Norma de competência tributária - e a visão dialógica sobre os atributos de unidade, coerência e consistência do sistema jurídico

AutorTácio Lacerda Gama
CargoDoutor em Direito e Professor da PUC/SP e do IBET.
Páginas62-82

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O ponto de partida deste artigo é a Osuperação da ambigüidade no uso das expressões "ordenamento" e "sistema jurídico". Com um sentido técnico em mão, passaremos a analisar os respectivos atributos de unidade, coerência e completude.1 Tratando de cada um desses pon-tos, teremos a oportunidade de demonstrar a importância da estrutura completa da

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norma de competência para a compreensão dos seguintes temas: (i) fontes do direito tributário; (ii) hierarquia de normas; (iii) conflito entre normas e as formas de solução para esses conflitos; (iv) revogação de normas jurídicas; e (v) anulação de normas. Faremos isso, porém, dialogicamen-te, comentando ora sob a perspectiva de quem participa do sistema - participantes - ora como quem se põe frente ao sistema para descrever e sistematizar o seu objeto - observadores.2

1. Ordenamento, sistema e alguns problemas semânticos

Com o uso da expressão "sistema", pretendemos significar a existência de um conjunto formado por elementos que se relacionam segundo certos padrões de racio-nalidade. Nesse sentido, Lourival Vilanova afirmava que "onde há sistema há relações e elementos, que se articulam segundo leis".3 Por isso, falar em "sistema" é falar na totalidade de elementos, reunidos por uma característica comum e organizados de acordo com certos padrões.

Na Ciência do Direito, o termo "sistema de direito positivo" nomeia o conjunto de normas jurídicas que se vinculam em nexos de coordenação e fundamentação. Esse termo, porém, é ambíguo e, por sugerir a idéia de "racionalidade" e "consistência", acaba sendo utilizado para os mais diversos fins, servindo à legitimação das mais diferentes idéias. Todos falam em nome do sistema com a mesma facilidade com que falam em nome da lógica. Chega a ser insólita a idéia de um sujeito que declare: minha interpretação é sistemática, mas você tem razão. Isso porque todos os que falam em nome do sistema falam, em última análise, em nome da verdade, da validade de suas assertivas.

Esse uso exclusivamente retórico, sem compromisso com qualquer acepção técnica, acabou por ensejar certo desgaste semântico da expressão, tornando-a lugar comum, em meio a expressões vazias de sentido. Desgaste esse denunciado por Norberto Bobbio,4 quando afirmou que o termo "sistema" é utilizado indiscriminadamente, conforme as conveniências de cada intérprete.

O fluxo contínuo da linguagem, porém, não se submete ao controle de quem quer que seja. Seu desenvolvimento se dá como uma instituição formada sob o influxo de fatores culturais os mais diversos. Esse alerta que acabamos de formular serve, apenas e tão-somente, para destacar nossa opção pelo uso técnico do termo. Falaremos de sistema da Ciência do Direito e sistema do direito positivo. Nos dois casos, porém, estaremos nos referindo a um conjunto de proposições, descritivas num caso e prescritivas noutro, que mantêm entre si certas relações. Para o uso pleno desse sentido, porém, façamos outros esclarecimentos, com os quais pretendemos deixar clara nossa posição, distinguindo-a de outras com ela inconfundíveis.

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1. 1 Ordenamento como sinônimo de sistema jurídico

Neste trabalho, tomaremos as expressões "ordenamento jurídico" e "sistema jurídico" como sinônimos perfeitos. Uma e outra servem para designar um conjunto de normas jurídicas válidas em certas condições de espaço e tempo. Sendo essa nossa premissa, não podemos aceitar distinções como aquela proposta por Gregório Robles,5 que reserva significações distintas para as duas locuções. Defende esse autor que "el ordenamiento es el texto jurídico en bruto en su totalidad, compuesto por textos concretos, los cuales son el resultado de decisiones concretas".6 Em relação ao sistema jurídico, sua posição é igualmente clara: "El sistema es el resultado de la elaboración doctrinal o científica del texto bruto del ordenamiento. El sistema implica la ordenación del material jurídico y su interpretación. Es la presentación del derecho de una manera sistemática, con-ceptualmente depurada, libre de contradic-ciones y de ambigüedades".7

Vale dizer: o texto construído a partir da interpretação descritiva do direito positivo seria o "sistema"; antes, porém, desse esforço de construção racional de sentidos, existiria apenas aquilo que se chama ordenamento jurídico, texto bruto.

