermínio de outrem.
Desde este ponto de vista,
o ensaísta africano conside-
ra que a escravidão “pode ser
considerada uma das primei-
ras manifestações da experi-
mentação biopolítica”, razão
pela qual “qualquer relato
histórico do surgimento do
terror moderno precisa tratar
da escravidão”.
Para ele, “a condição de es-
cravo resulta de uma tripla
perda: perda de um ‘lar’, perda
de direitos sobre seu corpo e
perda de estatuto político”,
ocasionando “uma domina-
ção absoluta, uma alienação
de nascença e uma morte so-
cial (que é expulsão fora da
humanidade)”. Assim, ele “é
mantido vivo, mas em ‘esta-
do de injúria’, em um mundo
espectral de horrores, cruel-
dade e profanidade intensos”.
Sua vida, portanto, “é uma
forma de morte-em-vida” e
“propriedade de seu senhor”
(S B-M).
Nada obstante a sua si-
tuação de quase-morto (ex-
pressão minha), o escravo
“é capaz de extrair de quase
qualquer objeto, instrumen-
to, linguagem ou gesto uma
Rev-Bonijuris_657.indb 11 22/03/2019 13:38:37

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