Estado de Necessidade

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas349-369

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12.1. Fundamento jurídico e requisitos

O que confere tônica ao estado de necessidade é a existência de uma situação adversa que, no seu desenrolar, cria uma possibilidade imediata de risco a bem jurídico do agente. Este, então, premido e pressionado por circunstâncias desfavoráveis, se vê na contingência de agir, sacrificando interesse alheio, ou de suportar uma lesão ao próprio direito.

O fundamento jurídico do estado de necessidade reside no conflito de interesses que uma adversidade atual faz nascer. Diante da situação de perigo que se descortina, o sujeito ativo, movido pelo instinto de conservação, é compelido a atuar para preservar o próprio bem jurídico, ainda que à custa da violação do direito de outrem.

O fato típico acaba sendo perpetrado por força e pressão destas circunstâncias desfavoráveis.

Em casos desse jaez, crível é que o Direito não poderia exigir atos de renúncia, heroismo ou bravura, impondo, pela exigência de extraordinária coragem e altruísmo puro, comando impossível de ser cumprido pelos cidadãos, posto que, por vibrar com maior força o instinto de conservação, haveria natural e instintiva resistência à imperatividade do preceito legal.

Não fosse assim, e o Direito se colocaria em posição estranha aos sentimentos humanos e à própria realidade da vida. A solução imposta nada teria de justa e humana e estaria divorciada dos mais comezinhos princípios de criação da ciência jurídica.

Como observou Helmut Mayer, o que não pode ser razoavelmente exigido a um homem, não lhe pode ser imposto pelo direito positivo725, pois aqui, ressaltou Graf Zu Dohna, tem validade o adágio: quando o direito se atreve a penetrar profundamente na alma humana, com o propósito de elevar a heróis os homens comuns, floresce o farisaísmo726.

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Nessa conjuntura, é indubitável que a licitude da conduta em tais situações haveria de ser proclamada. Daí despontar o estado de necessidade como causa de justificação.

Agindo em estado necessário, o sujeito ativo não causa dano à sociedade. Ao defrontar-se com a contingência de ver seu bem jurídico atingido ou de sacrificar interesse alheio, é insofismável que o agente, ao lesar o direito de outrem para a salvaguarda do seu, não produz um dano social contornável, porquanto se ele nada fizesse o próprio interesse seria lesado. Infere-se daí que, para a ordem jurídica, não houve lesão evitável aos bens e valores que tutela. A situação de necessidade colocou em perigo dois bens jurídicos, tornando impossível que a proteção penal pudesse preservar ambos. É natural, ante o impasse, que o Estado permaneça indiferente ao conflito de interesses727.

Uma vez que o Poder Público não tem o dom da ubiquidade, não é onipresente, é irrefutável que não reúne condições para acudir e intervir tempestivamente no sentido de dirimir o perigo desencadeado, nem lhe cabe tomar partido antecipado entre os interesses em conflito. Ao Estado, diante desse quadro, outra alternativa não resta senão a de manter-se em expectativa para, assumindo posição de neutralidade, esperar que se resolva o problema e declarar sem crime o vencedor728. Daí por que quod non est licitum lege, necessitas facit licitum.

Como disse Quintano Ripollés, o princípio segundo o qual a necessidade carece de lei e que o inelutável cai fora das normas ordinárias que regulam a conduta humana tem ocasiões de sobra no Direito Penal729.

O estado de necessidade consiste na faculdade de agir com cometimento de fato típico diante de uma situação de perigo. Não é direito, pois, assim fosse, a ele necessariamente deveria corresponder uma obrigação (jus et obligatio sunt correlata) e, como é manifesto, a pessoa agredida em estado necessitado não está obrigada a suportar a agressão, tanto que a ela pode reagir, de forma a ensejar a hipótese estados de necessi-dade recíprocos, perfeitamente viáveis na ótica jurídica (v. n. 12.2).

Há quem enfatize, contudo, não se tratar de mera faculdade, mas de verdadeiro direito, porém não contra aquele que é agredido pela necessidade, mas contra o próprio Estado. Isso porque o Poder Público teria a obrigação de reconhecer os efeitos da causa excludente da ilicitude como um direito subjetivo de liberdade730. Ousamos divergir: não há qualquer relação jurídica, para o reconhecimento do direito e o corolário obrigacional, entre o autor do fato típico e a vítima e mesmo entre aquele e o Estado, que somente reconhece, referenda e homologa a legitimidade do ato, na sua posição de neutralidade.