A despeito da sua força didática, e apesar da importância atribuída à atividade definidora e sistematizadora do cientista do direito, aquilo que propõe é incompatível com a premissa que fixamos para desenvolver este trabalho. Atribuir aos produtores do "sistema" o monopólio da racionalidade no direito é qualificar de irracionais as decisões proferidas pelos órgãos do "ordenamento".

Contra esse entendimento, sustentamos existir racionalidade e sistematicidade tanto no chamado sistema, que é domínio da Ciência do Direito, quando no direito positivo, que é o campo do ordenamento jurídico. Nessas duas hipóteses, o produto da interpretação varia, pois na Ciência se produzem proposições descritivas e no direito positivo se produzem normas. Em ambos, porém, há esquemas racionais que determinam como se dá a relação entre as proposições. Justificamos, assim, o porquê de não acatarmos a distinção entre ordenamento e sistema, exposta acima de forma clara e didática.

1. 2 Análise sincrônica e diacrônica do sistema jurídico

Os fenômenos de linguagem podem ser sincrônicos ou diacrônicos, segundo Oswaldo Ducrot e Tzvetan Todorov, quando, respectivamente, "os elementos e fato-res que emprega pertencem a um único e mesmo momento de uma única e mesma linguagem"8 ou "quando faz intervir elementos e fatores pertencentes a estados de desenvolvimento diferentes de uma mesma língua".9 Como explicam esses autores, não há, propriamente, fenômenos diacrônicos ou sincrônicos, mas sim uma perspectiva distinta para estudar o mesmo fato: a linguagem.10 Na primeira, o fenômeno é analisado sem o transcurso do tempo. Na outra, o mesmo fenômeno é analisado com o auxílio da sucessão de momentos distintos.11

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Aceita a premissa de que um conjunto de normas jurídicas é, também, um conjunto de fenômenos lingüísticos, podemos examiná-lo sob as perspectivas sincrônica e diacrônica. E, intuitivamente ou não, costumamos desenvolver com intensida-des diferentes as duas formas de estudo. São exemplos de investigação diacrônica os capítulos dedicados à "evolução histórica" de um determinado instituto jurídico. As percepções sincrônicas, por sua vez, consideram as normas jurídicas válidas num determinado momento histórico, abstraindo-se a sucessão do tempo. Em quaisquer dessas perspectivas, segundo a premissa que adotamos, o que se analisa é o único e mesmo sistema jurídico.

"Ordenamento" e "sistema" significariam, sob este ponto de vista, realidades distintas, construídas a partir de observações dinâmicas e estáticas. Carlos E. Al-chourron e Eugenio Bulygin esclarecem que "llamaremos ordenamiento al conjunto formado por todos los enunciados válidos conforme a un cierto criterio de identi-ficación. La unidad del ordenamiento está dada por el criterio de identificación".12 Já o sistema jurídico é assim definido pelos citados autores: "En este sentido los sistemas normativos son relativos a un momento cronológico dado: son sistemas momentáneos".13 Reconhecemos que a distinção é útil e didática, especialmente quando põe no centro das atenções o fato de o conjunto das normas jurídicas poderem ser analisadas sob diferentes perspectivas.

Esses pontos de vista, por sua vez, são igualmente relevantes para compreender as duas formas fundamentais de relacionamento entre as normas. A análise sincrônica do sistema jurídico possibilita a verificação da compatibilidade entre normas que se relacionam em nexos de subordinação e derivação. Mediante a abstração do tempo, é possível saber qual norma fundamenta a validade de outra e se há compatibilidade entre norma superior e inferior. Noutras palavras: a análise sincrônica é o que possibilita aferir se a norma inferior foi produzida de acordo com a norma superior.

Já a observação diacrônica torna possível perceber a relação entre normas que entram no sistema de direito positivo em momentos distintos. As relações de coordenação possibilitam a compreensão das normas no curso do tempo.

Num e noutro caso, porém, o que se analisa é o Sistema Jurídico, seus elementos e relações. Daí por que não adotamos nomes distintos para...

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