A Competência Constitucional dos Estados em Matéria de Procedimento (Art. 24, XI, da CF): Ponto de Partida para a Releitura de Alguns Problemas do Processo Civil Brasileiro

AutorFernando da Fonseca Gajardoni
CargoDoutor e mestre em Direito Processual (FD-USP). Professor-doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP-USP)
Páginas20-32

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Apesar da manutenção da competência privativa da União para legislar sobre processo (art. 22,I, da Constituição Federal, que ainda acresceu ao caput do dispositivo a expressão exclusivamente não constante da Constituição Federal de 1967), o art. 24 da Constituição Federal de 1988 - que trata da competência concorrente da União, dos Estados federados e do Distrito Federal (excluídos os Municípios) - estabelece em seu inciso XI que compete a todos eles legislar sobre procedimentos em matéria processual, algo que, sem representar retorno à autonomia estadual para legislar sobre processo (existente na CF/1891), efetivamente foi novidade no âmbito da Carta Constitucional de 1988, já que a separação entre processo e procedimento sequer foi cogitada nas cartas constitucionais anteriores.

A opção do constituinte de 1988 em permitir aos Estados-membros e ao Distrito Federal que legislem sobre procedimento em matéria processual deve-se ao fato de que, com as dimensões

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continentais de nosso país e as diferenças regionais gritantes, o re-gramento genérico emanado pela União haveria de ser compatibili-zado às realidades locais pela lei estadual ou distrital, tudo em prol da sua ideal aplicação1

Contudo, por razões que veremos adiante, passado mais de vinte anos de vigência da CF/1988 não se tem notícia de Estado que tenha efetivamente legislado sobre procedimento processual2, de modo que os problemas do processo civil brasileiro - boa parte deles situada no procedimento, e não propriamente no processo -continuam a receber inadequado tratamento uniforme pelo legislador federal.

O presente estudo objetiva esclarecer esta questão e demonstrar que, além da renúncia a uma competência legislativa que lhe é própria, os Estados brasileiros submetem-se a um federalismo torto, fomentado pela constante invasão do legislativo federal em sua alçada (principalmente nas normas procedimentais), em movimento que se costumou nominar como Io, 2o e 3afase das reformas do Código de Processo Civil.

2. Repartição vertical de competência legislativa e regras de compatibilização

Em matéria de competência concorrente os parágrafos do art. 24 da Constituição Federal estabelecem que a União limitar-se-á ao estabelecimento de normas gerais (§ Io), prerrogativa esta que não exclui a competência complementar dos Estados e do Distrito Federal no estabelecimento, também, destas normas gerais (§ 2o). Não existindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão competência legislativa plena (competência supletiva) (§ 3o), cujo produto terá sua vigência suspensa em caso de superveniência de lei federal sobre normas gerais em sentido contrário (§ 4o). E mesmo que haja normas gerais sobre o assunto editadas pelo poder central, compete aos Estados e ao Distrito Federal a edição de normas específicas, detalhadas, minuciosas, hábeis a particularizar e adaptar a matéria de sua competência à realidade regional (competência suplementar).

Quanto à edição de normas processuais, portanto, não há dificuldade alguma: só à União é lícito legislar (art. 22, I, da CF).

Mas no que toca ao procedimento em matéria processual, como se trata de repartição vertical desta competência entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24, XI, da CF), as seguintes são as conclusões: a) a União só pode editar normas gerais em matéria de procedimento, isto é, legislação fundamental, competindo aos Estados e Distrito Federal a edição de normas suplementares, exclusivamente com o propósito de atender às particularidades regionais; b) quedando-se omissa a União na edição destas normas gerais - e não há necessidade de que os outros entes políticos aguardem qualquer prazo para elaboração destas normas, ou interpelem a União para isto - a competência dos Estados federados e Distrito Federal no tocante ao procedimento é plena, isto é, podem editar leis gerais e particulares para valerem em seu território, sempre condicionadas às peculiaridades locais3; e c) todavia, na superveniência de lei federal geral sobre procedimentos em matéria processual, as normas gerais editadas pelos Estados e Distrito Federal - mas não as específicas que atendem às particularidades locais - terão sua vigência suspensa no que contrariarem as regras genéricas impostas pela União4, de modo que se pode dizer estarem elas sujeitas a condição resolutiva (até a vigência de lei federal superveniente).

A grande dificuldade do tema, contudo, não se encontra propriamente na interpretação dos dispositivos constitucionais que tratam da competência para legislar sobre processo ou procedimento, que pelo visto não demandam maiores divagações.

