O NCPC e o processo do trabalho

AutorValdete Souto Severo
CargoEspecialista em Processo Civil pela Unisinos
Páginas26-58
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Revista da Faculdade de Direito da FMP – nº 9, 2014, p. 26-58
O NCPC E O PROCESSO DO TRABALHO:
falsas novidades e parâmetros de aplicação
Valdete Souto Severo*1
Resumo: A edição de um novo Código de Processo Civil, com todas as controvérsias e discussões
que o envolvem, talvez seja uma bela oportunidade de resgate das normas processuais trabalhis-
tas. Neste artigo, proponho a hipótese de que o exame das previsões do NCPC e, especialmente,
o reconhecimento da racionalidade que o permeia, nos habilitará a reconhecer a atualidade e a
importância das normas processuais contidas na CLT e perceber a incompatibilidade da maior parte
das regras do processo comum com o processo do trabalho.
Palavras-chave: Processo do trabalho. NCPC. Racionalidade liberal.
1. Introdução
As novidades sempre nos atraem. Somos compelidos em direção ao
novo, justamente por sua característica de introduzir algo diferente, capaz de
nos retirar da zona de conforto. Convida-nos a reetir. É assim com o novo CPC.
O problema é que aí a novidade é um disfarce: não passa de reinvenção do que
já está ultrapassado.
O NCPC não apenas deixa de avançar em aspectos essenciais, tal qual a
redução do número de incidentes e recursos, como também insiste numa ideia
que já perdeu seu tempo histórico: a proteção aos interesses do devedor.
Isso, por si só, o compromete como uma novidade a ser festejada. Se
somarmos o fato de que resulta compilação de diferentes doutrinas e mesmo
teses individuais, por vezes antagônicas, teremos diculdade em afastar a con-
clusão que se impõe. O novo CPC nasce ultrapassado naquilo em que efetiva-
mente interessa: sua suposta intenção de perseguir a realização do projeto so-
cial de inclusão e solidariedade, contido na Constituição de 1988. Não se trata,
*1Especialista em Processo Civil pela Unisinos, especialista em Direito do Trabalho, Processo
do Trabalho e Direito Previdenciário pela Unisc, master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e
Previdência Social pela Universidade Europeia de Roma (UER/Itália), especialista em Direito do
Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (Udelar), mestre em
Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e
Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e
Previdência Social. Professora e Diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS
(Femargs). Juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.
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porém, apenas da perda de uma oportunidade de avançar. Vários dispositivos
revelam a intenção clara de reforçar o paradigma racionalista que busca “amar-
rar” o juiz à vontade da lei (hoje melhor identicada na vontade da súmula). Por
consequência, sua aplicação (subsidiária ou supletiva) ao processo do trabalho
implicará retrocesso.
Essa realidade torna-se ainda mais nítida quando percebemos, através
do exercício de resgate das normas processuais trabalhistas, que o processo
do trabalho é ágil, eciente e tendente a permitir a realização dos direitos so-
ciais.
Este artigo convida à reexão sobre as falsas novidades da Lei
13.105/2015 e a atualidade das normas processuais trabalhistas, propondo um
resgate que nos permita olhar novamente para o processo do trabalho, reco-
nhecendo-lhe a autonomia e a importância, como instrumento de realização dos
direitos sociais trabalhistas.
2. A racionalidade liberal reforçada
Nossa noção atual de processo é ainda caudatária da lógica iluminista,
pela qual foi necessário – em certo momento histórico – criar poderes de Estado
que justicassem e zessem valer as “novas regras” burguesas de convivên-
cia.1 Um avanço, sem dúvida. A lei escrita foi a forma encontrada para impedir
o retorno à lógica medieval de denir direitos e obrigações a partir da casta a
que pertenciam as pessoas envolvidas. Além disso, era preciso criar a gura do
sujeito de direitos e fortalecer as noções de contrato e propriedade privada, para
que a troca (inclusive de tempo de vida por dinheiro) pudesse se tornar o móvel
da nova sociedade.2
1 A Revolução Francesa teve por objeto romper com o modelo feudal de organização social,
em uma realidade de grave alteração da lógica econômica. O modelo feudal falido precisava ser
substituído por outro que legitimasse a classe social detentora do poder econômico (burguesia).
Essa legitimação política foi obtida por meio da revolução, que não apenas instituiu um novo modo
de relação entre o capital e o trabalho, como também alterou o pensamento losóco. A consolidação
da classe emergente no poder tornou necessária a “conversão do Estado absoluto em Estado
constitucional: o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis, e não as personalidades, que
governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz
com toda energia nos textos dos Códigos e das Constituições” (BONAVIDES, Paulo. Do absolutismo
ao constitucionalismo. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 5, p.
