Contratos Celebrados à Distância e Contratos Celebrados Fora do Estabelecimento Comercial - Da Transposição da Diretiva para o Ordenamento Jurídico Português

AutorMarisa Dinis
CargoDoutora em Direito (Universidade de Salamanca). Mestre em ciências jurídico-empresariais e licenciada em Direito (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
Páginas99-126

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I A Diretiva 2011/83/UE - Aspectos gerais
1. As origens

Expressão dos tempos modernos, as novas formas de contratar têm ganhado um impulso notório particularmente visível nas últimas décadas. De fato, os denominados contratos à distância e os contratos celebrados fora de estabelecimentos comerciais, pese embora tenham merecido tratamento legal no ordenamento jurídico portugês desde cedo, multiplicaram-se exponencialmente nos últimos anos, criando, por isso, novas fontes de conflitos entre os vários intervenientes decorrentes, não raras vezes, de evidentes e reiterados atropelos aos direitos dos consumidores, perpetuados pelas aliciantes manhas negociais de contrapartes astutas.

Não surpreende, portanto, que estas matérias representem, no seio da União Europeia, uma preocupação crescente e constante refletida, além do mais, nas inúmeras iniciativas, legislativas e não só, que tem desencadeado a este respeito. Recorde-se que estas iniciativas foram naturalmente intensificadas com as atribuições à UE de competências próprias nos domínios do direito do consumo1.

Cumpre, neste escrito, perscrutar as intenções do Decreto-Lei 24/2014, de 14 de fevereiro, que, como se sabe, transpõe parcialmente a Diretiva 2011/83/EU. Por ser assim, antes de analisarmos o predito decreto-lei, trataremos de apreciar, ainda que de forma ligeira, a diretiva. Ora, a Diretiva 2011/83/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/ CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, representa, na verdade, o culminar de longas discussões e debates, de variada natureza, como sejam, a científica, a académica, a política e a social2.

Cremos que não erramos se afirmarmos que esta diretiva de 2011 marca um caminho diferente do, até então, legislativamente percorrido, tanto pelo legislador comunitário como pelos legisladores nacionais, ao tentar alcançar alguma uniformidade neste particular. A necessidade de se estabelecerem padrões legais comuns baseia-se no fato de esta ser entendida como essencial para criar segurança jurídica nas transações estabelecidas à distância e, por isso, carentes de um rosto confortante, ou naquelas outras realizadas fora do estabelecimento comercial e, por isso, mais agressivas e com vários rostos em geral, mas com poucos em particular.

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Aliadas à natural falta de confiança nestas transações, oriunda da própria natureza que assumem, encontram-se, por um lado, a parca proteção que tem assistido aos consumidores e, por outro, a busca incessante, por parte das empresas, em mascarar as técnicas comerciais agressivas em prol de uma desenfreada obtenção de lucros.

Não restam, no entanto, dúvidas de que é mister reforçar a confiança e a certeza jurídicas sob pena de estas novas formas de negociar terem uma morte anunciada.

Relembre-se que as polémicas de maior monta que envolvem as políticas de proteção dos consumidores remontam, desde logo, à data da publicação do Livro Verde sobre a proteção dos consumidores, em 2001. A este respeito, há que recordar as reações pouco favoráveis que se fizeram sentir no imediato. A Comissão, não obstante as preditas vozes discordantes, levou por diante os seus intentos de estudar a possibilidade de substituir a harmonização mínima, imposta pela maioria das diretivas que versavam sobre estes assuntos, pela harmonização total. Entendia, pois, a Comissão que esta estratégia de transposição consubstanciava a conditio sine quo non para um verdadeiro reforço das já mencionadas segurança e certeza jurídicas.

Partindo das premissas anteriores, a proposta da Comissão assentava, com efeito, na referida harmonização total, em desprezo da harmonização mínima, e avançava com a definição expressa e clara de determinados conceitos no pressuposto de criar uma linguagem comum aos vários Estadosmembros. Ficou, desde cedo, clara a intenção de a diretiva se deter de forma particular na determinação e regulação de determinados direitos entendidos como essenciais, a saber, o direito de os consumidores serem devida e corretamente informados pela contraparte e o direito de arrependimento ou de retratação. Logradas estas intenções, lograr-se-iam, por arrastão, outras: a do melhor funcionamento dos mercados, internos e transfronteiriços, e consequentemente o aumento da respectiva capacidade competitiva.

