A aplicação judicial do direito da previdência social e a interpretação perversa do princípio constitucional da precedência do custeio - o argumento Alakazam

AutorJosé Antonio Savaris
CargoDoutor em Direito da Seguridade Social pela Faculdade de Direito de São Paulo (USP)
Páginas281-313

Page 283

Introdução

A aplicação do Direito da Previdência Social que não leva em conta a dimensão real do problema concreto que reivindica solução culmina por prender o sistema previdenciário em uma lógica formal e insensível às diversas particularidades do caso.

A subsunção custa à própria efetividade do sistema previdenciário, mina a sua razão de ser, coloca em risco a vida humana que se presume desprovida de recursos para sua subsistência.

Por tal razão as principais proposições deste trabalho emanam da perspectiva metodológica que, não confundindo o Direito com um sistema de normatividade jurídica, percebe a decisão judicial como uma atividade realizadora do Direito1. Em outras palavras,

Sabemos que a realização concreta do direito não se confunde com a mera aplicação de normas pressupostas, embora possa ter nessas normas os seus imediatos critérios. E não se confunde com essa mera aplicação, mesmo quando tenha em normas pressupostas o seu critério, porque na pro-blemático-concreta realização do direito concorrem momentos normativo-constitutivos [...] que a convo-lam da mera aplicação de normas para uma verdadeira criação (constituição) de direito, posto que no quadro vinculante do direito vigente2.

Page 284

O presente texto destina-se a marcar um ponto fundamental para a aplicação judicial do direito previdenciário: Se em determinado caso-problema a aplicação do sistema normativo culmina com uma decisão judicial em concreto que reconhece a existência de direito à prote-ção previdenciária não previsto textualmente pela legislação, é necessário compreender que tal aplicação judicial do Direito nada mais está a fazer do que determinar o conteúdo da norma jurídica, constituindo-a no caso concreto.

Se assim se passam as coisas, não há sentido em identificar no princípio constitucional da precedência do custeio óbice para uma tal incensurável atuação jurisdicional3. Nada obstante, uma equivocada interpretação desse postulado constitucional sustenta a tese de que a decisão judicial que aplica o Direito em um caso concreto sem expresso amparo na legislação previdenciária está a criar ou majorar um benefício previdenciário, violando o princípio da precedência do custeio e, por tal razão, ameaçando a sustentabilidade da Seguridade Social.

Como essa tese - de tão repetida - acabou por encontrar acolhida em precedente do Supremo Tribunal Federal, transformou-se em grande trunfo contra o trabalho de desenvolvimento judicial do direito previdenciário.

A motivação para a elaboração do presente artigo surge justamente nesse contexto: Uma interpretação sem qualquer consistência teórica desvirtua o sentido de tão relevante postulado constitucional e se presta como invencível argumento contra o legítimo e necessário apri-moramento judicial do sistema normativo previdenciário.

Page 285

Para a análise do tema, inicialmente dedicou-se estudo ao princípio constitucional da precedência do custeio, às leituras que dele são feitas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de como logrou transformar-se em uma formulação mágica que se acredita hábil a levar cativa toda tese que se apresente reconhecedora de direitos previ-denciários quando não assegurados com todas as letras pela legislação.

Na sequência examina-se o destinatário do comando constitucional da precedência do custeio para, na parte final, sustentar a ausência de pertinência jurídica entre essa norma constitucional e a tradicional jurisprudência de desenvolvimento do direito previdenciário.

1. O princípio da precedência do custeio em seu contexto constitucional

Mercê do ideal hospedado no princípio da universalidade de cobertura e de atendimento, tão peculiar a um sistema de Seguridade Social e reconhecido de modo expresso pela nossa Constituição da República (artigo 194, inciso I), o Constituinte cuidou de fundar as diretrizes gerais e os meios necessários para a consecução desse objetivo fundamental.

O financiamento de tão ambicioso modelo de proteção social passou a ser regido pelo princípio diversidade da base de financiamento (CF/88, artigo 194, inciso VI) - ou princípio da universalidade do custeio (CF/88, artigo 195, caput)4. Mas esse objetivo de assegurar a cobertura

Page 286

e o atendimento de modo economicamente sustentável - garantindo a satisfação das necessidades sociais da presente geração e das futuras -somente é alcançável se a política pública de Seguridade Social for desenvolvida com olhos voltados a dois outros princípios constitucionais: o princípio da primazia da proteção social e o princípio da precedência do custeio.