565, 2004).
2 A construção losóca da noção de sujeito de direitos é encontrada especialmente em Hegel.
Para ele, “o direito é forma” e a forma direito “é determinada pela forma sujeito de direito” e a
forma sujeito de direito “é necessariamente universal”. É dever da pessoa “dar-se um domínio
exterior para a sua liberdade, a m de existir como ideia”. A pessoa é, portanto, “vontade innita
em si e para si” e tudo o mais, que pode constituir “domínio de sua liberdade, determina-se como
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Entretanto, mais de dois séculos transcorreram sem que conseguísse-
mos avançar em relação ao modelo então criado para permitir a transição do
sistema feudal para o capitalista de produção. A própria ideia de Estado tripartite
e de código pressupõe um modelo de sociedade (de trocas) e de distribuição
(de poder), na qual o Judiciário é idealizado para ser apenas “uma presença e
uma voz”.3 O juiz, por sua vez, “um homem cuja função consiste exclusivamen-
te em ler e em dizer a lei”.4
Armar que isso está ultrapassado, que há muito tempo não temos mais
o “juiz boca da lei”, é negar uma realidade que, sobretudo com o NCPC, insiste
em permanecer. É claro que o juiz “carimbador maluco” nunca existiu realmen-
te, pois a atividade judicial sempre teimou em exercer um papel que excede
sua missão original. O Poder Judiciário, como produção cultural que é, de um
certo tempo histórico bem denido, acabou se destacando como elemento de
concretização de direitos.5 Daí a necessidade, que se revela sempre atual, de
o que é imediatamente diferente e separável”. Esta é a mágica pela qual Hegel consegue separar
o indivíduo livre das “coisas” em relação às quais ele deve se comportar como proprietário e, ao
mesmo tempo, identicar tais coisas em tudo que é extrínseco “para o espírito livre”, inclusive a
própria força de trabalho (HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da losoa do direito. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 46). Por sua vez, o contrato é a categoria jurídica que – legitimando
a atuação do indivíduo como sujeito de direitos – complementa a base jurídica da modernidade.
O contrato é denido por Hegel com a seguinte armação: “A propriedade, que no que tem de
existência e extrinsecidade já não se limita a uma coisa, mas inclui também o fator de uma vontade
(por conseguinte estranha), é estabelecida pelo contrato” (p. 70). Na relação de troca, segue Hegel,
o contrato é real, porque “cada um dos contratantes constitui a totalidade daqueles dois momentos”,
de aquisição e de alienação de propriedade e, portanto, cada contratante “vem a ser e continua a
ser proprietário” (p. 73). Logo, é o contrato que revela o sentido da propriedade: “o sujeito, que se
apropria das coisas pela exteriorização da sua vontade, apropria-se para a troca”. A relação social
que passa a ser sempre uma relação contratual é, então, relação entre proprietários. E nela “cada
um, por sua vontade e pela vontade do outro, deixa de ser, permanece e torna-se proprietário” (p.
115).
3 Um modelo ideologicamente comprometido com o capital. Como refere Ovídio Baptista: “A marca
registrada do pensamento conservador é justamente a ‘naturalização’ da realidade que ele próprio
elabora, de modo que todo aquele que procura questioná-la torna-se, a seus olhos, ideológico”. No
âmbito do processo “essa naturalização da realidade tem uma extraordinária signicação”, pois “é
através dela que o juiz consegue tranquilidade de consciência, que lhe permite a ilusão de manter-
se irresponsável”. Se o juiz apenas aplica a lei, a injustiça é do legislador, e não dele (BAPTISTA DA
SILVA, Ovídio A. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.
16). Se transportarmos para a realidade atual e amplamente estimulada pelo NCPC, podemos dizer
que o juiz que aplica súmulas está tranquilo, porque não se preocupa com a justiça da sua decisão,
apenas segue a vontade (imposta) do Poder Judiciário de cúpula.
4 ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: a política e a história. Trad. Luz Cary e Luisa
Costa. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 133.
5 Não estou com isso armando o caráter revolucionário do Poder Judiciário. Ao contrário, é nítida
a sua função de conservar o modelo de sociedade que elegemos. Fato é que, notadamente a partir
da segunda metade do século XX, o Poder Judiciário passa a assumir a função de protagonista
na construção de uma espécie de pacto entre o capitalismo e o socialismo. Com isso, sem dúvida,
Valdete Souto Severo

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