Este entendimento, considerando em particular os efeitos que proclamava, muito agradou às associações de empresas que, sobretudo à custa da harmonização total, poupariam recursos financeiros e técnicos na implementação das novas medidas e dos novos comandos legais permitindo, logo, uma diminuição de custos no desenvolvimento das respectivas atividades.

Contrariamente, como seria de esperar, desagradou às associações de consumidores que bem compreenderam os riscos que tal harmonização total implicaria em determinadas matérias de maior melindre. Estava,

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pois, impossibilitada a concatenação de ideias indispensável à boa conduta legislativa e ao necessário aumento da proteção dos direitos dos consumidores num período de crise e, por isso, particularmente propício a desmazelos neste âmbito.

Foi no contexto vindo de relatar que a Comissão apresentou a sua proposta que foi naturalmente objeto de minuciosas análises. De entre os vários estudos, opiniões e pareceres há que chamar à colação, pelo elevado interesse que representam, as conclusões apresentadas pelo Comité Económico e Social Europeu e as recomendações à Comissão daí resultantes. Neste particular, parece-nos útil reproduzir algumas das conclusões mais assertivas do Comité: "a proposta não apresenta inovações nalguns aspectos relevantes, como sejam a assistência pósvenda e as peças sobresselentes, a responsabilidade direta do produtor e as redes de distribuição"; "a existência de definições comuns pode contribuir para dar mais certeza e segurança jurídica aos operadores comerciais e aos consumidores mas, para tal, a Comissão deverá pôr fim às contradições que, a este respeito, subsistem na proposta"; "são as deficiências graves sentidas ao nível da resolução dos conflitos e da reparação dos danos que constituem um fator determinante ‘se não o mais determinante’ para a falta de desenvolvimento do comércio transfronteiriço sendo que a proposta omite totalmente esta preocupação que até o Eurobarómetro reflete"; "qualquer proposta que pretenda uma harmonização máxima em matéria de defesa dos consumidores deve centrarse em aspectos muito concretos e ser acompanhada por especiais cautelas para respeitar o elevado nível de proteção dos consumidores garantido pelo Tratado, respeitando o princípio da subsidiariedade, sob pena de retardar e travar o desenvolvimento dos direitos dos consumidores em cada Estado"3.

A proposta final acabou, por fim, por sofrer influências diretas e ponderosas do Parlamento Europeu veiculadas, em particular, pelo relator nomeado para o efeito, Andreas Schwab (PPE/DE). Neste âmbito, ficou claro, desde cedo, que a harmonização total proposta pela Comissão não seria adequada a assegurar o elevado nível de proteção dos consumidores e, por isso, teria de ser rejeitada4. A base da proposta final foi construída com este contributo essencial e, bem assim, com o da comissária Viviane Reding que tomou exemplarmente as rédeas deste documento legislativo5.

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2. As soluções jurídicas

Vistos que estão, em jeito resumido, alguns aspectos gerais inerentes à origem da diretiva, resta, ainda antes de avançarmos para a análise da respectiva transposição para o ordenamento jurídico nacional, observar as orientações diretas decorrentes do instrumento normativo comunitário que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais e a Diretiva 1997/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 1997, relativa à proteção do consumidor em matéria de contratos à distância6.

Salientemos, primeiramente, o método de transposição para os direitos nacionais imposto pela diretiva cuja originalidade é singular. Veja-se, neste quadro temático, que a diretiva assume claramente que "deverá estabelecer normas-padrão para os aspectos comuns dos contratos à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, afastando-se do princípio da harmonização mínima subjacente às diretivas anteriores e permitindo aos Estados-membros manter ou adotar regras nacionais" (considerando 2). A diretiva tece considerações (considerando 5) sobre as potencialidades das vendas à distância transfronteiriças que, segundo afirma, ficaram aquém das reais potencialidades que encerram. A diretiva aponta, ainda no mesmo considerando, como principal obstáculo a um verdadeiro crescimento deste tipo de negócio as dificuldades que as empresas sentem com a necessidade de se adaptarem às diferentes regras nacionais de defesa do consumidor7.

Conclui, neste aspecto, que a técnica da "harmonização total da informação aos consumidores e o direito à retratação relativo aos contratos à distância e aos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial contribuirão para um nível elevado de proteção dos consumidores e para um melhor funcionamento do mercado interno entre empresas e consumidores". Segue ainda reforçando, no considerando 7, que a "harmonização total de alguns aspectos regulamentares fundamentais deverá aumentar consideravelmente a segurança jurídica, tanto para os consumidores como para os profissionais, que deverão passar a poder contar com um quadro regulamentar único, baseado em noções jurídicas claramente definidas...

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