A necessaria superacao do processualismo liberal em tempos de relacoes virtuais e a busca de respostas corretas para litigios envolvendo direitos transindividuais decorrentes da sociedade em rede/The need to transcend the liberal processualism in times of virtual relationships and the search for correct answers to litigations involving transindividuals rights arising from networked society.

AutorIsaia, Cristiano Becker

INTRODUCAO

As mudancas oriundas do surgimento e expansao da internet moldaram uma nova sociedade. Diversos autores, estudiosos da area, como o sociologo Manuel Castells que denominam o atual modelo social como "sociedade em rede", alertam que os ultimos anos do seculo XX e do inicio do seculo XXI representam uma verdadeira revolucao da comunicacao. Essa nova realidade esta presente, hoje, nas tarefas mais simples do dia-a-dia e inserida na vida comum dos individuos. Empresas, governos, pessoas e grupos utilizam a internet como difusora de informacoes, como fonte de pesquisa, como meio de adquirir bens ou, simplesmente, para entrar em contato com outros individuos.

No contexto de um novo modelo social, a partir das alteracoes advindas da sociedade em rede, alteram-se as relacoes sociais e, em consequencia, novos direitos e novas demandas surgem e nao raro terminam por ser levadas ao Poder Judiciario. Um exemplo bastante paradigmatico refere-se a protecao de dados pessoais dos individuos, facilmente violadas num mundo conectado e multimodal como o de hoje. Em uma realidade pratica processual ainda sobremanera atrelada ao ja ultrapassado paradigma liberal, questoes como a tutela eficiente e celere a privacidade violada, como no exemplo acima citado, precisam ser postas em pauta. Como tutelar processualmente tal situacao, com celeridade e, sobretudo, eficiencia, diminuindo os riscos de exposicao da pessoa ou do grupo de pessoas que sofreu o dano?

Diante da problematica processual instaurada no que tange a protecao dos direitos, especialmente os transindividuais, no contexto da sociedade em rede, fala-se em respostas corretas, com o amparo da teoria do jusfilosofo norte-americano, Ronald Dworkin. O fato que nao pode ser ignorado, quando se trata de uma sociedade interconectada em diversos niveis--sociais, economicos, etc--e que o paradigma liberal-individualista, base teorica do processo que temos ainda hoje, em pleno seculo XXI, e insuficiente para a tutela dos litigios envolvendo a sociedade em rede. Assim, o presente artigo, busca, na teoria supracitada, uma condicao de possibilidade para a releitura do processo civil atual, em prol de uma tutela agil e eficiente para tais questoes.

O ponto central do trabalho ancora-se no fato de que, o direito, como ciencia social e humana, nao pode manter-se alheio a tais evolucoes, tao fortemente imbricadas na vida em sociedade, que acabam por suscitar litigios envolvendo os mais variados direitos, desde individuais, ate coletivos e difusos. Neste ambito, em especial, o direito processual civil precisa estar em consonancia, de modo a possibilitar ao jurisdicionado a prestacao de uma tutela agil e efetiva. Contudo, o processo judicial tradicional, moroso, ordinarizado, sedimentado em valores liberais racionalistas, nao se coaduna com a nova realidade decorrente da sociedade em rede, situando-se diante de um novo dilema deflagrado pela necessaria readequacao a tutela dos novos direitos decorrentes da realidade digital. Dai o questionamento: E possivel buscar respostas corretas nos litigios que envolvem direitos transindividuais decorrentes da sociedade em rede?

Uma possivel resposta a ele justifica as linhas que seguem.

  1. DO PROCESSO LIBERAL-INDIVIDUALISTA AO PROCESSO SOCIALIZADO

    O processo civil atualmente posto e, sem duvida, calcado na ideologia racionalista do Estado liberal. Tal atrelamento e efetivo para a tutela de direitos individuais, tais como os de propriedade. No entanto, tal paradigma focado, ainda, em litigios similares aqueles comuns a epoca da ascensao burguesa, buscando solucionar questoes essencialmente importantes a classe, nao esta preparado para a tutela de direitos transindividuais, cada vez mais postos em discussao no Judiciario, despreparado para garantir-lhes uma tutela eficiente, como se pretende demonstrar no decorrer deste trabalho.

    Inicialmente, e preciso remontar as bases do processualismo atual, buscando as razoes que o fazem estar, ainda, voltado a questoes proprias dos direitos de primeira geracao, essencialmente individuais.

    Amparado pela separacao dos poderes (Montesquieu) e pela defesa das liberdades individuais (merito da Revolucao Francesa), o Estado liberal pode ser caracterizado como um Estado minimo. Uma construcao ficticia essencial para que a burguesia pudesse exercer seu comercio com o amparo da lei, que tinha no Poder Legislativo a sua garantia de seguranca juridica. Assim, o Poder Judiciario, reduzido a um mero poder subordinado, tinha por funcao apenas a reproducao da vontade expressa da lei.

