Ne bis in idem: direito fundamental constitucional aplicável na relação entre as esferas penal e administrativa geral no direito brasileiro

AutorSirlene Nunes Arêdes
Páginas204-240
Ne bis in idem: direito fundamental
constitucional aplicável na relação entre
as esferas penal e administrativa geral no
direito brasileiro
Ne bis in idem: fundamental constitucional right applicable
in the relationship between criminal law and the sanctioning
administrative law
Sirlene Nunes Arêdes*
Faculdade Milton Campos, Belo Horizonte-MG, Brasil
1. Introdução
A teoria da unidade do poder punitivo estatal levou diversos países euro-
peus, especialmente nas três últimas décadas, a desenvolverem nova lei-
tura da tradicional teoria da autonomia e independência das instâncias
penal e administrativa. Ainda que se possa, com fundamento nas normas
constitucionais, postular âmbitos diferenciados de intervenção para a esfe-
ra penal e para a administrativa, não é possível diferenciar, materialmente,
essas infrações e sanções. A identidade do poder punitivo advém da aplica-
ção da pena, de forma que a previsão normativa abstrata de sua aplicação
e execução importa o exercício deste poder.
Fundamentadas nessas concepções, doutrina e jurisprudência de paí-
ses europeus abrandaram os efeitos da tradicional teoria da autonomia e
independência das instâncias, a f‌im de submeter a instância administrativa
punitiva a princípios constitucionais tradicionalmente aplicados pelo Di-
reito Penal. Reconhece-se, dessa forma, a existência de um conjunto de
princípios comuns à repressão estatal considerada em sentido amplo.
* Professora Doutora e Mestre em Direito pela UFMG, professora da graduação em Direito da Faculdade
Milton Campos. Procuradora da Câmara Municipal de Belo Horizonte. E-mail: sirlenearedes@gmail.com
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Nesse sentido, em Portugal, o Decreto-lei 433, de 27/10/1982, que
regula as contraordenações, garante, na esfera administrativa, a retroativi-
dade da norma mais benéf‌ica, a punição apenas por condutas dolosas ou
culposas, a aplicação das teorias de erro de tipo e erro de proibição e inter-
dependência entre a punição penal e a administrativa das mesmas pessoas,
pelos mesmos fatos e fundamento. Já na Espanha, a Constituição de 1978
garante, expressamente, a anterioridade das infrações administrativas. Mas
o Tribunal Constitucional Espanhol (TCE) ampliou essa proteção e passou
a exigir, na aplicação de sanções administrativas, a tipicidade, conduta do-
losa ou culposa e previsão em lei formal dos limites de infrações e penas
administrativas. Esse Tribunal também impôs a proibição de bis in idem
para condutas tipif‌icadas como ilícito penal e administrativo1. Consoante
a sua jurisprudência, aplicam-se ao Direito Administrativo Sancionador os
princípios do Direito Penal com “modulações” 2.
A teoria da unidade do poder punitivo é o principal fundamento para
a aplicação da vedação de bis in idem na relação entre as esferas penal e
administrativa, por rejeitar que a mesma pessoa seja punida em ambas as
instâncias pelos mesmos fatos e sob o mesmo fundamento.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), ao adotar essa teo-
ria, mantém jurisprudência nesse sentido. Os fundamentos utilizados pelo
TEDH para considerar abusiva a aplicação simultânea de sanções penais e
administrativas são o Protocolo Adicional nº 7 do Convênio Europeu de
Direitos Humanos e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Embora esses dispositivos ref‌iram-se expressamente ao direito penal e, de
forma semelhante, o Convênio de aplicação do Acordo Schengen limite a
aplicação do ne bis in idem aos casos em que haja “sentença f‌irme”, o TEDH
interpretou esses dispositivos no sentido de que há vedação à dupla punição
por ilícitos em sentido amplo e não apenas em relação às infrações penais.
Lucía Alarcón Sotomayor3 af‌irma que a decisão mais representativa da
jurisprudência do TEDH é a sentença de 29 de maio de 2001 (caso Franz
Fischer contra Áustria). A autora relata que o indivíduo, em estado de
embriaguez, atropelou, com seu veículo, um ciclista e se evadiu do local
sem prestar socorro; posteriormente, o ciclista faleceu. O autor do atrope-
1 NIETO GARCÍA, 2005, p. 215.
2 NIETO GARCÍA, 2005, p. 164 et seq.
3 SOTOMAYOR, 2008, p. 55 et seq.
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lamento foi sancionado administrativamente por conduzir embriagado e,
penalmente, por homicídio culposo. O TEDH decidiu que, embora pudesse
parecer, à primeira vista, que existissem dois ilícitos, há situações em que
um ilícito está contido em outro, de forma que o crime de homicídio cul-
poso absorve a infração administrativa de dirigir sob os efeitos de álcool. O
Tribunal entendeu que, nestas situações, não há possibilidade de aplicação
de duas penalidades sob pena de ofensa à vedação de bis in idem, garantida
no art. 4 do Protocolo 7 do Convênio Europeu de Direitos Humanos.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia também é
contrária à punição penal e administrativa da mesma pessoa, pelos mes-
mos fatos e fundamentos. A jurisprudência desse Tribunal ressalta que uma
pessoa pode ser def‌initivamente julgada ainda que nenhum Tribunal haja
se manifestado sobre os fatos objeto de reprovação e o Acordo de Schengen
não subordina a aplicação do ne bis in idem à necessária tramitação prévia
de um processo penal4.
Diante de reiteradas doutrinas e jurisprudências brasileiras que defen-
dem a autonomia e a independência das instâncias, questiona-se a existên-
cia de limites constitucionais que impeçam o uso concomitante das diver-
sas formas de manifestação do poder punitivo estatal. Indaga-se, portanto,
se o Poder Legislativo e os aplicadores do direito encontram-se constitu-
cionalmente obrigados à observância do ne bis in idem nas relações entre as
esferas penal e administrativa geral. Portanto, a aplicação desse princípio
demanda a def‌inição de seu conteúdo, a análise quanto à sua existência no
ordenamento constitucional brasileiro e de seu âmbito de incidência.
Na legislação brasileira, constata-se a tipif‌icação dos mesmos fatos, si-
multaneamente, como crimes e infrações administrativas gerais. Em al-
gumas hipóteses, há a simples repetição de comandos normativos com
alteração de penas.5 Em outras, embora sejam adotados termos diversos,
há identidade quanto aos sujeitos responsáveis, aos fatos puníveis e ao
fundamento da punição.6 Se analisadas conjuntamente a legislação penal e
administrativa federal, estadual e municipal, uma mesma pessoa pode ser
4 JALVO, 2003, p. 183.
5 Nesse sentido, por exemplo, a tipif‌icação dos crimes pela Lei 9.605/98 e tipif‌icação de infrações
administrativas pelo Decreto Federal 6.514/2008.
6 Os exemplos são oferecidos por Celso Eduardo Faria Coracini (2004b, p. 272) ao analisar as disposições
dos arts. 4º, 5º e 6º da Lei 8.137/1990 com as normas de proteção da concorrência, atualmente previstas
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