Ciência Política e sistema financeiro no Brasil: o artigo 192 da Constituição Federal

AutorMarcus Ianoni
CargoMestre e Doutor em Sociologia Política pela PUC-SP. Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (Niterói/RJ).
Páginas173-204

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Marcus Ianoni

Introdução

A pesar da relevância da institucionalização financeira para o desenvolvimento, o debate da regulação do Sistema Financeiro Nacional (SFN), prevista no Art. 192 da Constituição Federal (CF), e o estudo do empresariado financeiro como ator político são incipientes na Ciência Política1. O trabalho tem dois objetivos: 1) revisar a literatura

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de Ciência Política brasileira sobre a nãoregulamentação do Art. 192 e temas pertinentes a essa problemática – como as relações entre Autoridade Monetária ([AM] – Conselho Monetário Nacional [CMN] e Banco Central do Brasil [BCB]) e Legislativo e entre sistema político e grupos de interesse financeiro –, para mapear as principais hipóteses explicativas; 2) investigar empiricamente e preliminarmente ações, decisões e nãodecisões do Congresso e do Poder Executivo sobre a normatização e regulamentação do SFN e, com essas informações e dados, fazer uma primeira avaliação das hipóteses mapeadas.

O caput do Artigo 192 da CF estabelece dois grandes objetivos para o SFN: promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade. Mas estudos apontam que o SFN possui ineficiências que impedem que sua dinâmica realize os objetivos que a CF lhe incumbiu de alcançar (e.g. Carvalho, 2004, IPEA, 2009)2. E embora não se possa dizer que o SFN cumpra sua missão constitucional, ele tem crescido e acumulado capital, o que pode ser evidenciado por indicadores como o PIB das instituições financeiras (IFs) e a rentabilidade dos bancos brasileiros, que, desde antes da crise internacional, já superava a dos norteamericanos3.

Por outro lado, as pesquisas de Ciência Política sobre o SFN no Brasil carecem de aprofundamento empírico e de uma abordagem mais sistêmica, que foque as conexões do sistema político com o sistema financeiro, e não em aspectos isolados dessas relações. Sem se fazer isso, correse o risco de se produzir ideologia legitimadora das insuficiências democráticas e econômicas do SFN.

Após essa apresentação e justificativa do objeto, seguem três seções: a primeira revisa a bibliografia sobre a nãoregulamentação do Art. 192 e/ou temas pertinentes a essa problemática e expõe quatro hipóteses presentes nessas obras; a segunda expõe os resultados empíricos alcançados e os confronta com as hipóteses identificadas na bibliografia; a terceira, conclui.

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1. O sistema financeiro brasileiro na Ciência Política

A revisão abordará essas obras da Ciência Política: Neiva (1995), Sola, Kugelmas e Whitehead (2002), Santos e Patrício (2002), Loureiro e Abrucio (2004a e 2004b) e Kasahara (2009). A obra de BresserPereira (2007) será parcialmente revisada; apesar de situarse na ciência econômica, ela aborda uma teoria de política regulatória – teoria da captura – que adentra a ciência política. A exposição será ordenada conforme a abordagem teórica das obras: a) neoelitismo; b) neoinstitucionalismo histórico; c) neoinstitucionalismo da escolha racional; e d) teoria da captura 4.

1.1. Neiva: hipótese da nãodecisão

Neiva (1995) fez um estudo pioneiro sobre a (não) regulamentação do SFN. Seu objetivo foi

identificar os diversos atores envolvidos no processo de regulamentação do sistema financeiro nacional e seus recursos de poder, bem como avaliar a capacidade que têm os mais poderosos para fazer com que as decisões/nãodecisões tomadas atendam às suas expectativas (op.cit., p. 7).

Em termos teóricos, Neiva recorreu à abordagem neoelitista da nãodecisão, formulada por Bachrach e Baratz (B&B). O neoelitismo surgiu na crítica ao método de investigação decisional da escola pluralista norteamericana. Robert Dahl e outros pluralistas utilizavam o método decisional para analisar o poder dos grupos de interesse na formatação das decisões do sistema político. Segundo B&B (1962, p.948-949),

power is also exercised when A devotes his energies to creating or reinforcing social and political values and institutional practices that limit the scope of the political process to public consideration of only those issues which are comparatively innocuous to A. […] Can he [the student] safely ignore the possibility, for instance, that

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an individual or group in a community participates more vigorously in supporting the nondecisionmaking process than in participating in actual decisions within the process?

Os autores citam Schattschneider (op. cit., p. 949): “All forms of political organization have a bias in favor of the exploitation of some kinds of conflict and the suppression of others because organization is the mobilization of bias. Some issues are organized into politics while others are organized out”.