    Explica Ovidio Baptista da Silva (1997, p. 101) que o processo foi adaptado a realidade social e tambem aos objetivos da classe dominante--burguesia -, isso para que tivesse seus anseios atendidos e suas acoes amparadas pela lei mesma, amarrando a teoria da separacao dos poderes ao valorizar os ideais de seguranca e certeza. Com efeito:

    [...] o processo de conhecimento, como processo declaratorio, e, alem disso, por natureza ordinario - em que a verdade e proclamada, depois de um amplo debate judicial, como resultado de um juizo de certeza, obtido pelo magistrado atraves da utilizacao integral dos meios de ataque e defesa pelos litigantes--sera indiscutivelmente o instrumento capaz de abrigar essa especie de filosofia politica que tem, na ideologia da 'separacao de poderes', sua base de sustentacao. Influenciado pelo pensamento liberal, trata-se de um momento historico em que cabia ao juiz nada alem da reproducao da vontade da lei, dispensando-o da realizacao de qualquer ato interpretativo. O processo civil, nesse contexto, paulatinamente afasta-se das ciencias da compreensao, aproximando-se das ciencias da demonstracao, ficando reduzido a uma equacao matematica, na medida em que o magistrado, em um rito ordinario fase a fase, buscaria aplicar a lei a um caso concreto, "extraindo" do sistema suas decisoes como verdades matematicas (ISAIA, 2012, p. 19-20). Essa reducao do processo ao modelo matematizado buscava garantir exatidao e certeza, ansiadas pela sociedade liberal, legadas da filosofia racionalista.

    Ovidio Baptista (2004, p. 115) aduz a uma tentativa de "geometrizacao" do direito e do processo, assim identificando as amarras sofridas pelo processo civil no ideario liberal-racionalista, tornando-se mais uma formula matematica de resolucao de problemas:

    Se investigarmos as raizes ideologicas que sustentam o nosso paradigma, veremos que o Direito moderno, a partir das filosofias do Seculo XVII, passou a priorizar o valor 'seguranca', como exigencia fundamental para a construcao do moderno "Estado Industrial". [...] Antes de Savigny 'geometrizar' o Direito, criando um 'mundo juridico', distante das inimaginaveis diversidades' do caso concreto e, portanto, da realidade social, Leibniz, dissera, que nao apenas o Direito, mas a propria moral, seriam ciencias tao demonstraveis, quanto qualquer problema matematico. Veja-se que o ideario racionalista permeou o processo no decorrer da evolucao do Estado Moderno, garantindo a expansao do modo de producao capitalista, que tinha na estrutura estatal a garantia de certeza e seguranca ideal para o desenvolvimento da industria e comercio burgueses. E como se disse, com essa filosofia, quando do surgimento das primeiras codificacoes (especialmente com o Codigo Napoleonico), buscou-se afastar os magistrados da tarefa interpretativa. Segue Ovidio Baptista da Silva (2004, p. 97) a referir que:

    [...] o nucleo da resistencia oferecida pelo sistema a ideia de que o Direito seja uma ciencia da compreensao, apoia-se nos juizos de verossimilhanca, que como dissera Descartes, haverao de ter-se liminarmente como falsos. Se na norma pudesse comportar duas ou mais interpretacoes validas e legitimas, como obter seguranca procurada pelo nascente Estado Industrial? O fato e que o liberalismo exerceu grande influencia no direito processual civil. A partir da busca pela certeza, a consequente matematizacao do processo concederia a magistratura uma funcao de mera reproducao da lei, essa somente permissiva apos cognicao exauriente. Essa era a missao do Poder Judiciario. Nao havia qualquer compromisso etico ou interpretativo dos juizes ao dizer o direito (ISAIA, 2012, p. 95). O ideario racionalista, calcado na ordem e estabilidade, racionalizou a jurisdicao processual, incumbindo-a de proteger o passado legislado e defende-lo das interferencias da politica e dos valores que determinavam as reais desigualdades sociais. Consequentemente, a racionalizacao dos conflitos individuais trouxe consigo uma maior dificuldade de juridicizar conflitos coletivos (LUCAS, 2005, p. 179.), o que atualmente, por obvio, esta em descompasso diante do Estado Democratico de Direito, como sera visto a seguir, notadamente a respeito dos direitos transindividuais decorrentes da sociedade em rede.

    No aspecto processual propiamente dito, o fato de o sentido vir previamente indicado na lei, por influencia do positivismo exegetico, revelou, dentre tantas outras, a dificuldade no trato dos juizos de prevencao, na medida em que o juiz somente poderia indicar o que esta previamente estabelecido, nunca aplicar a lei a um caso que exigisse uma tutela liminar. Isto porque decisoes liminares implicam trabalhar com fatos ainda nao ocorridos, na medida em que a decisao judicial se da com base em juizos de verossimilhanca. Contudo, nesse modelo, esses juizos nao poderiam ser aceitos uma vez que seriam baseados na vontade do magistrado, e nao do legislador, e neste caso, a sentenca seria injusta. O juiz nao poderia considerar fatos ainda nao ocorridos, ja que sua atividade era meramente declarar o conteudo da lei, num juizo de cognicao exauriente fase a fase, sem trabalhar com a ideia de prevencao (ISAIA, 2012).

    O fato e que no contexto do Estado Liberal, a teoria da triparticao dos poderes, ao buscar trazer a neutralidade da atividade jurisdicional, traria reflexos as instituicoes processuais, relegando o judiciario a uma instancia neutra, presa a...

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