Mudança de jurisprudência no supremo tribunal federal e violação da segurança jurídica

AutorMarina Vieira de Figueiredo
CargoMestranda em Direito Tributário na PUC/SP. Professora do COGEAE/SP e do IBET.
Páginas223-234

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1. Introdução

Analisando as recentes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, o que se verifica é a constante alteração de posicionamento em relação a importantes temas tributários como, por exemplo: direito ao crédito de IPI decorrente da aquisição de matéria-prima com entrada isenta, não tributada ou sujeita à alíquota zero; ilegalidade da contribuição ao INCRA; subsistência do crédito-prêmio de IPI, entre outros.

Ocorre que, como regra, a modificação de um precedente desses tribunais acaba refletindo nos julgamentos dos órgãos jurisdicionais que lhe são hierarquicamente inferiores. Ou seja, suas decisões acabam produzindo, direta ou indiretamente, efeito erga omnes.

Não há dúvida quanto à possibilidade de alteração de posicionamento pelos órgãos jurisdicionais, especialmente os Tribunais Superiores (STF e STJ). Contudo, é de fundamental importância delimitar quais os efeitos jurídicos dessas mutações e os instrumentos oferecidos pelo próprio direito para evitar que violem a segurança jurídica. Este é o objetivo deste estudo.

2. O princípio da segurança jurídica
2. 1 Uma definição para o conceito de segurança jurídica

Num texto que se pretenda científico, determinar o sentido1 em que as palavras

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são empregadas é expediente de fundamental importância, pois delimita o objeto de nossos estudos.

Como já anotamos, nosso objetivo, aqui, é determinar em que medida podem ser alterados os entendimentos jurispru-denciais sem violar o princípio da segurança jurídica. Portanto, é imprescindível fixar o sentido em que utilizaremos a expressão princípio.

Adotando a distinção preconizada por Paulo de Barros Carvalho, partimos da premissa segundo a qual o vocábulo "princípio" pode ser utilizado para designar limites objetivos ou valores, sendo o grau de objetividade das proposições que veiculam o critério para diferenciá-los.2 O significado de um valor está condicionado à subje-tividade do intérprete,3 sendo um juízo de preferibilidade de cunho subjetivo; o conteúdo dos limites objetivos, em contrapartida, é construído a partir de parâmetros bem demarcados, objetividade esta que permite sejam identificados de plano os casos de violação.

Os princípios, veiculando valores ou limites objetivos, nada mais são do que enunciados que auxiliam na conformação das normas de competência4 e guiam o hermeneuta na compreensão dos demais enunciados prescritivos.

Dentre os princípios que compõem o ordenamento jurídico, um dos que possui maior relevância é o princípio da segurança jurídica. Apesar de não existir dispositivo que a ele se reporte expressamente,5 sua

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formulação pode ser inferida a partir da conjugação do conjunto de enunciados normativos que garantem aos administrados que as relações jurídicas serão preservadas na forma prescrita na lei.6 Como ressalta Paulo de Barros Carvalho, o princípio da segurança jurídica é "dirigido à implantação de um valor específico, qual seja o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentimento de pre-visibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direito se realiza".7

Gustavo Sampaio Valverde, adotando posicionamento semelhante, afirma que: "(...) o princípio da segurança jurídica pode ser compreendido como uma meta-comu-nicação do sistema jurídico que visa assegurar a estabilização das expectativas normativas em torno das comunicações que o integram. (...) Portanto, uma vez selecio-nada determinada expectativa pelo direito, o princípio da segurança jurídica obsta que essa expectativa venha a ser alterada pelo próprio direito, o que desacreditaria suas estruturas".8

De fato, o ordenamento jurídico, como conjunto de regras, comunica aos seus destinatários os padrões de conduta que devem9 ser observados, independentemente de sua vontade.10 O valor segurança jurídica, por outro lado, lhes dá a certeza de que essa regulação irá prevalecer como descrita na norma impositiva. Impõe, sobretudo, o arranjo do sistema de tal forma que deixe os particulares tranqüilos para conduzirem suas ações.

Tratando da segurança jurídica, Pontes de Miranda é enfático ao destacar que: "O que é preciso é que vigore determinado sistema jurídico e haja a convicção de que será aplicado nos casos particulares, pois é isto o que dá a segurança jurídica. (...) Não se trata de princípio independente: envolve o 'deve' e constitui a conclusão prática, a que chegaremos, sempre que atendermos à essencialidade do direito para a vida social e à necessidade de se realizar nos fatos (que são o concreto, o particular) o geral e abstrato, que é o sistema. Se a solução é imprevisível, é que não há sistema, mas variação ou, pelo menos, incerteza e vacilação".

Segue afirmando que "na previsibili-dade estão implícitas a aplicabilidade geral e efetiva, a continuidade da legislação, a irretroatividade, e não faltam outros requisitos, que se poderiam lembrar".11

A segurança jurídica se consuma, portanto, quando as soluções a serem aplicadas ao caso concreto são esperadas.12

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2. 2 Limites objetivos voltados à implementação do valor Segurança Jurídica

O princípio da segurança jurídica, enquanto valor que projeta efeitos sobre todo o sistema jurídico, assume a condição de garantia do contribuinte.

Um dos principais instrumentos de manutenção da segurança jurídica é o princípio da irretroatividade, segundo o qual "as leis não podem retroagir, alcançando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" (art. 5o, XXXVI, da CF/ 1988). Em outras palavras: por força desse limite objetivo, as normas jurídicas não podem retroagir para atingir fatos anteriores a sua entrada no sistema, de forma que os vínculos já estabelecidos não sejam abruptamente alterados.13

Surge, assim, como importante fator de equilíbrio das relações sociais, pois, na falta de comando desta natureza, estaria a sociedade sempre sujeita a novos conflitos, resultantes de discussões já definitivamente extintas.

Tal é a sua relevância que o constituinte optou por consagrá-lo novamente no art. 150, III, alínea "a", da Carta Magna, dentro do capítulo que trata do Sistema Tributário Nacional.14

3. A possibilidade de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em controle concentrado

Outro limite voltado à preservação da segurança jurídica é aquele consagrado no art. 27 da Lei n. 9.868/1999 que, ao reger o controle concentrado de constitucionalida-de, deu liberdade ao Supremo Tribunal Federal para a escolha do momento inicial dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade: "Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

A regra, portanto, é a produção de efeitos ex tunc. Contudo, permite-se que o Supremo Tribunal Federal estabeleça a irretroatividade de suas decisões, se presentes razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social. Ou seja, caso se verifique iminente violação à segurança jurídica, com inegável prejuízo social, pode optar este E. Tribunal por preservar a estabilidade das relações.

Por outro lado, quando o Estado-juiz exerce o controle de constitucionalidade de uma norma, deve levar em consideração que, até que seja declarada inconstitucional, ela é presumidamente válida, pois guarda relação de pertinencialidade com o sistema. Esse fenômeno ocorre no momen-

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to em que ela chega ao conhecimento de todos os cidadãos,15 ao menos por presunção, por meio da publicação pelo canal adequado.16 Passa a existir, como se constitucional fosse, regulando comportamentos sociais de forma coercitiva, até que o próprio sistema decida retirar sua vigência ou mesmo sua validade.

Nesta qualidade, irradia efeitos, fazendo irromper relações jurídicas que, por sua vez, a depender das características apresentadas, podem reclamar tratamento diferenciado.17 Embora os vícios de in-constitucionalidade representem, eles pró-prios, uma violação aos direitos e expectativas dos administrados, é forçoso concluir que, em determinados casos, esses valores são sobrepujados por outros de maior envergadura. Tudo, repita-se, para preservar a coerência do sistema.

Ademais, importa destacar que o exercício da atividade jurisdicional sempre tem como resultado a produção de outras normas, que podem ser gerais ou individuais (mas sempre concretas).

Ajurisprudência, portanto, não mais é do que um conjunto de enunciados prescritivos que integram o ordenamento jurídico. Nesta condição, a ela se aplica também o princípio da irretroatividade, quando o objetivo é priorizar a segurança jurídica...

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