A abordagem da nãodecisão sugere proceder da seguinte maneira na análise do processo decisório: identificar 1) a mobilização do bias e 2) quem ganha e quem perde com o bias existente; 3) investigar a dinâmica da nãodecisão; até que ponto os defensores do status quo influenciam os valores e instituições que limitam o escopo do processo decisório a questões seguras; 4) após isso, partir para a abordagem pluralista e verificar a participação dos atores nas decisões tomadas.

Neiva identificou e investigou os seguintes atores: Poder Executivo, bancos públicos federais e estaduais, bancos privados nacionais, governadores de Estado, agentes financeiros internacionais, grande capital industrial, agrícola e comercial e, de algum modo, abordou, também, a imprensa, os parlamentares economistas e os bancários. Ele investigou três questões principais sobre a regulamentação do Art. 192: 1) funcionamento, atribuições e composição do BCB; 2) organização e funcionamento dos bancos oficiais; 3) limitação dos juros em 12% ao ano. Eis suas conclusões:

1- Há assimetria de recursos de poder entre os atores e o Poder Executivo tem posição privilegiada nesse jogo político.

2- O Executivo não tem interesse na independência do BCB, pois ela implicaria perdas na possibilidade de financiamento de seus gastos, na condução da política econômica e no poder exercido sobre os governadores (Neiva, op. cit., p.155-156). Os bancos privados também não defendem a independência, pois, com ela, perderiam influência sobre o Executivo e o BCB, autarquia que, no Brasil, se incumbe da política monetária, supervisão bancária e da autorização

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para funcionamento das IFs (op. cit., p. 111).5 Governadores e bancos públicos estaduais também resistem a majorar o poder do BCB e a se submeterem a essa agência, pois perderiam a capacidade de pressão política facultada pela situação de então.6 PT e CNB/CUT seriam, então, favoráveis à independência do BCB, que seria compensada pela criação, no Congresso, de uma Comissão Mista Permanente para Assuntos do Sistema Financeiro (idem, p. 98).

1- Entre 1991 e 1995, a questão dos bancos oficiais foi outra grande fonte de dificuldade para a regulamentação do Art. 192, por suscitar fortes interesses divergentes entre bancos privados e oficiais. Isso fez Neiva complementar a teoria da nãodecisão: “as nãodecisões também ocorreriam onde há um equilíbrio de forças em conflito e não apenas quando há o predomínio de um ator mais poderoso” (idem, p. 152).

2- Não houve tabelamento dos juros por falta de consenso no Congresso sobre a matéria, desde a Constituinte, embora, na plenária final de votação do Carta Magna, formouse ampla coalizão suprapartidária contra o SF. Mas imediatamente, o Executivo, por parecer do então Consultor Geral da República, respaldado pela Febraban e pelo BCB, considerou que a vigência da matéria dependia de regulamentação prévia (OLIVEIRA FILHO, 2007, p. 96).

Essa é a síntese da hipótese da nãodecisão, que Neiva usa para explicar a nãoregulamentação do Art. 192. Executivo, BCB e banqueiros foram fortes atores contra a independência (não da autonomia) da AM e a autoaplicabilidade do Art. 192, respaldados juridicamente por decisão do STF, de 1991, segundo a qual o artigo só entraria em vigor após a regulamentação da LC. Então, a legislação anterior continuou a vigorar, particularmente as Leis 4595/1964, 4728/1965 e a 6385/1976 (respectivamente, leis bancária, do mercado de capitais e de criação da CVM). Assim, a Lei Bancária, que é ordinária, foi recepcionada pelo sistema jurídico como LC (DuranFerreira, 2009).

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1.2. Sola et alli e Kasahara: hipótese da condução centrada no Executivo

Sola, Kugelmas e Whitehead (2002) e Kasahara (2009), por meios distintos, podem ser incluídos, teoricamente, no neoinstitucionalismo histórico (HALLl & TAYLOR, 2003). Enfatizam as interações entre Estado e mercado. Sola et alli (op. cit., p. 17-18) vêem o Estado como protagonista nas mudanças em curso na América Latina, mas criticam o “tratamento do Estado como entidade autônoma, separada da teia de múltiplas relações societárias”. Mas recusam exageros estruturalistas e atentam para o marco institucional próprio dos Estados em que as mudanças nos mercados e instituições financeiras estão ocorrendo.

Kasahara (op. cit., pg. 5 e 15) critica a ênfase estruturalista do poder das forças de mercado diante do Estado e a tese de que a globalização financeira impõe a “existência de um inexorável movimento de homogeneização institucional ou regulatória”. Ele recorre ao conceito de path dependence, do neoinstitucionalismo histórico.

Sola et alli (idem) criticam o hiperestruturalismo, que “relega a segundo plano a ação política”. Contextos de transformação econômica e mudança política podem propiciar...

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