As agências reguladoras como meio de ampliação da democracia na prestação dos serviços públicos

AutorMelina Barroggi Philippsen
CargoGraduanda em Direito pela UnB
Introdução

O presente artigo tem por objetivo analisar o direito administrativo e as novas perspectivas a ele impostas por um enfoque setorial, tendo em vista não só as suas influências metajurídicas, como também, e principalmente, a forma como a atual organização administrativa estatal, baseada na intervenção indireta, se relaciona com os princípios constitucionais e democráticos. Faz-se, portanto, uma reflexão acerca das mudanças que o direito administrativo vem sofrendo, em consonância com a constante e complexa transformação da sociedade e o surgimento de novas demandas, que exigem do Estado uma atuação mais dinâmica e eficiente.

Mais especificamente, como se depreende do título, pretende-se analisar a estrutura, formação e atuação das agências reguladoras a partir do ordenamento pátrio, que têm por supedâneo o princípio do Estado Democrático de Direito.

Inicialmente, analisa-se a noção de regulação da economia e a evolução histórica dos modelos de organização estatal, demonstrando-se o desenrolar regulatório até a sua conformação atual, inserido em um contexto de crescente potencialização da diversidade, pulverização do poder e progressiva complexidade social.

Nessa esteira, em um segundo momento, trata-se da criação das agências reguladoras, entidades independentes do aparelho centralizado estatal, com especialização técnica e poder normativo, destinadas a aplicar as políticas setoriais em prol do interesse público juridicamente definido, com o intuito de possibilitar a ampliação do controle e do acesso aos serviços públicos, bem como melhorias em termos de eficiência na prestação desses.

Por fim, discute-se o possível déficit democrático na atuação das entidades autárquicas em comento, bem como são analisados os instrumentos de controle social das agências reguladoras, de forma a se verificar em que medida o modelo adotado no Brasil contribui para a ampliação da participação popular na tomada de decisões por parte das agências.

A regulação estatal da economia

Ao se estudar as agências reguladoras, um termo essencial que necessita ser compreendido é a regulação. Tal expressão pode ser adotada para se referir a diversos temas, possuindo assim um conceito polissêmico, sendo, inclusive, utilizada, muitas vezes, de forma não acurada.

A priori, quando se fala em regulação tem-se em mente a idéia de organização. Com efeito, referida expressão já vem sendo empregada muito antes de se integrar ao Direito. Utilizado freqüentemente no Direito Administrativo, o vocábulo foi importado do inglês "regulation", que, traduzido para a língua portuguesa, seria "regulamentação". Ocorre que, no ordenamento pátrio, tal expressão assume contornos bastante específicos, relacionados à função desempenhada exclusivamente, por determinação constitucional, pelo Chefe do Executivo, ao produzir regulamentos para a especificação dos conteúdos legais e a conseqüente ampliação da eficácia e execução das leis, sem inovar no ordenamento jurídico. Já no sistema norte-americano, "regulation" refere-se a um significado muito mais abrangente e materialmente distinto, sendo, portanto, utilizada, no Brasil, a expressão regulação, para se diferenciar da atividade de regulamentação, descrita sucintamente acima.

Igualmente, assevera Salomão Filho (2001, p. 41) que a palavra "regulação", importada da Economia, se utilizada indiscriminadamente no Direito, pode gerar certa confusão, principalmente ao se referir à regulação tanto quando o Estado desempenha determinadas atividades de gestão, na prestação direta de serviços públicos ou sociais, como quando desempenha função ordenadora, ao disciplinar os comportamentos dos particulares1. Nesse sentido é que Aguillar (1999)2 faz a distinção entre regulação operacional e regulação normativa. A primeira é a prestação dos serviços públicos realizada diretamente pelo Estado, por meio de seus órgãos, entidades ou empresas estatais, como ocorria há poucos anos no Brasil. A segunda é aquela em que a prestação é feita pelo particular, mediante concessão ou permissão, cabendo ao Estado a edição de normas e o controle de tais atividades.

A despeito da nomenclatura supracitada, normalmente fala-se em regulação ligada à idéia de intervencionismo indireto estatal3, ou seja, quando o Estado passa de interventor direto na economia a organizador das relações sociais e econômicas, conforme ressalta Salomão Filho (2001, pp. 14-15), ao dizer que a regulação "engloba todas as formas de organização da atividade econômica através do Estado, seja a intervenção através da concessão de serviço público ou o exercício do poder de polícia". Assim, regulação engloba diversas funções, podendo ser relacionada à atividade ordenadora do Estado, de acordo com a classificação tripartite de Sundfeld4. Por meio dela, a Administração, no intento de promover um equilíbrio entre o livre exercício da atividade econômica e os diversos interesses sociais, estabelece normas e metas a serem atingidas pelos agentes econômicos, bem como exerce a fiscalização e o monitoramento sobre as respectivas atuações.

Dessa forma, considerando as contingentes e variáveis formas de estruturação de cada Estado, pode-se conceituar regulação de maneira bastante próxima daquela definição de administração ordenadora (que também é conexa à noção mais atualizada de poder de polícia), incluindo ainda a regulação dos serviços públicos. Assim, tem-se por regulação a ingerência estatal, seja por via legislativa ou por via administrativa, na esfera privada, de forma a restringir liberdades ou induzir comportamentos dos agentes econômicos, buscando a consecução dos princípios fundamentais e evitando lesões aos interesses socialmente definidos nas constituições.

Nessa seara, parte-se para uma análise do fenômeno da regulação sob uma perspectiva histórica, imprescindível à compreensão completa do fenômeno e à posterior contextualização do surgimento das agências reguladoras.

Já na formação dos Estados Absolutistas, no final da baixa Idade Média, observou-se a redução dos poderes dos senhores feudais e o conseqüente aumento do poder do Rei, o desenvolvimento das atividades comerciais, além da realização de obras de infra-estrutura, transporte e comunicação. A partir desse momento, já se poderia falar genericamente em "regulação", quando o Estado, representado na figura do Rei, adquire o monopólio da produção jurídica. Consoante acentua Aragão (2003, p. 46):

"O poder real era responsável pela prosperidade econômica da nação, inclusive pela subsistência da população. Os seus intendentes, além de impor aos indivíduos rígidas disciplinas de controle de qualidade dos produtos e serviços, assim como da lealdade das transações, zelavam pela melhoria e desenvolvimento das condições econômicas do país."

Não obstante já se vislumbrar atividade regulatória nesse período, o modelo de regulação estatal da economia relaciona-se diretamente com concepção de Estado de Direito, ou seja, pressupõe uma organização em que haja a supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política. Somente dentro de um paradigma em que as instituições e os agentes políticos devam agir dentro de limites jurídicos é que se pode conceber a intervenção estatal por meio da regulação conforme definida acima.

A consolidação do Estado Liberal, forjado pelos ideais iluministas do século XVIII, baseado, ainda que teoricamente, na estrita separação dos poderes, trouxe como modelo de atuação estatal o absenteísmo, sendo a sua função principal a de preservar os direitos individuais e a de garantir a ordem, o cumprimento dos contratos e a preservação da propriedade privada. Defendia-se a livre atuação do mercado, ao qual caberia determinar os rumos da economia, com total desvinculação de qualquer finalidade coletiva. Os terrenos do público e do privado eram sagradamente separados.

O Estado Liberal, apesar da teoria, também foi, a sua maneira, interventor, sendo considerado por Vital Moreira (Aragão, 2003, p. 53) como "o ponto zero de intervenção", na medida em que, consoante leciona Aragão (2003, p. 53):

"(...) o seu escopo, no âmbito econômico era apenas o de auxiliar o bom desempenho das atividades econômicas da classe burguesa, que, por ser a única com voto, tinha integral controle sobre o aparelho estatal; e, na seara social, desempenhava ação meramente voluntarista para melhorar situações individuais de maior gravidade."

Entretanto, o modelo regulador de Estado foi sendo mais bem delineado somente a partir das gradativas conquistas de direitos sociais e políticos5. Na medida em que as diversas classes sociais foram se manifestando e adquirindo espaço nos ordenamentos jurídicos, a insustentabilidade e as iniqüidades geradas pelo dogma do Estado Liberal foram sendo expostas e contestadas. Diante de sérias crises econômicas, políticas, de legitimidade, guerras mundiais, etc., percebeu-se a necessidade de uma regulação exógena, exterior ao campo privado, como condição para o funcionamento da economia e a sobrevivência do sistema. Ademais, com a assunção dos ideais de dignidade da pessoa humana e direitos humanos sociais, entre outros, as sociedades foram, gradativamente, modificando sua estrutura, passando a empenhar-se na busca pelo bem-estar social.

Acrescenta-se, dessa forma, um novo telos ao Estado. Se antes a regulação da economia era apenas de caráter proibitivo, com a assunção de Estados subordinados a constituições democráticas6 abarcadoras dos interesses dos diversos segmentos da população, a atuação estatal passou, conseqüentemente, a também ser voltada para a consecução desses objetivos sociais e coletivos. Assim, nos setores em que a atuação livre do mercado, por si só, não conseguiu atingir os objetivos da política econômica...

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