Mais especificamente, a produção do Direito em matéria de Seguridade Social deve orientar-se pela ideia de que "a lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I." (CF/88, artigo 194, 4o). Se houver (negativo) desequilíbrio entre receitas e despesas orçamentárias - no presente ou projetado para o futuro -, a solução constitucional será a de reordenação do financiamento, com vistas à manutenção ou extensão da Seguridade Social. É preciso notar nessa norma constitucional algo de fundamental para a compreensão de nosso sistema de segurança social: eventual déficit orçamentário não deve ser resolvido - como nos faz pressupor a trajetória recente das reformas previdenciárias restritivas - pela redução do nível de proteção, com os cortes de despesas correspondentes. Antes, o que se tem é a verdadeira primazia da proteção social, ou melhor, da manutenção do nível de segurança social. O objeto de uma eventual necessária alteração, nessa perspectiva, residiria nas fontes de custeio. Isso de um lado.

Outra lógica norteadora do sistema constitucional de financiamento da Seguridade Social consiste no tradicional princípio da precedência do custeio, segundo o qual "nenhum benefício ou serviço da Seguridade Social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total" (CF/88, artigo 195, §5°).

Tradicional, com efeito, porque desde a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) já se expressava a justificável preocupação com a

Page 287

questão do equilíbrio econômico do sistema de proteção social5. Em verdade, o ideal de equilíbrio orçamentário das contas públicas se fazia presente de modo marcante ainda na década de 1930, pois "De Castilho a Borges de Medeiros e deste ao primeiro Vargas, a austeridade no trato das finanças públicas e o lema 'nenhuma despesa sem receita' eram tomados como 'título de honra' das administrações republicanas" (BOSI, 2008, p. 293).

Destinado a coibir o legislador ordinário de instituir desordenadamente novos benefícios de modo a afetar a estrutura do sistema pre-videnciário (MARTINEZ, 2001, p. 147), o princípio da precedência do custeio passou a integrar o artigo 103 da Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS, aprovada pelo Decreto n° 77.077/76, e o artigo 94 da Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS, aprovada pelo Decreto n° 89.312/846.

Page 288

O reconhecimento da importância do princípio da precedência do custeio para a sustentabilidade econômica do sistema de proteção social conduziu-o à constitucionalização por meio da Emenda Constitucional n° 11/65, que acrescentou o parágrafo segundo ao artigo 157 da Constituição de 19467.

Mediante o princípio da precedência de custeio objetiva-se, com efeito, prevenir riscos capazes de afetar o equilíbrio das contas do sistema de Seguridade Social. Daí a razão de condicionar-se a legitimidade da (geração de despesas mediante) criação, majoração ou extensão de benefícios ou serviços à demonstração da origem dos recursos para seu custeio (ou à preexistência da respectiva fonte de custeio total)8.

Por essa mesma razão o princípio da precedência do custeio foi reproduzido pela Lei de Responsabilidade Fiscal9, diploma legal que, acrescente-se, estendeu a lógica da imprescindibilidade prévia do financiamento para todos os atos ("lei, medida provisória ou ato administrativo normativo") que criarem ou aumentarem despesa pública obrigatória de caráter continuado a ser executada por qualquer ente da Federação (Lei Complementar n° 101/2000, art. 17, caput e parágrafo primeiro).

Compreende-se, assim, como os princípios da primazia da proteção social (CF/88, artigo 194, 4o) e da precedência do custeio (CF/88,

Page 289

artigo 194, 5o) servem de diretriz fundamental para os formuladores da política pública de Seguridade Social. Mais do que isso, esses princípios se aperfeiçoam reciprocamente para assegurarem o equilíbrio financeiro e atuarial do orçamento da Seguridade Social (valor-meio)10, com vistas à manutenção da operacionalidade ou extensão do campo de proteção social (valor-fim)11.

2. O princípio da precedência do custeio e a leitura pretoriana da causa suficiente

Desde o início da década de 1990, a Suprema Corte entendia que a lógica contida no artigo 195, 5o, da Constituição da República consagrava a necessidade de correlação entre, de um lado, contribuições e, de outro, benefícios e serviços da Seguridade Social.

Page 290

Segundo esse entendimento, se é verdade que nenhum benefício pode ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio, também não poderia haver elevação das contribuições sociais para a Seguridade Social sem causa suficiente, isto é, sem que fosse necessária para o custeio ou extensão da seguridade social12.

A mesma orientação foi assumida no julgamento da Ação Dire-ta de Inconstitucionalidade n°...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT