Interdependência entre estados e cooperação monetária internacional: Uma visão da teoria dos jogos

AutorGustavo Favaro Arruda - Milton Barossi Filho
Páginas194-208

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1. Introdução

A utilização da teoria dos jogos na modelagem e interpretação de problemas nas áreas de Direito e Economia vem se tornando freqüente. Embora a influência desse instrumental analítico seja mais disseminada à solução de problemas de natureza econômica, uma simbiose, mais recente, entre Economia e Direito tem levado também ao uso da teoria dos jogos à solução de problemas de natureza jurídica.

Dentre as várias áreas do direito que podem ser modeladas com o auxílio das ferramentas providas pela teoria dos jogos, destacamos neste artigo um problema clássico em Direito Internacional: a cooperação monetária entre Estados soberanos e a crise de endividamento externo dos anos 1970/1980.

Para tanto, discorremos, em um primeiro momento, sobre o ambiente econômico e as relações jurídicas internacionais que permearam a origem, o desenvolvimento e o encerramento dessa crise durante as três últimas décadas do século XX.

Na seqüência, aplicamos a esta situação alguns conceitos de teoria dos jogos, com o objetivo de compreender a lógica do processo decisório dos vários agentes internacionais que se relacionaram à época, especialmente a lógica dos credores.

A escolha do caso justifica-se por expressar com clareza a interdependência mútua das decisões tomadas pelos atores de direito internacional atualmente. Afinal, em um mundo globalizado, as economias estão cada vez mais entrelaçadas, os intercâmbios sócio-culturais mais intensos e os fluxos de comércio e de capital, mais volumosos.

Assim, em âmbito internacional, há uma "dependência mútua"1 e crescente entre os diversos agentes, ou seja, há uma

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probabilidade crescente de que uma mudança realizada em um local produza uma mudança previsível e crível em outro. Dessa forma, decisões tomadas em um segmento do planeta rapidamente afetam os demais, positiva ou negativamente. Com a aplicação da teoria dos jogos, podemos verificar como essas situações podem ser compreendidas de forma mais adequada.

2. Interdependência entre Estados e cooperação

Historicamente, a cooperação entre Estados soberanos pode ser observada há muitos séculos. No entanto, essa cooperação internacional somente toma forma com o surgimento e o fortalecimento de normas internacionais, fenômeno que vem sendo chamado por alguns de globalização jurídica.2 Através de tratados internacionais, os Estados têm conseguido garantir a cooperação, criando mecanismos para que a mesma se desenvolva. Isso tem resultado em uma institucionalização crescente da interdependência internacional, com regulamentações cada vez mais profundas nas mais diversas áreas, como nos Direitos Humanos ou no Direito Ambiental.

Expressão máxima dessa institucionalização é a criação de organizações internacionais, através das quais os Estados se unem para atingir objetivos comuns. Transcende os objetivos deste trabalho a investigação sobre os tipos de organizações internacionais e os demais motivos que justificam a criação das mesmas. Por ora vamos nos ater ao campo econômico e financeiro internacional, especificamente no que é regulado, desde 1944, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).3 "O FMI teria assim surgido do reconhecimento da necessidade de uma ação coletiva global para alcançar a estabilidade econômica, da mesma forma que a ONU fora fundada na crença de que uma ação coletiva era necessária para obter a estabilidade política."4

Com o tempo, no entanto,, o FMI passou a assumir também a função de gestor das crises financeiras internacionais, fornecendo empréstimos para Estados em dificuldades, sobretudo para os países em desenvolvimento. De acordo com Chantal Thomas, "inthe 1970s, the IMF's role shif-ted from its early postwar function as ar-biter of the international monetary system, to functions as lender and adviser to deve-loping countries. This identity shift arose from the abandonment by industrialized country governments of fixed exchange rates, and the widespread continuation of fixed or pegged exchange rate regimes by developing countries. The shift also arose because developing country governments experienced chronic balance-of-payments difficulties throughout the 1970s".5

Como verificamos a seguir, esse fenômeno está inserido em um processo de cooperação internacional não apenas entre Estados através do FMI, mas substancialmente entre o FMI e os atores privados do mercado financeiro internacional. Tentamos elucidar, com o auxílio da teoria dos jogos, o fenômeno da cooperação monetária internacional. Antes, porém, situamos o leitor, acerca do problema do endividamento externo dos Estados, em uma perspectiva histórico-econômica.

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2. 1 O endividamento externo em uma perspectiva histórico-econômica

O processo de endividamento externo dos países em desenvolvimento reporta-se, substancialmente, ao início do século XX. No entanto, episódios recentes, ocorridos nas décadas de 1970 e 1980 são de fundamental relevância ao escopo analítico deste trabalho. Assim, vamos focar a discussão em eventos mais recentes, sem a perda de prováveis generalizações para quaisquer outros períodos.

O primeiro aspecto relevante refere-se à estrutura dos mecanismos de concessão de empréstimos e financiamentos a tesouros nacionais. Há uma nítida migração de cláusulas com correção do principal, referenciadas em taxas de juros fixas, nas décadas anteriores aos anos 1960, para uma nova realidade, de taxas de juros flutuantes, posteriormente. Essas práticas tornaram-se usuais em empréstimos concedidos ao governo brasileiro já no período do milagre econômico.6 Do ponto de vista financeiro, a prática de taxas de juros flutuantes na capitalização dos empréstimos oficiais concedidos por bancos estrangeiros insere um elemento de risco adicional a ser ge-renciado pelo devedor.

Neste contexto de sofisticação de riscos, dois episódios são fundamentais: primeiro, o final da conversibilidade da moeda norte-americana, o dólar, em ouro em 1971.7 Em seguida, em 1973, a ocorrência do primeiro choque do petróleo, conseqüência da decisão dos países produtores de elevar o preço internacional do produto em quatro vezes, através do exercício do poder de mercado por eles detido.

A esses dois episódios fundamentais, adicionam-se fatos do ano de 1973, como o ritmo de crescimento mundial elevado e o excesso de liquidez dos mercados financeiros internacionais, face ao aumento dos gastos públicos norte-americanos com a Guerra do Vietnã e à crescente saída de recursos em dólares dos EUA, dada a desvantagem desse país na balança de comércio internacional.

Portanto, em termos estáticos, a economia mundial já estava aquecida e com grande liquidez, quando sobreveio o choque do petróleo, que reforçou essa situação de elevada liquidez no sistema, ao longo do tempo. Para a economia brasileira, essas circunstâncias revestem-se de suma importância por duas razões: a economia nacional encontrava-se aquecida; e a elevada liquidez no mercado financeiro internacional, reforçada pelos petrodólares acumulados pelos países exportadores de petróleo e depositados em bancos europeus e norte-americanos, era uma alternativa tentadora ao financiamento do crescimento a partir de meados da década de 1970.8

As informações contidas na Tabela 1, demonstram que a economia brasileira estava em uma fase de crescimento acelerado nos fins dos anos 1960 e no início dos anos 1970. A taxa média de crescimento do PIB foi de 11,2% entre 1968 e 1973, portanto, muito acima das médias calculadas para qualquer outro período em nossa história econômica. O cenário ainda se completa por elevadas taxas de investimento, medidas em termos proporcionais

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ao PIB,9 taxas de juros internacionais muito baixas, principalmente nos EUA, e condições externas favoráveis, verificadas por desempenhos do saldo em conta corrente e estoque de dívida externa total em cres-cente estável. Portanto, o primeiro choque de preços do petróleo, ocorrido em fins de 1973, encontra a economia numa situação de crescimento e investimento acelerados.

[VER PDF ADJUNTO]

Embora esse episódio fosse o suficiente para alterar as condições econômicas em nível internacional, o Brasil não opta por ajustar a economia. Pelo contrário, o governo decide reforçar a disposição em continuar investindo10 aos mesmos níveis verificados no início da década, como forma de manter as taxas de crescimento em patamares bem acima da média internacional.11

Além disso, o comportamento das variáveis externas, não foi favorável. O saldo em conta corrente salta de média negativa de US$ 927,5 milhões entre 1968 e 1973 para um déficit médio de US$ 6,94 bilhões entre 1974 e 1979, um aumento médio de aproximadamente 650%. No caso do estoque total de dívida externa, a trajetória não é distinta, passando de US$ 12,5 bilhões em 1973 paraUS$ 50 bilhões em 1979; um aumento da ordem de 300% em seis anos. A dívida externa brasileira atingiu US$ 82

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bilhões em 1983, logo após o episódio da moratória mexicana, que precipitou a crise das dívidas dos países em desenvolvimento.

Se a escolha de política econômica seguida após o primeiro choque do petróleo foi decisiva ao condicionamento dos resultados no setor externo da economia, acrescenta-se a isso o impacto óbvio dos preços mais elevados do barril de petróleo sobre...

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