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O estado de necessidade, entretanto, para tomar configuração jurídica, está atrelado à verificação de certos requisitos, que delimitam o seu perímetro. A propósito, realça Quintano Ripollés, o pleno e ilimitado reconhecimento do estado de necessidade conduziria à integral barbárie, já que valeria tanto a consagração do direito do mais forte quanto a lei da selva731. Constituem pressupostos fáticos do aperfeiçoamento jurídico da excludente: existência de situação de perigo atual, sua não causação pelo agente, a inevitabilidade do fato típico, a proporcionalidade entre os bens jurídicos em confronto e a inexistência de dever legal de enfrentar o perigo, tudo no sentido de ser preservado direito próprio ou alheio. Examinemos, agora, cada uma das características conceituais do estado de necessidade, todas elas enumeradas no art. 24 do diploma penal.

12.2. Situação de perigo atual

O primeiro requisito para o estado necessário adquirir contornos jurídicos está na ocorrência de uma situação de perigo.

Esta situação deve retratar o surgimento de um fato ameaçando o bem jurídico do agente, com risco de lesão somente evitável pelo cometimento do fato típico.

A origem do perigo não denota qualquer importância. Pode resultar de causas naturais ou casos fortuitos (terremoto, enchente, erupção de vulcão, maremoto, incêndio...), de acidentes (naufrágio, desastre, ataque de animal...), ato humano (somente agressões justas - infra), em suma, pontifica Hungria, de qualquer acontecimento desfavorável732.

A situação que justifica o estado de necessidade somente não pode ter sua gênese numa agressão injusta, porque o perigo que ela origina confere descortino à legítima defesa. Em única hipótese a agressão injusta pode ensejar o estado necessário: quando, na reação, o agente não atingir o agressor, mas terceiro inocente (v. n. 11.3).

Todavia, não existe empecilho à configuração do estado de necessidade contra agressões justas. Estas também criam situações de perigo a bens jurídicos e, por não constituir a injustiça pressuposto conceitual da excludente em apreço, ao reverso do que acontece na legítima defesa (v. n. 11.2), é forçoso reconhecer a possibilidade do estado necessário igualmente na oposição a atos justos. Daí a admissibilidade jurídico-penal de reciprocidade nesta excludente, id est, de estado de necessidade contra estado de necessidade. É o que ocorreria, à guisa de ilustração, no célebre e sempre lembrado exemplo de Carneades, antigo filósofo e orador grego (215-129 a.C.), de dois náufragos disputarem, mediante desforço físico violento, com a morte como desfecho para um deles, a tábua que a apenas um pode sustentar (tabula unius capax) ou - pode-se acrescentar - de dois tripulantes de uma aeronave em pane concorrerem fisicamente ao único paraquedas, culminando a disputa no êxito letal de um deles. Haveria, na espécie, agressões justas de ambas as partes, porque legitimadas pelo perigo e pelo estado de necessidade, emergindo o reconhecimento da descriminante - havida em reciprocidade - em prol do vencedor da liça.

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Por conseguinte, a inexistência de ato agressivo não se erige como requisito do estado de necessidade. A causa de justificação pode perfeitamente existir diante dele, na dependência do modo como se desenvolveu a agressão.

Ao contrário do que sucede na legítima defesa, não se refere a lei à iminência do perigo, mas apenas à atualidade. Desta sorte, cumpre analisar se, em sede de estado de necessidade, a excludente abrange igualmente o perigo iminente ou se, ao reverso, se restringe tão só ao perigo atual. Frederico Marques, com apego ao literalismo legal, preconiza a exclusão das situações de perigo iminente do âmbito da descriminante e enfatiza que somente o risco atual confere margem à causa de justificação733. Nada obstante, porque o preceito legal que aloja o estado de necessidade tem natureza permissiva, é iniludível que seu literalismo não deve ser levado à risca, mesmo porque, aqui, caberia a analogia in bonam partem (v. n. 1.6.2) junto ao dispositivo que consagra a legítima defesa. Esperar a efetivação do perigo será, muitas vezes, tornar impossível à pessoa a proteção do bem jurídico734. Como o perigo representa sempre uma situação de probabilidade de dano, é inconcusso que o estado de necessidade pode abranger também, consoante a communis opinio doctorum, o perigo que está prestes a ocorrer735.

Nessa conjuntura, o perigo é atual - na expressão de Sauer - quando a proteção virá tarde demais, se não vier imediatamente736, de modo que, na consideração da situação de risco, encarta-se também o perigo de natureza iminente.

Por estar a situação de risco vinculada ao pressuposto temporal da atualidade ou iminência, é patente que se houver somente uma perspectiva ou possibilidade de perigo, id est, se este se puser em termos remotos, futuros e incertos, ou se já houver cessado ou estiver superado ao atuar o agente, não se aperfeiçoará o estado de necessidade. De tal arte, "o estado de necessidade não pode ser reconhecido em caso de quem alega ter furtado roupas para poder trabalhar, quando, ao invés de usá-las imediatamente...

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