O tormento do intérprete - e não encontramos quanto a isto trabalhos de fôlego mesmo após 20 anos da vigência da Constituição Federal de 1988 - é na definição, primeiro, de quais normas seriam processuais e quais seriam as normas procedimentais em matéria processual - consequentemente definindo a competência privativa da União sobre as primeiras e a concorrente em relação às outras - e depois, já estabelecidas quais são as normas processuais e quais são as procedimentais, saber quais destas últimas são genéricas (de competência da União) e quais são particulares (de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal)5.

3. Processo e normas processuais

O processo é entidade complexa, pode ser encarado em acep-

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ção ampla ou formal e restrita ou substancial. Na primeira, abrange qualquer combinação de atos tendentes a uma finalidade conclusiva, conceito, portanto, equivalente ao de procedimento6. Na segunda acepção, mais técnica, processo é o instrumento pelo qual o Estado exerce a jurisdição, o autor o direito de ação e o réu o direito de defesa, havendo entre seus sujeitos (partes e juiz) uma relação jurídica diversa da relação jurídica de direito material: a relação jurídica processual7.

Com efeito, além da faceta organizacional do processo e dos atos processuais (o procedimento) - mais simples ou mais complexa a depender do caso concreto -, no âmbito do processo há também uma relação que une entre si os sujeitos processuais (partes, juiz, advogados, auxiliares da justiça), impondo-lhes deveres, direitos, ônus e sujeições, relação esta autônoma à de direito material e que, como tal, deve ter regras próprias (relação jurídica processual).

Às normas que disciplinam esta segunda faceta do processo (relação jurídica processual), que cuidam dos princípios e das disposições destinadas a possibilitar a administração da justiça, emprestamos a natureza de normas puramente processuais ou normas processuais stricto sen-su8. São elas as que regulam a atu-ação dos sujeitos processuais: partes (ônus, deveres, obrigações, faculdades etc.), juiz (competência, poderes etc.) e auxiliares (atribuições); a capacidade e modo de exercer o direito de ação (condições da ação, pressupostos processuais, intervenção de terceiros); a maneira de se postular ou se defender em juízo (petição inicial, respostas, provas, recursos e outros meios de impugnação etc.); ou os efeitos da prestação dajurisdi-cional (eficácia da sentença e coisa julgada)9.

São normas puramente processuais - e, portanto, de competência privativa da União (art. 22, I, da CF) - todas aquelas relacionados à gênese da relação jurídica processual, como jurisdição, ação, defesa e contraditório10, entre as quais se inclui a definição da capacidade e legitimação das partes, a disciplina da prova, dos efeitos da sentença e da coisa julgada11.

Mesmo as normas puramente processuais, entretanto, não dispensam regras procedimentais respectivas, condição essencial de funcionalidade daquelas12. É um erro comum e muitas vezes cometido a separação absoluta que é feita entre processo e procedimento, consequentemente entre normas processuais e normas procedimentais, como se o ato processual pudesse sobreviver sem procedimento que lhe dê forma13. Mesmo os institutos previstos nas normas puramente processuais demandam disciplina procedimental, algo que só pode ser feito por normas procedimentais.

Há, portanto, como veremos a seguir, dois tipos de normas procedimentais: a) as puramente procedimentais (aquelas idealizadas a reger o procedimento processual estritamente considerado, isto é, a combinação dos atos processuais entre si e sua relação); e b) as normas acidentalmente procedimentais (idealizadas a disciplinar o procedimento para a realização dos institutos contemplados nas normas processuais).

4. Procedimento e normas procedimentais

Na linguagem comum se usam, com frequente promiscuidade, os termos processo e procedimento, designações que efetivamente não se confundem14.

De acordo com João Mendes de Almeida Júnior, citado por quase todos aqueles que se dedicam ao estudo do procedimento15, enquanto o processo é uma dire-ção no movimento, o procedimento é o modo de se mover e a forma em que é movido o ato. O processo é o movimento em sua forma intrínseca; o procedimento é o mesmo movimento em sua forma extrínseca16, tal como se revela aos nossos sentidos17.

O procedimento é, por isto, o processo em sua dinâmica, o modo pelo qual os diversos atos se relacionam na série constitutiva do processo, representando o modo do processo atuar em juízo (seu movimento)18, pouco importando a marcha que tome para atingir seu objetivo final - que pode ser uma sentença declaratória, constitutiva, desconstitutiva ou conde-natória (processo de conhecimento), a apuração do quantum...

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